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Processo n.º 825/12
3.ª Secção
Relator: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam, em conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação do Porto, A. veio interpor recurso, para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, com as alterações posteriores (Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, doravante, LTC).
2. No requerimento de interposição de recurso, a recorrente delimita o respetivo objeto, nos seguintes termos:
“(…) pretende a Recorrente que seja declara[da] a inconstitucionalidade e ilegalidade das normas dos artigos 9.º, 14.º e 15.º do Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU – Lei 6/2006).”
3. Por decisão de 15 de outubro de 2012, tal recurso não foi admitido, com os seguintes fundamentos:
“(…) Dispõe o referido art. 70° n° 1 b) que cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
Nos termos do n° 2 desse artigo esse recurso apenas cabe de decisões que não admitam recurso ordinário, por a lei o não prever ou por já haverem sido esgotados todos os que no caso cabiam.
O prazo de interposição do referido recurso é de 10 dias; interposto recurso ordinário que não seja admitido com fundamento em irrecorribilidade da decisão, o prazo para recorrer para o Tribunal Constitucional conta-se do momento em que se torna definitiva a decisão que não admite recurso (art. 75º nºs 1 e 2).
Perante estas normas, parece-nos evidente que o recurso agora interposto não é admissível.
Por duas razões:
Em primeiro lugar, não é verdade que, como se diz no requerimento de interposição, ao longo do processo, e designadamente nas alegações de recurso para a Relação, tenha sido suscitada a questão da inconstitucionalidade das referidas normas do NRAU. A Recorrente não levantou anteriormente a questão da inconstitucionalidade dessas normas.
Tanto bastaria para decidir pela não admissão do recurso – citado art. 70° n.º1 b).
Mas, por outro lado, analisando o processado, é forçosa a conclusão de que também foi ultrapassado o aludido prazo de interposição.
Como se referiu já em anterior despacho (fls. 227), o meio utilizado pela Recorrente – o pedido de esclarecimento e reforma do acórdão proferido nestes autos (pedido formulado a fls. 128 a 131, sendo de notar que os subsequentes pedidos já não se referem ao acórdão, mas ao despacho depois proferido) – pressupõe que o recurso ordinário do acórdão de fls. 113 e segs não era admissível.
Na verdade, o pedido de esclarecimento ou aclaração teria de ser formulado na a1egação de recurso, se este fosse admissível (art. 669º nº 3 do CPC); e o pedido de reforma só poderia ser admitido se não coubesse recurso da decisão (art. 669º nº 3).
Pressupondo o meio utilizado pela Recorrente que não era admissível recurso ordinário do acórdão de fls. 113 e segs, é evidente que o despacho de fls. 227, que não admitiu o recurso para o STJ, não interfere nesta questão do prazo do recurso para o Tribunal Constitucional, uma vez que não foi aí que se tornou definitiva a decisão de não admissão do recurso ordinário daquele acórdão (cfr. parte final do n° 2 do art. 75° da LCT).
Assim, mesmo que se conte o prazo de interposição do recurso desde a notificação da decisão que indeferiu definitivamente os pedidos de esclarecimento e de reforma (acórdão de fls. 203 e segs, de 28.06.2012) esse prazo foi claramente ultrapassado.
O recurso não é, pois, admissível, o que, convém dizê-lo neste momento (tendo em conta a data em que foi proferido o acórdão de fls. 113 e segs), se nos afigura manifesto.
Não admito, por isso, o recurso para o Tribunal Constitucional (…)”
É desta decisão, proferida pelo Tribunal da Relação do Porto, que a recorrente presentemente reclama.
4. Para fundamentar a reclamação apresentada, manifesta a recorrente a sua discordância relativamente à decisão reclamada.
Refere que “a manutenção na decisão do Tribunal a quo e do Tribunal da Relação do instituído no regime anterior da prova documental ser a única admissível, é inconstitucional”, concluindo que é inconstitucional a norma do artigo 14.º do NRAU, “na interpretação segundo a qual, se for requerido o despejo imediato com fundamento em falta de pagamento das rendas vencidas, o único meio de defesa do detentor do locado é a apresentação de prova documental.”
Por outro lado, afirma que o recurso de constitucionalidade foi interposto no prazo legal de dez dias.
Pelo exposto, peticiona que seja dado provimento à reclamação e que seja notificada para apresentar alegações.
5. Os reclamados B. e C., em resposta à reclamação apresentada, vêm dizer que o recurso de constitucionalidade interposto é manifestamente intempestivo.
Acresce que a reclamante nunca suscitou qualquer questão de constitucionalidade, nas alegações de recurso apresentadas.
Nestes termos, pugnam pela improcedência da reclamação.
6. O Ministério Público, no Tribunal Constitucional, começa por acentuar que a recorrente não identificou o acórdão recorrido.
Porém, ainda que se aceitasse que o recurso era interposto do acórdão do Tribunal da Relação, que julgou a apelação improcedente, sempre obstaria à sua admissibilidade o incumprimento do ónus de suscitação prévia da questão de constitucionalidade.
Face a tal circunstância, torna-se desnecessária a apreciação do segundo fundamento, utilizado pela decisão reclamada, para a não admissão do recurso.
Nestes termos, conclui pelo indeferimento da reclamação.
Cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentos
7. Para apreciação da presente reclamação, torna-se necessário reconstituir a tramitação dos autos:
Por apenso à execução para entrega de coisa certa, instaurada pelos aqui reclamados B. e C., veio a aqui reclamante apresentar oposição à execução.
Os referidos reclamados deduziram contestação e, por sentença de 8 de julho de 2011, foi julgada totalmente improcedente a oposição deduzida.
Inconformada, a oponente recorreu para o Tribunal da Relação do Porto.
Por acórdão de 2 de fevereiro de 2012, foi julgada a apelação improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.
Notificada de tal acórdão, por ofício enviado a 3 de fevereiro de 2012, a apelante requereu a respetiva aclaração e reforma, mediante peça processual, a que foi aposto o carimbo de entrada em Juízo datado de 27 de fevereiro do mesmo ano.
A parte contrária pronunciou-se, invocando a extemporaneidade do requerimento.
Por decisão de 15 de março de 2012, o Tribunal da Relação do Porto indeferiu a reclamação, por ter sido apresentada depois do prazo de dez dias legalmente fixado para o efeito.
Inconformada, a reclamante reclamou de tal decisão para a conferência.
A parte contrária pronunciou-se pelo indeferimento, pugnando pela aplicação do regime previsto no artigo 720.º do Código de Processo Civil.
Por acórdão de 28 de junho de 2012, foi indeferida a reclamação.
A reclamante interpôs recurso deste último acórdão, que, por decisão de 20 de setembro de 2012, não foi admitido.
Em 3 de outubro de 2012, a reclamante interpôs recurso para o Tribunal Constitucional.
8. O recurso interposto funda-se expressamente na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC. Assim, não obstante a recorrente se referir, cumulativamente, à apreciação da “inconstitucionalidade e ilegalidade”, não mencionando qualquer outra alínea do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, como suporte da sua pretensão - sendo certo que a alínea b) apenas se reporta ao vício de inconstitucionalidade - será na perspetiva desta última alínea que se analisará o recurso interposto, desde logo quanto aos respetivos requisitos de admissibilidade.
O Tribunal Constitucional tem entendido, de modo reiterado e uniforme, serem requisitos cumulativos da admissibilidade do recurso, previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, a existência de um objeto normativo - norma ou interpretação normativa - como alvo de apreciação; o esgotamento dos recursos ordinários (artigo 70.º, n.º 2, da LTC); a aplicação da norma ou interpretação normativa, cuja sindicância se pretende, como ratio decidendi da decisão recorrida; a suscitação prévia da questão de constitucionalidade normativa, de modo processualmente adequado e tempestivo, perante o tribunal a quo (artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa (CRP); artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
9. No requerimento de interposição de recurso, a recorrente não identifica, de forma inequívoca, o acórdão recorrido.
Tendo dirigido tal requerimento ao Tribunal da Relação do Porto, forçosamente pretende interpor recurso de um dos dois acórdãos proferidos por tal Tribunal, não especificando, porém, a qual se reporta.
Parece-nos, porém, legítimo concluir - tal como fez a decisão reclamada - que o acórdão recorrido corresponde ao proferido em 2 de fevereiro de 2012, tanto mais que a recorrente alega ter suscitado previamente a questão, que constitui objeto do recurso de constitucionalidade, nas alegações de recurso, entendendo-se que se refere às que precederam a prolação do referido acórdão.
Diga-se, aliás, que o outro acórdão, proferido nestes autos pelo Tribunal da Relação e datado de 28 de junho de 2012, não aplica qualquer critério normativo extraível de qualquer preceito do Novo Regime do Arrendamento Urbano, pelo que o recurso de constitucionalidade interposto seria manifestamente inadmissível, caso a escolha da decisão recorrida tivesse recaído sobre o citado aresto.
10. Considerando que a decisão recorrida corresponde ao acórdão de 2 de fevereiro de 2012, refere a decisão reclamada que não foi previamente suscitada a questão de constitucionalidade, que constitui objeto do recurso, circunstância que obsta à sua admissibilidade.
De facto, impunha-se que a recorrente suscitasse a questão de constitucionalidade normativa, que pretendia erigir como objeto de ulterior recurso para o Tribunal Constitucional, previamente, “de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer” (n.º 2 do artigo 72.º da LTC).
O cumprimento do pressuposto de admissibilidade do recurso, agora em apreciação, implica que a questão de constitucionalidade seja levantada, junto do tribunal a quo, de uma forma expressa, direta e clara, criando para esse tribunal um dever de pronúncia sobre tal matéria.
Exige-se, neste âmbito, uma precisa delimitação e especificação do objeto de recurso e uma fundamentação, minimamente concludente, com um suporte argumentativo que inclua a indicação das razões justificativas do juízo de inconstitucionalidade defendido, de modo a tornar exigível que o tribunal a quo se aperceba e se pronuncie sobre a questão jurídico-constitucional, antes de esgotado o seu poder jurisdicional (cfr. v.g. Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 708/06 e 630/08, disponíveis no sítio da internet já aludido).
Ora, na presente situação, analisadas as alegações do recurso interposto da sentença da 1.ª Instância - peça processual em que a recorrente deveria ter suscitado ou renovado a suscitação da questão de constitucionalidade, que pretendesse erigir como objeto de ulterior recurso de constitucionalidade - constata-se que a recorrente não suscitou, perante o tribunal a quo, qualquer questão de constitucionalidade reportada a critério normativo extraível dos preceitos que identifica no requerimento de interposição do recurso.
Tal omissão, atenta a natureza cumulativa dos pressupostos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade, é suficiente para determinar a não admissibilidade do recurso interposto e a consequente improcedência da reclamação.
11. A decisão reclamada invoca, como segundo fundamento da não admissão do recurso, a extemporaneidade da sua interposição.
Apreciemos, pois, se o requerimento de interposição de recurso é ou não tempestivo.
Nos termos do n.º 1 do artigo 75.º da LTC, o prazo de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional é de dez dias.
Tal prazo inicia-se com a notificação da decisão recorrida, nos termos do n.º 1 do artigo 685.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 69.º da LTC.
Porém, o n.º 2 do artigo 75.º da LTC estabelece que, quando a parte interponha recurso ordinário, que não seja admitido com fundamento em irrecorribilidade da decisão, a contagem do prazo inicia-se no momento em que se torna definitiva a decisão que não admite o recurso.
A prorrogação do prazo extraível do referido n.º 2 é ainda aplicável quando a parte utiliza um outro meio impugnatório legalmente previsto, inserível na normal tramitação pós-decisória, como arguição de nulidade da decisão, requerimento de retificação, aclaração ou reforma, devendo entender-se que o prazo de interposição do recurso de constitucionalidade só se inicia com a notificação da decisão proferida sobre o requerimento respetivo.
Todavia, tal prorrogação não pode considerar-se operante quando o recorrente utilize intempestivamente o meio impugnatório legalmente previsto.
A este propósito, referindo-se à interposição extemporânea de recurso ordinário, escreveu-se no Acórdão n.º 149/02 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt):
“(…) o que não pode aceitar-se é que, fazendo como que uma aplicação analógica do artigo 75º nº 2 da LTC (que contém uma norma excecional), o prazo do recurso de constitucionalidade seja prorrogado em termos de só se iniciar quando notificado o despacho que julga definitivamente intempestivo o recurso ordinário.
Com efeito, não estando prevista tal prorrogação – que, nos termos do citado artigo 75º nº 2 da LTC, só se verifica em casos de irrecorribilidade da decisão de que se interpôs recurso ordinário – admiti-la, no caso, seria abrir a porta à admissibilidade dos recursos para o TC a todo o tempo, bastando para tal que o recorrente, perante uma decisão judicial transitada, viesse interpor dela recuso ordinário, forçando uma decisão de não admissão e uma reclamação para o presidente do tribunal superior, para, então, recuperar o prazo de recurso para o Tribunal Constitucional.”
Aplicando as considerações expendidas à situação vertida nos autos, diremos que a apresentação extemporânea do requerimento de aclaração e reforma do acórdão recorrido, datado de 2 de fevereiro de 2012, seguida de toda a tramitação descrita supra no ponto 7., não operou a prorrogação prevista no n.º 2 do artigo 75.º da LTC, dado que tal preceito não abrange a utilização de meios impugnatórios, que, sendo intempestivos, não sejam admitidos com esse fundamento.
Na verdade, sobre tal requerimento incidiu despacho, em 15 de março de 2012, com a seguinte fundamentação:
“A. veio, a 27.02.2012, requerer, nos termos do art. 669° do CPC, o esclarecimento e reforma do acórdão proferido nestes autos.
Notificada, a parte contrária pronunciou-se invocando a extemporaneidade da reclamação.
Cumpre decidir, desde já, desta questão.
A reclamante foi notificada do aludido acórdão por carta remetida para a sua ilustre mandatária em 03.02.2012 (fls. 124).
Essa notificação presume-se efetuada em 06.02.2012 (segunda-feira) - art. 254° n° 3 do CPC.
Dispunha então do prazo de 10 dias para apresentar a presente rec1amação – arts. 716°, 669° e 153° nº 1 do CPC (cfr. LEBRE DE FREITAS, CPC Anotado, Vol. 2°, 2ª ed., 709 e 710).
Esse prazo completou-se em 16.02.2012.
Deve, por isso, concluir-se que a reclamação, apresentada em 27.02.2012, é claramente extemporânea.”
Assim, utilizando a argumentação defendida no citado acórdão do Tribunal Constitucional, com o n.º 149/02, diremos que admitir a prorrogação do prazo do recurso de constitucionalidade, nestes casos, seria abrir a porta à admissibilidade dos recursos para este Tribunal a todo o tempo, bastando para tal que o recorrente, perante uma decisão judicial definitiva, viesse apresentar extemporâneo incidente pós-decisório, forçando uma decisão de não admissão do mesmo, por intempestividade, para recuperar o prazo de recurso de tal decisão definitiva para o Tribunal Constitucional.
Nestes termos, a admissibilidade do recurso interposto sempre estaria prejudicada, por o respetivo requerimento de interposição ter sido apresentado muito após o prazo de dez dias, contados desde a notificação do acórdão recorrido, nos termos do n.º 1 do artigo 75.º da LTC, sem que tenha ocorrido qualquer facto suscetível de fazer operar a prorrogação prevista no n.º 2 do mesmo preceito.
Desta forma, igualmente com este fundamento, se conclui pela improcedência da reclamação.
III - Decisão
12. Pelo exposto, decide-se:
- julgar inadmissível o recurso de constitucionalidade interposto e, em consequência, julgar improcedente a presente reclamação.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 7.º, do mesmo diploma).
Lisboa, 9 de janeiro de 2013. – Catarina Sarmento e Castro – Vítor Gomes – Maria Lúcia Amaral