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Proc. nº. 551/02 TC - 1ª Secção Relator: Cons.º Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 – A foi condenado pelo Tribunal de Círculo de Portalegre como autor de um crime de fraude na obtenção de subsídio, na forma agravada, p. p. pelos artigos
36º, nº. 1, alínea a), nºs. 2 e 5, alínea d) do Decreto-Lei nº. 28/84, de 20.01, na pena de 2 anos e 3 meses de prisão em concurso efectivo com um crime de falsificação de documentos p. p. pelo artigo 228º, nº. 1, alínea a) e nº. 2 do Código Penal (1982) – actual artigo 256º, nº. 1, alínea a) e nº. 3 – na pena de
8 meses de prisão. Efectuado o cúmulo jurídico das referidas penas, foi condenado na pena única de 2 anos e 5 meses de prisão. O INGA – Instituto Nacional de Intervenção e Garantia Agrícola constituiu-se assistente no processo e oportunamente deduziu pedido de indemnização civil para condenação do arguido no pagamento das quantias indevidamente recebidas e respectivos juros (cfr. fls. 299 a 309 dos autos). Em consequência, além da condenação penal, foi ainda o arguido condenado a devolver ao INGA (assistente) a quantia recebida, a título de subsídio, de 3 449
359$00, acrescida de juros à taxa de 15% desde 31.12.1991 relativamente à quantia de 2 867 682$00 e desde 30.06.1992 relativamente à quantia de 581 677$00 e a partir de 1.10.1995 com juros à taxa de 10% relativamente à quantia de 3 449
359$00 e desde 23.02.1999 com juros à taxa de 7% (cfr. fls. 402 a 414). A pena de prisão foi declarada suspensa pelo período de 2 anos mediante a obrigação de o arguido pagar o capital concedido pela assistente no prazo de 6 meses. Inconformado, o arguido interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Évora pedindo a revogação da decisão condenatória por insuficiência da prova e a consequente absolvição do arguido dos crimes e do pedido cível. Por acórdão de 17.04.2001, o Tribunal da Relação de Évora negou provimento ao recurso, mantendo na íntegra a decisão condenatória recorrida (cfr. fls. 542 a
562). De novo inconformado, o arguido recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo concluído nos termos seguintes:
'III) CONCLUSÕES: a. O Tribunal de 1ª instância reconheceu, no ponto 9.2, a fls. 412 e 413 da sua sentença, que a condenação do pedido de indemnização cível fundamenta-se no disposto no artigo 39º do D.L.28/84 de 20 de Janeiro, sendo certo que vários autores consideram, nesse caso, estarmos perante uma sanção de natureza cível
(Cfr. Parecer técnico da autoria do Prof. Miguel Pedrosa Machado que se protesta juntar e ainda José Gil de Jesus Roque (Ilustre Magistrado), in 'Infracções contra a Economia e contra a Saúde Pública' comentado e Anotado, Lisboa, Rei dos Livros, 1985, pág. 104). b. Perante a natureza cível da restituição prevista no artigo 39º do D.L.28/84, e tendo em conta que 'A indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil quantitativamente e nos seus pressupostos' Ac. STJ de 12 de Janeiro de 1995; CJ, Acs do STJ, III, tomo 1, 181, o Tribunal de 1ª instância só poderia ter condenado o Recorrente se o mesmo se tivesse locupletado indevidamente à custa do I.N.G.A. (artºs. 483º, 562º e 473º, nº2, todos do C.C.). c. O Recorrente não causou qualquer dano ao I.N.G.A. porquanto o subsídio foi recebido em função das ovelhas efectivamente existentes; não deixou o I.N.G.A. de obter qualquer benefício, em consequência da lesão; nem tão pouco prejudicou os interesses da Economia Nacional (Preâmbulo do D.L. 28/84 de 20 de Janeiro) uma vez que as ovelhas subsidiadas existentes resultaram da sua própria actividade produtiva. d. Assim, perante a necessidade de existência de um dano, mesmo quando a ele se pretende incutir um certo sentido repressivo (Cfr. Mário Júlio de Almeida Costa. Direito das Obrigações. Coimbra, 1991. 5ª edição. pág. 476), no caso sub judice, não poderia haver lugar à restituição do indevido, uma vez que o que fora entregue, foi-o devidamente. Dão-se, assim, como violados os artigos 483º,
473º, nº. 2 e 562º do C.C. e. Os artigos 36º e 39º do D.L. nº 28/84 de 20 de Janeiro encontram-se feridos de inconstitucionalidade em virtude dos termos vagos e imprecisos quer da própria lei de autorização legislativa que serviu de base àquele diploma, quer porque, em matéria de pedido de indemnização cível, a aplicação da norma penal que está na origem da condenação, no caso sub judice, resultar de uma aplicação conjunta e relacionada entre aqueles artigos e os 8º e 9º da Portaria nº 1170-D/90 de 30 de Novembro e do Regulamento da CEE nº 1260/90 de 11 de Maio
(Cfr. Parecer técnico do Prof. Miguel Pedrosa Machado que se protesta juntar).' O recurso não foi admitido por despacho do relator, nos termos do artigo 400º, nº. 1, alínea f) do Código de Processo Penal (cfr. fls. 592), despacho de que o ora Recorrente reclamou, tendo a reclamação sido deferida por despacho do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça de 30.10.2001. O INGA apresentou as suas contra-alegações, tendo dito a concluir:
'1 – Nos termos da legislação aplicável, nomeadamente artigos 36º 3 e 39º do DL nº 28/84, de 20 de Junho, Regulamento (CEE) nº.1260/90, de 11 de Maio e Portaria nº 1179-D/90, de 30 de Novembro, para a fraude na obtenção de Subsídio ou Subvenção estão previstas duas sanções de natureza distinta: uma sanção penal, correspondente à pena prevista no art. 36º do DL nº 28/84 e uma sanção da carácter civil decorrente da aplicação conjugada do art. 39º do DL nº28/84 com o disposto nos supra referidos diplomas comunitários.
2 – De acordo com estes preceitos a sanção civil consubstancia-se essencialmente na restituição do montante recebido indevidamente de acordo com o preceituado no art. 39º do DL 28/84, que deverá ser recuperado, aumentado de um juro a determinar pelo Estado-Membro, segundo o disposto no art. 5º do Regulamento
(CEE) 1260, de 11 de Maio de 1990, sendo certo que na falta de fixação da taxa de juro específica para esta obrigação, será aplicada a taxa de juro legal.
3 – O recorrente, ao receber indevidamente, um subsídio no valor de Escs.
3.449.359$ (três milhões, quatrocentos e quarenta e nove mil, trezentos e cinquenta e nove escudos), lesou o património do Estado, através do I.N.G.A., instituto competente para a atribuição de tal prémio monetário, na exacta quantia de Escs. 3.449.359$00, quantia essa que não teria sido despendida na atribuição de tal subsídio, se o recorrente não tivesse prestado declarações fraudulentas, de modo a conseguir tal atribuição. O dano causado pelo recorrente ao recorrido é então facilmente determinável pois que se trata do empobrecimento do recorrente.
4 – Pelo exposto no ponto 3. concluímos pela existência de um dano causado pelo recorrente no património do recorrido, não colhendo, por isso a tese da inadmissibilidade de aplicação de uma sanção de natureza civil ao recorrente, por inexistência de dano, quando é óbvio que tal dano existiu e subsiste até à presente data, uma vez que o recorrido nunca recuperou o montante do subsídio indevidamente recebido.
5 – Sendo clara a existência de dano, nos moldes acima expostos, estão preenchidos todos os pressupostos da responsabilidade extra-contratual previstos no art. 483º do C.C., não restando então dúvidas que a condenação do Tribunal de
1ª Instância, 'na restituição do ilicitamente recebido', doutamente confirmada pelo Tribunal da Relação de Évora, deve manter-se.
6 – Quanto á questão da inconstitucionalidade dos artigos 36º e 39º do DL nº28/84, por introduzirem incerteza e imprecisão na incriminação, mais uma vez deve ser acolhida a tese do recorrente, pois, tendo em conta que existem duas sanções distintas, uma de natureza criminal e outra de natureza civil, sendo que a incriminação é a constante do art. 36º do referido diploma, norma essa onde estão contidos todos os elementos essenciais do tipo de crime, não existindo qualquer indeterminabilidade no conceito de crime susceptível de violar qualquer norma constitucional.
7 – Relativamente à sanção de carácter civil, prevista no art.39º do DL nº28/84, de 20 de Janeiro, a sua conjugação com os vários diplomas comunitários aplicáveis, não fere nenhum princípio Constitucional, uma vez que se trata de matéria civil à qual se aplica logicamente as regras e princípios do Direito Civil.' Por acórdão de 10.04.2002, o STJ negou provimento ao recurso, confirmando o acórdão recorrido (cfr. fls. 684 a 697). O ora recorrente pediu a aclaração de 'duas obscuridades', aclaração que foi indeferida por acórdão de 5.06.2002. Veio, então, o arguido recorrer para o Tribunal Constitucional, dizendo no requerimento de interposição de recurso:
'1 – A condenação do Recorrente no pagamento de uma indemnização cível por parte do Tribunal de 1ª instância e ratificada pelos Tribunais da Relação de Évora e Supremo Tribunal de Justiça, teve como fundamento legal o disposto no artigo 39º do D.L. nº. 28/84 de 20 de Janeiro que refere o seguinte:
'Além das penas previstas nos artigos 36º e 37º, o tribunal condenará sempre na total restituição das quantias ilicitamente obtidas ou desviadas dos fins para que foram concedidas.'
2 – Sucede que no caso sub judice não existem quaisquer 'quantias ilicitamente obtidas ou desviadas dos fins para que foram concedidas' dado que o subsídio que acabou por ser entregue pelo I.N.G.A. ao Recorrente, foi-o em função das ovelhas efectivamente existentes, não tendo, por isso, aquele Instituto, deixado de obter qualquer benefício em consequência da entrega desse mesmo benefício ao Recorrente.
3 – O artigo 39º do D.L. nº28/84 acabou assim por ser aplicado em conjugação com o disposto nos artigos 36º, nº1, a), nº8, al.a) e 8º e 9º da Portaria nº
1179-D/90 de 30 de Novembro e do Regulamento da CEE nº 1260/90 de 11 de Maio, resultando, na prática, numa aplicação com fins penais violadora de dois requisitos fundamentais caracterizadores da norma penal, a saber:
· A natureza da pena resultante dessa norma não é de índole criminal, mas civil (Cfr. José Gil de Jesus de Jesus (Ilustre Magistrado), in 'Infracções contra a Economia e contra a Saúde Pública' comentado e Anotado, Lisboa, Rei dos Livros, 1985)
· O âmbito da sua aplicação emergente da conjugação simultânea de outros preceitos normativos implica uma menor certeza e definição dos seus vários elementos integradores.
4 – A decisão que condenou o Recorrente no pedido de indemnização cível por se basear na norma do artigo 39º do D.L. nº 28/84 de 20 de Janeiro, resulta de uma interpretação claramente inconstitucional porque violadora do disposto nos artigos 29º, 30º, nº4 e 62º da Constituição da República Portuguesa.
5 – Acresce que o próprio D.L. nº28/84 de 20 de Janeiro enferma do vício de inconstitucionalidade em consequência dos termos vagos e imprecisos da própria autorização legislativa com base na qual aquele diploma veio a assumir a forma de lei (Cfr. Artº. 168, nº2 da Constituição).
6 – Encontram-se, assim, observados os pressupostos exigidos pelo nº2 do artigo
75º-A da Lei nº28/82 de 15 de Novembro pois, nos pontos e) das conclusões das alegações de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, o Recorrente veio a suscitar a eventual inconstitucionalidade da interpretação dada ao disposto no artigo 39º do D.L. nº28/84 aplicada conjuntamente com os artigos 36º, nº1, a), nº8, al.a) e 8º e 9º da Portaria nº 1179-D/90 de 30 de Novembro e do Regulamento da CEE nº 1260/90 de 11 de Maio.
7 – Inconstitucionalidade essa que veio a ser suscitada na pendência do processo, no ponto e) das conclusões das alegações de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, não só ao nível da inconstitucionalidade material, mas inclusivamente orgânica, tal como se terá oportunidade de desenvolver nas alegações a produzir junto do Douto Tribunal Constitucional.
8 – Assim, e em face de todo o supra exposto, o Recorrente pretende que o Tribunal Constitucional se pronuncie sobre a constitucionalidade orgânica e material do disposto no artigo 39º do D.L. nº28/84 aplicado conjuntamente com os artigos 36º, nº1, a), nº8, al.a) e 8º e 9º da Portaria nº 1179-D/90 de 30 de Novembro e do Regulamento da CEE nº 1260/90 de 11 de Maio na interpretação e com a aplicação que lhes foi dada pelo tribunal 'a quo'.
Notificado para alegar, veio o Recorrente concluir a sua alegação como segue:
'1º) Ao abrigo do seu direito de defesa constitucionalmente consagrado (art.
32º, nº1, da lei Fundamental), o recorrente vem pedir que seja revogada a aplicação, contra si feita nos autos, de um diploma formal porque consequentemente inconstitucional, o Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro, por oposição entre a respectiva lei de autorização, a Lei nº12/83, de 24 de Agosto, e o art. 165º, nº1, alínea c), e nº 2, da Constituição.
2º) De qualquer modo, a interpretação e aplicação feita nos autos do art. 39º desse Decreto-Lei nº. 28/84, de 20 de Janeiro, está viciada de inconstitucionalidade material, por violação do nº 4 do art. 30º da Constituição, só podendo a esse concreto preceito da lei ordinária ser atribuído o significado de sanção de indemnização cível, a implicar a necessidade de correcção da decisão tomada no sentido da valoração do dano apurado.
3º) Contêm os autos, além de tudo isso, a pretensão de aplicar uma norma penal incriminadora e penalizadora, resultante da relação entre o citado decreto-lei e uma portaria e um regulamento comunitário, norma no seu conjunto de conteúdo não suficientemente determinado, e, por isso, materialmente inconstitucional por violação do art. 29º, nºs. 1 e 3, da Lei Fundamental; evitando-o ou impedindo-o, pede-se ao Tribunal Constitucional que ordene a revogação das decisões tomadas nessa base'. O Procurador-Geral Adjunto em exercício neste Tribunal contra-alegou, tendo concluído:
'1 – A Lei nº 12/83, de 24 de Agosto, cumpre os requisitos exigidos pelo artigo
165º, nº 2, da Constituição.
2 – A norma do artigo 39º do Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro, que serviu de suporte legal à condenação do recorrente na restituição da quantia ilicitamente obtida, não viola o nº 4 do artigo 30º da Constituição.
3 – Não resulta de decisão recorrida qualquer aplicação de normas, não suficientemente determinadas, que entrem em colisão com o preceituado no artigo
29º, nºs 1 e 3 da Constituição.
4 – Termos em que deve negar-se provimento ao recurso.' Cumpre apreciar e decidir.
2 – Entende o recorrente que a interpretação da norma constante do artigo 39º do Decreto-Lei nº. 28/84, de 20 de Janeiro, no sentido de que o tribunal condena sempre, além das penas previstas nos artigos 36º e 37º daquele diploma, na total restituição das quantias ilicitamente obtidas ou desviadas dos fins para que foram concedidas é orgânica e materialmente inconstitucional, derivando a inconstitucionalidade orgânica do desrespeito da lei de autorização legislativa
(Lei nº 12/83) pelo disposto no artigo 165º, nº. 1, alínea c) e nº. 2 da Constituição da República Portuguesa (o que implicaria a inconstitucionalidade orgânica da norma em causa) e a inconstitucionalidade material da violação do princípio da determinabilidade das normas incriminadoras (artigo 29º nºs 1 e 3) e do nº. 4 do artigo 30º da Lei Fundamental. Ora, importa salientar que não é líquido que a condenação do recorrente na restituição das quantias ilicitamente obtidas se tenha suportado, como razão de decidir, na norma contida no artigo 39º do Decreto-Lei nº 28/84, não obstante as extensas considerações que o acórdão recorrido faz sobre a qualificação dogmática daquela restituição. Com efeito, na sentença de 1ª instância – que nunca foi alterada pelas instâncias de recurso – a condenação do recorrente na restituição das quantias ilicitamente obtidas está expressamente autonomizada da condenação penal em trecho epigrafado de 'Parte cível'. E isto porque o recorrido INGA deduzira autonomamente pedido cível contra o arguido 'nos termos do artigos 71º e seguintes do Código de Processo Penal' - que não se fundamenta em parte alguma da respectiva petição no artigo 39º do Decreto-Lei nº 24/84, mas 'nos termos do nº 5 do artº 6º, com a redacção que lhe
é dada pelo nº 4 do artigo 1º nº 4 do Regulamento (CEE) nº 1260/90, da Comissão de 11 de Maio de 1990 que alterou o Regulamento (CEE) nº 3007/84' – e foi esse pedido que a sentença de 1ª instância decidiu, agora com invocação do disposto nos artigos 8º e 9º da Portaria nº 1170-D/90, de 30 de Novembro e no nº 5 do Regulamento (CEE) 1260/90 e assente na 'quebra de compromisso' prevista na parte final do citado artigo 8º daquela Portaria. Faltaria, assim, um dos pressupostos do recurso interposto ao abrigo do artigo
70º nº 1 alínea b) da LTC. A verdade, porém, é que a mesma sentença acaba também por dar 'fundamento legal' ao pedido do 'demandante cível', apelando ao disposto naquele artigo 39º, embora depois de invocados ao preceitos da Portaria nº 1170-D/90 e do Regulamento (CEE) nº 1260/90 e nos seguintes termos:
'Aliás, nos termos do art. 39º do DL nº 28/84, 'além das penas previstas nos arts 36º..., o tribunal condenará sempre na total restituição das quantias ilicitamente obtidas...'.
É esta – e só esta – a razão por que se entende dever conhecer do objecto do recurso, mas nos termos que a seguir se expõem. Não pode, com efeito, conhecer-se do objecto do recurso na parte em que sustenta a inconstitucionalidade daquela norma por violação do artigo 30º nº 4 da Constituição.
É que em parte alguma das alegações que produziu perante o tribunal recorrido, o recorrente suscita esta questão de constitucionalidade (só o fez no requerimento de interposição do presente recurso), razão até por que o STJ se não pronuncia sobre ela – em sede de inconstitucionalidade material o recorrente limita-se a suscitar a aludida questão da determinabilidade da norma, questão que nada tem a ver com a primeira. Dir-se-á, em contrário, que em termos de ónus de suscitação da questão, este se deve ter por cumprido com a alegação de inconstitucionalidade da norma, ainda que com outro fundamento, e isto até pelo poder que o artigo da LTC confere ao Tribunal Constitucional – o de julgar inconstitucional a norma por fundamentos diferentes dos que vêm alegados. Mas a objecção não colhe. Com efeito, tal construção anularia por completo o fim que se visa com o ónus de suscitação da questão de constitucionalidade perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida – o de permitir que este tribunal se aperceba da questão de constitucionalidade e a aprecie e resolva – devendo ainda ter-se em conta o rigor com que a lei define aquele ónus no artigo 72º nº 2 da LTC (suscitação 'de modo processualmente adequado'). Por outro lado, o aludido poder do Tribunal Constitucional previsto no artigo
79º-C da LTC apenas deve ser exercido – e aqui oficiosamente – quando o Tribunal entender que se verifica inconstitucionalidade, embora por outro fundamento, não tendo que hipotizar (ele próprio ou por 'sugestão' do recorrente) todas as possíveis questões de inconstitucionalidade da norma em causa, para lhe dar resposta negativa. Em suma, pois, o Tribunal conhecerá da questão de inconstitucionalidade orgânica e da questão de inconstitucionalidade material por violação do princípio da determinabilidade das normas punitivas.
3 – A questão de inconstitucionalidade orgânica foi já por diversas vezes apreciada por este Tribunal com solução pacífica – o não julgamento de inconstitucionalidade da Lei nº 12/83, tendo especialmente em conta o disposto nos seus artigos 1º, alínea a) e 4º, alínea a) que definem com suficiente clareza o objecto, o sentido e a extensão da autorização (cfr. Acórdãos nºs.
213/95, 214/95, 302/95, 707/95, 53/98 e 635/98, publicados, o primeiro e o terceiro, in 'Acórdãos do Tribunal Constitucional', 30º vol., pág. 985 e ss. e
31º vol. págs. 437 e segs., respectivamente, e os restantes não publicados.
Destaca-se a seguinte passagem do acórdão nº. 302/95, de 8 de Junho:
'(...) para decidir a questão de constitucionalidade há, no entanto, e primeiro que tudo, que não esquecer que, na época, era prática parlamentar as leis de autorização legislativa ficarem-se por uma definição mínima, como se pode ver das outras cinco autorizações constantes da Lei nº 12/83, da Lei nº
8/83, de 11 de Agosto (autorização em matéria de tráfico de diamantes), da Lei nº 27/83, de 8 de Setembro (autorização para definir em geral ilícitos criminais), da Lei nº 28/83, de 8 de Setembro (autorização sobre suspensão temporária do contrato de trabalho), da Lei nº 29/83, de 8 de Setembro
(autorização para rever a orgânica dos tribunais administrativos e fiscais), da Lei nº 30/83, de 8 de Setembro (autorização para alterar os estatutos das empresas públicas) e, em data anterior (anterior mesmo à revisão constitucional de 1982 - num tempo, portanto, em que as autorizações legislativas não tinham que indicar o sentido), da Lei nº 24/82, de 23 de Agosto (autorização para aprovação de um novo Código Penal e para a adopção de disposições adequadas de direito criminal, de processo criminal e de organização judiciária).
Depois, há também que ter presente que, tratando-se, na autorização legislativa aqui sub iudicio - não, propriamente, de conferir poderes ao Governo para produzir, ex novo, todo um corpo normativo -, sim de o autorizar a 'alterar o regime em vigor', actualizando-o e criando novos tipos de ilícitos (crimes e contravenções), para o que, no tocante às penas, devia tomar 'como ponto de referência' 'a dosimetria do Código Penal', o que a Assembleia fez foi fornecer-lhe um primeiro modelo de referência para as infracções que não representassem a criação de novos tipos de ilícito - modelo de referência que era (para além do Código Penal) o Decreto-Lei nº 41.204, de 24 de Julho de 1957
(alterado, entretanto, entre outros, pelos Decretos-Leis nºs 43.860, de 16 de Agosto de 1961, 308/71, de 16 de Julho, 340/73, de 6 de Julho, 476/74, de 24 de Setembro, e 341/76, de 12 de Maio), que continha o regime das infracções contra a saúde pública e contra a economia.
(...)
Sendo isto assim, a Lei nº 12/83, de 24 de Agosto - recte, o seu artigo 1º e respectiva alínea a) e a alínea a) do seu artigo 4º -, não sendo, propriamente, um modelo de perfeição ou completude, no que respeita à definição do sentido e da extensão da autorização para legislar 'em matéria de infracções antieconómicas e contra a saúde pública', contém ainda um conteúdo mínimo: sabe-se qual a matéria sobre que o Governo ficou autorizado a legislar, e este ficou a saber que se tratava de rever o regime em vigor (actualizando-o e criando novos tipos de crimes e contravenções), com vista a cumprir o objectivo de obter 'maior celeridade e eficácia na prevenção e repressão' deste tipo de criminalidade, e de criar novas penas e modificar as actuais, mas sempre tomando como modelo de referência a dosimetria do Código Penal - e tudo, em termos de os tribunais poderem verificar se o sentido da autorização foi ou não respeitado
(cf. os acórdãos nºs 107/88 e 473/89, 70/92 e 194/92, Diário da República, I série, de 21 de Abril de 1988, II série, de 26 de Setembro de 1989, de 18 de Agosto de 1992 e de 25 de Agosto de 1992).
(...)
Que a lei de autorização legislativa aqui sob exame cumpre o mínimo constitucionalmente exigido em matéria de definição do sentido e da extensão
(não se tratando, assim, de um cheque em branco), foi coisa que, após debate parlamentar, a própria Assembleia teve por adquirido.
(...)
A Lei nº 12/83, de 24 de Agosto, [recte, o seu artigo 1º e respectiva alínea a) e alínea a) do artigo 4º], não viola, pois, o artigo 168º, nº 2, da Constituição (versão de 1982)'. Não se descortinam razões para alterar esta jurisprudência sendo certo que o recorrente é no mínimo parcimonioso na substanciação deste vício de inconstitucionalidade, como se reconheceu no acórdão recorrido no trecho que se transcreve:
'Afirma o recorrente que 'é o próprio Dec.-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro, que enferma do vício de inconstitucionalidade em consequência dos termos vagos e imprecisos da própria autorização legislativa sobre a qual aquele diploma veio a assumir a forma de lei'. Mas o recorrente não concretiza quais os 'termos vagos e imprecisos da própria autorização legislativa', pelo que este Supremo Tribunal não pode perscrutar qual o pensamento do arguido ao sustentar a inconstitucionalidade dos artºs. 36º e 39º do Dec.-Lei nº. 28/84.' Improcede, assim, este fundamento do recurso.
4 – O artigo 29º da Constituição estabelece o regime constitucional da lei criminal. Dos seus nºs 1 e 3 resulta que (a) só a lei pode definir crimes e os pressupostos das medidas de segurança, (b)ninguém pode ser sentenciado criminalmente ou sofrer medida de segurança senão em virtude de lei anterior que declare punível a acção ou omissão e fixe os pressupostos daquela medida, (c) as penas e medidas de segurança aplicadas têm que estar expressamente cominadas em lei anterior. Do princípio da tipicidade consagrado nestes dispositivos constitucionais decorre a proibição de normas que criam tipos legais de crimes e/ou estabelecem penas ou medidas de segurança, formuladas em termos vagos (princípio da determinabilidade).
Ora, no caso, é desde logo questionável que se esteja perante uma norma criminal punitiva no sentido de norma que estabeleça uma pena ou uma sanção criminal – ela prevê a restituição de quantias ilicitamente recebidas por quem é condenado pela prática de um crime de fraude na obtenção de subsídio. Esta restituição é inerente ao ilícito cometido e é um efeito necessário do crime (cfr. Maria da Conceição Martins, 'A interpretação do artigo 39º do Decreto-Lei nº 28/84' in BMJ 454, pág. 106) com a medida correspondente à quantia que não teria sido atribuída se a entidade que concedeu o subsídio tivesse tido conhecimento da fraude Admitindo, ainda assim, que o princípio da determinabilidade expresso no artigo
29º da Constituição se imponha neste tipo de normas, certo é que a norma ínsita no artigo 39º do Decreto-Lei nº 28/84 o não infringe. Dispõe o preceito, com a epígrafe 'Restituição de quantias':
'Além das penas previstas nos artigos 36º e 37º, o tribunal condenará sempre na total restituição das quantias ilicitamente obtidas ou desviadas dos fins para que foram concedidas.' Ora, é manifesto que a norma não enferma de qualquer vaguidade; ela é precisa na sua previsão e na sua estatuição, não dando lugar, nestes aspectos, a qualquer dificuldade interpretativa: provados os crimes punidos nos artigos 36º e 37º do diploma, o arguido é necessariamente condenado também na restituição das quantias que ilicitamente (porque se provou o ilícito) recebeu. A referência que o recorrente faz às disposições da Portaria nº 1170-D/90, de 30 de Novembro e do Regulamento CEE nº 1260/90, de 11 de Maio, em suposta 'relação normativa' com o artigo 39º do Decreto-Lei nº 28/84, não infirma o que se deixa dito, desde logo por este preceito ser muito anterior àqueles Portaria e Regulamento e aplicável independentemente do que eles dispõem - não é necessária a sua conjugação para que seja obrigatória a condenação do arguido na restituição das quantias ilicitamente recebidas, nem elas tornam mais claro o que já resulta inequívoco da norma em causa. Improcede, pois, também, este fundamento do recurso
5 – Decisão: Pelo exposto e em conclusão, decide-se negar provimento ao recurso. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 Ucs. Lisboa, 18 de Março de 2003 Artur Maurício Maria Helena Brito Carlos Pamplona de Oliveira Luís Nunes de Almeida (com declaração de voto junta) José Manuel Cardoso da Costa (acompanhando a declaração de voto do Exmº Conselheiro Vice-Presidente, Luís Nunes de Almeida)
Declaração de voto
Entendi que o Tribunal deveria ter apreciado o fundamento de inconstitucionalidade consistente na eventual violação do artigo 30º, nº 4, da Constituição.
Com efeito, das disposições conjugadas dos artigos 70º, nº 1, alínea b), e 72º, nº 2, da LTC, apenas resulta o ónus de suscitação, perante o tribunal a quo, e de modo processualmente adequado, da questão de inconstitucionalidade da norma que se pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional. Mas já não resulta que, perante o Tribunal Constitucional, não possam ser invocados outros fundamentos de inconstitucionalidade – antes, pelo contrário, essa faculdade constitui uma decorrência dos poderes de cognição do Tribunal, o qual pode julgar a norma inconstitucional com fundamento na violação de normas ou princípios constitucionais diversos daqueles cuja violação foi invocada, como expressamente se preceitua no artigo 79º-C da mesma LTC.
E não se diga que tal construção anularia por completo o fim que se visa com o ónus de suscitação antecipada – o de permitir que o tribunal a quo se aperceba da questão de constitucionalidade e a aprecie e resolva. É que, por um lado, o que o tribunal a quo tem que saber é que existe uma questão de inconstitucionalidade a resolver e decidir, sendo secundário o fundamento invocado, já que, também ele a pode decidir com fundamento diverso, por força do disposto no artigo 204º da CRP e do princípio jura novit curia; e, por outro lado, se acaso se pretendesse que o tribunal a quo se pronunciasse sempre previamente sobre o concreto fundamento de inconstitucionalidade a apreciar pelo Tribunal Constitucional, também se não permitiria que este viesse a decidir oficiosamente com fundamento diverso.
Finalmente, assinale-se a inversão lógica que subjaz à ideia de que o poder consignado no artigo 79º-C da LTC apenas deve ser exercido quando o Tribunal concluir pela existência de inconstitucionalidade, ainda quando o fundamento tenha sido adiantado pelo recorrente nas suas alegações: é que, então, o conhecimento desse fundamento fica, afinal, dependente do julgamento sobre o seu fundo, o que significa que o Tribunal acaba sempre por proceder à sua apreciação, embora de forma implícita Luis Nunes de Almeida