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Processo n.º 206/03
2ª Secção Relator – Cons. Paulo Mota Pinto
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.A. reclamou, nos termos do artigo 688º do Código de Processo Civil, para o Presidente do Tribunal da Relação do Porto, do despacho do Tribunal de Família e Menores do Porto que, por falta de legitimidade, não admitira o recurso que pretendera interpor, para o Tribunal da Relação do Porto, de decisão judicial que ordenara a transferência da menor B. para outra entidade, situada no âmbito da segurança social, depois de, no âmbito de processo tutelar de promoção e protecção, anteriormente haver sido decretada a confiança provisória da dita menor à reclamante, por um período de seis meses, e de haver sido por duas vezes prorrogada. A reclamação foi indeferida em 17 de Dezembro de 2002, com os seguintes fundamentos:
“A A., com sede na Rua ----------, n.º -------, nesta cidade do ---------, é uma instituição de solidariedade social de acolhimento de crianças em perigo. Sendo que a situação da menor foi seguida pelos Serviços de apoio do Tribunal, o que determinou a prorrogação da medida por mais duas vezes (fls. 39 e 51) e os exames de avaliação psicológica que determinaram o despacho de que se pretende recorrer. Com o despacho judicial de ‘confiar a menor provisoriamente por um período de seis meses’ ou ‘entregar a menor à Instituição’, de modo algum significa entregar a guarda e representação da menor para os efeitos que a Reclamante se arroga. A legitimidade para recorrer das decisões sobre medidas de promoção e protecção aplicadas a menores prevista na parte final do art. 123.º, n.º 2, da Lei n.º 147/99, é idêntica à faculdade para requerer diligências e oferecer meios de prova do art. 104.º, nº. 1, e intentar o processo do art. 105.º, n.º 2, da mesma Lei a ‘quem tiver a guarda de facto da criança ou do jovem’. A reclamante não tem tal qualidade, pois que a B. lhe foi confiada por decisão judicial, apenas para a acolher, prover ao seu sustento, educação e conforto. Sob a direcção e decisão do Tribunal de Menores, este com o poder de decidir sobre a manutenção, alteração ou cessação da medida nos termos da lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo – Lei n.º 147/99, de 1 de Setembro – v. art. 34.º e segs. Nem poderes de representação da menor no âmbito do disposto no art. 123.º do C. Civil, tanto mais que nem inibição do poder paternal, nem regulação do poder paternal foi decretado sobre a menor, pelo que é inaplicável o disposto nos arts. 1878.º, 1906.º, 1907.º ou 1918.º do mesmo Código. A Reclamante nem parte no processo é, não ficou vencida no despacho em causa nem directa e efectivamente prejudicada por ele. Pelo que não pode interpor recurso de tal decisão por falta de legitimidade nos termos do citado art. 123.º, n.º 2, nem pelo princípio geral do art. 678.º do C.P.C. Louva-se o interesse que a Reclamante revela na defesa do bem estar e no que pensa ser o melhor para a menor, a continuação na sua Instituição. Mas não lhe assiste o direito a opor-se ao que judicialmente foi decidido.”
2.Inconformada, a reclamante veio arguir nulidades, por omissão de pronúncia, entre as quais se destaca
“[d]a inconstitucionalidade do art. 123.º LPCJP, nos termos que constam expressamente do ponto 25 da mesma reclamação, reiterando-se que
2.4.1. a interpretação pretendida do art.º 123.º LPCJP, feita pela decisão de 1ª instância, viola o princípio constitucional da igualdade, consagrado no art.º
13.º da CRP;
2.4.2. pois que seria inconcebível admitir legitimidade para recorrer a quem detenha a guarda de facto da criança,
2.4.3. e não a conceder a quem possua a sua guarda de direito, por força de decisão judicial em que essa guarda lhe foi concedida,
2.4.4. ou sequer admitir que, na pior das hipóteses, essa interpretação permita sustentar que a entidade, que é a reclamante, a quem foi confiada a guarda da criança por decisão judicial e a mantenha na sua companhia, não tenha, também e por natureza física (!), a guarda de facto da mesma,
2.4.5. sendo, em qualquer caso afinal, tratada desigualmente da pessoa que, por exemplo, tenha a guarda de facto por ter ‘agarrado’ a criança, ‘sequestrado’ a criança, ‘raptado’ a criança, recebido, abusivamente ou não, a criança em sua casa, etc., etc..
2.3.6. ora esta questão não foi decidida no douto despacho.” Por decisão de 21 de Fevereiro de 2003, o Presidente do Tribunal da Relação do Porto deu razão em parte à reclamante, e afirmou que
“Na verdade, não conhecemos da alegação nestes autos que a interpretação do art.
123.º da LPCJP, nos termos em que foi feita no despacho reclamado violaria o art. 13.º da CRP, ‘pois que seria inconcebível admitir legitimidade para recorrer a quem detenha a guarda de facto da criança e não a conceder a quem possua a sua guarda de direito, por força de decisão judicial em que essa guarda lhe foi conferida’. Voltamos a reafirmar que a B. foi confiada à Reclamante por decisão do Tribunal de Menores, donde provém este apenso, apenas para a acolher, prover ao seu sustento, educação e conforto. É ao Tribunal de Menores que compete decidir sobre a manutenção, alteração ou cessação da medida nos termos em que lhe foi aplicada. A Reclamante não tem a ‘sua guarda de direito’, conceito não previsto na referida LPCJP. Donde não se verificar qualquer inconstitucionalidade.”
3.Desta decisão vem interposto, pela reclamante, o presente recurso de constitucionalidade, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da constitucionalidade “do art. 123.º da Lei n.º 147/99, de 01.09 (LPCJP), na interpretação restritiva que a esta norma foi dada pela decisão recorrida, em sentido idêntico ao patrocinado pela primitiva decisão reclamada”, por violação do “princípio constitucional da igualdade, consagrado no artigo 13.º da CRP”. A reclamante concluiu as suas alegações nos seguintes termos:
“1º – O recurso é interposto do douto despacho do Ex.mo Senhor JuizDesembargador Presidente do Tribunal da Relação do Porto de 28.01.03, que decidiu a reclamação ao abrigo dos art.ºs 688.º e 689.º CPCiv., completado pelo de 21.02.03 que decidiu a arguição de nulidade daquele ao abrigo dos art.ºs
668.º-1-d) e 668.º-3-1ª parte, CPCiv..
2º – Destas decisões não há recurso ordinário (CPCIV, art.º 689.º-2) – pelo que
é ilícito processualmente o presente recurso para o Tribunal Constitucional, assim se cumprindo o pressuposto do art.º 70.º-2 e 3 da Lei n.º 28/82.
3º – O recurso é interposto ao abrigo da alínea b) do art.º 70.º-1 da cit. Lei n.º 28/82 – com esta indicação se cumprindo o primeiro pressuposto do art.º
75.º-A-1 da mesma Lei.
4º – A norma cuja inconstitucionalidade se pretende que o Venerando Tribunal Constitucional aprecie é a do art.º 123.º da Lei n.º 147/99, de 01.09 (LPCJP), na interpretação restritiva que a esta norma foi dada pela decisão recorrida, em sentido idêntico ao patrocinado pela primitiva decisão reclamada.
5º – Esta interpretação restritiva confere legitimidade para recorrer a quem detenha a guarda de facto da criança e não a confere – como é o caso da ora recorrente –, como detendo guarda de facto ou de direito, a quem possua essa guarda por força de decisão judicial em que essa guarda tenha sido conferida – com esta indicação se cumprindo o segundo pressuposto do art.º 75.º-A-1 da mesma Lei n.º 28/82.
6º – A norma ou princípio constitucional considerado violado foi o princípio constitucional da igualdade, consagrado no art.º 13.º CRP, assim também violado
– com esta indicação se cumprindo o primeiro pressuposto do art.º 75.º-A-2 da mesma Lei n.º 28/82.
7º – A peça processual em que a recorrente oportunamente suscitou a dita questão de inconstitucionalidade foi a da citada reclamação, formulada esta nos termos do art.º 688.º CPCIV., renovadamente suscitada, como tendo havido omissão de pronúncia sobre ela, no subsequente requerimento de arguição de nulidade da primeira decisão do Ex.mº Senhor Juiz-Desembargador Presidente do Tribunal da Relação do Porto – com esta indicação se cumprindo também o segundo pressuposto do art.º 75.º-A-2 da mesma Lei n.º 28/82.
8º – A questão processual suscitada está na sede da legitimidade, existindo esta se a interpretação feita pela decisão recorrida for considerada inconstitucional, como se sustenta – pelo que, sob pena de se denegar a possibilidade de apreciação da constitucionalidade em causa, a requerente tem legitimidade para o presente recurso.
9º – Atrás se fez uma exaustiva interpretação do citado art.º 123.º da Lei n.º
147/99, de 01.09 (LPCJP), na parte em que este confere legitimidade a quem detenha a «guarda de facto» do menor (seu n.º 2).
10º – O Tribunal recorrido fez uma interpretação restritiva daquela norma, denegando legitimidade para recorrer à ora recorrente, com o fundamento em que, tendo esta a guarda da menor conferida por decisão judicial isso significava que não tinha a sua guarda de facto.
11º – Deste modo, o presente recurso tem por fundamento que aquela interpretação restritiva dada pelo tribunal a quo ao art. 123.º da L.P.C.J.P é inconstitucional, por violação do princípio da igualdade e do artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa.
12º – Com base nesse artigo, a A. recorreu da decisão do Tribunal de Menores e de Família do Porto, que ordenou a transferência para outra Instituição da B., menor que tinha sido entregue à A. por aquele Tribunal.
13º – O Tribunal pronunciou-se, e depois a Relação corroborou essa pronúncia confirmando a decisão da 1ª Instancia, no sentido da ilegitimidade da A., com o fundamento essencial de que esta não possuía a «guarda de facto» da B., albergando a tese de que o art.º 123.º da L.P.C.J.P. circunscreve a quem detenha aquela guarda a legitimidade e que a situação da recorrente não cabe naquele conceito .
14º – Todavia, como desenvolvidamente se deixou expresso nas alegações que precedem e aqui se dão por reproduzidos, uma tal interpretação restritiva da invocada norma do artigo 123.º da L.P.C.J.P., a entender-se assim, violará a Constituição da República Portuguesa, o seu princípio da igualdade e o seu art.º
13.º.
15º – Por isso deve ser declarado por este venerando Tribunal Constitucional que a interpretação conferida pelo Tribunal à dita norma, nos termos em que o fez e se deixaram expressos, torna essa norma inconstitucional, só deixando de o ser se for interpretada no sentido de que a recorrente, na situação jurídica que possui de detentora de facto e de direito dimanante da confiança que lhe foi feita da menor B. por anterior decisão judicial, tem legitimidade para recorrer da nova decisão judicial que altera o regime de confiança da mesma menor, atribuindo-a a outrem.” Nas suas contra-alegações, o Ministério Público junto deste Tribunal suscitou a questão prévia da inutilidade do recurso interposto, concluindo:
“1.º – Tendo a decisão recorrida assentado claramente num duplo fundamento alternativo, traduzido na invocação das normas constantes do artigo 123.º da Lei n° 147/99 (denegando legitimidade para recorrer à reclamante com base em que esta não tem a ‘guarda de facto’ do menor) e do princípio geral constante do artigo 678.º do Código de Processo Civil (traduzido em a entidade recorrente não ser parte no processo, não tendo ficado vencida face ao despacho impugnado e não sendo directa e efectivamente prejudicada por ele) – e limitando-se o recorrente a impugnar a constitucionalidade daquela primeira ‘norma’ – não tem utilidade
(nem interesse processual) a dirimição de tal questão, já que a decisão recorrida sempre permaneceria incólume, com base na outra norma, não objecto de impugnação pelo recorrente.
2º – Não traduz consagração de um regime jurídico arbitrário ou discricionário a interpretação da norma, constante do n.º 2 do artigo 123º da Lei n.º 147/99, em termos de apenas ser admissível o recurso da pessoa física que, embora apenas no plano fáctico, vem exercendo a ‘guarda de facto’ do menor, assumindo reiteradamente (embora sem legitimação normativa ou judicial) o núcleo essencial das responsabilidades parentais.
3º – Já não detendo, porém, tal legitimidade para recorrer das medidas atinentes
à promoção e protecção de menores as pessoas colectivas que – em termos institucionais e por incumbência do tribunal – são chamadas a assumir, em termos precários e provisórios, uma tarefa de acolhimento de crianças, provendo ao seu sustento, educação e conforto, sem outorga de poderes de representação – e sempre sob o poder decisório do tribunal com que cooperam.
4º – Termos em que, pelas razões apontadas, não deverá conhecer-se, por inutilidade, do recurso.” Notificada para se pronunciar sobre a questão prévia suscitada pelo Ministério Público, a recorrente veio dizer o seguinte:
“1. Está mais do que explicitado que a questão da legitimidade é una, pelo que não é divisível nos dois planos autónomos que são pretendidos na suscitada questão prévia.
2. É porque o Tribunal comum entende que a recorrente não tem a guarda de facto do menor, face ao art. 123º-2 da Lei n.º 147/99 que lhe não reconhece que tenha ficado vencida e não tenha sido directamente prejudicada.
3. Nada mais há a dizer, pois que tudo dito está nas alegações que a recorrente apresentou.” Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
4.O presente recurso vem intentado ao abrigo do disposto no artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional. Ora, como se sabe, no direito constitucional português vigente, apenas as normas são objecto de fiscalização de constitucionalidade concentrada em via de recurso
(cfr., por exemplo, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 18/96, publicado no Diário da República, II Série, de 15 de Maio de 1996, e J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, Coimbra, 1998, p.
821), com exclusão dos actos de outra natureza (políticos, administrativos, ou judiciais em si mesmos). E, como também é sabido, para se poder conhecer do recurso de constitucionalidade interposto nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, torna-se necessário, a mais do esgotamento dos recursos ordinários e que a inconstitucionalidade normativa tenha sido suscitada durante o processo, que a norma ou dimensão normativa impugnada tenha sido aplicada, como ratio decidendi, pelo tribunal recorrido.
É a seguinte a redacção do artigo 123º da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo (aprovada pela Lei n.º 147/99, de 1 de Setembro), cujo n.º 2 é impugnado pela recorrente:
“Artigo 123.º Recursos
1 – Cabe recurso das decisões que, definitiva ou provisoriamente, se pronunciem sobre a aplicação, alteração ou cessação de medidas de promoção e protecção.
2 – Podem recorrer o Ministério Público, a criança ou o jovem, os pais, o representante legal e quem tiver a guarda de facto da criança ou do jovem.” Sustenta o Ministério Público que não deve tomar-se conhecimento do presente recurso por a decisão recorrida ter assentado numa “dupla linha argumentativa”, isto é, por não ter assentado apenas na aplicação deste n.º 2 do artigo 123º, considerando que a reclamante não tinha a guarda de facto da criança, exigida como condição de legitimidade, mas também no princípio geral constante do artigo
678º do Código de Processo Civil (e também, apesar de não expressamente invocado, do artigo 680º deste Código), pois não ficou vencida pelo teor do despacho que pretendeu questionar nem foi directa e efectivamente prejudicada pela decisão. Existiria, assim, um outro fundamento, diverso da norma impugnada, por si só bastante para chegar à decisão recorrida, de indeferimento da reclamação, por falta de legitimidade para recorrer. Na verdade, na decisão recorrida pode ler-se, depois de se invocar o artigo
123º, n.º 2, já citado, que a reclamante “nem parte no processo é, não ficou vencida no despacho em causa nem directa e efectivamente prejudicada por ele”, pelo que “não pode interpor recurso de tal decisão por falta de legitimidade nos termos do citado art. 123.º, n.º 2, nem pelo princípio geral do art. 678.º do C.P.C.” Importa considerar, porém, que o artigo 123º da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo contém um regime especial de legitimidade para impugnar as decisões que se pronunciem sobre a aplicação, alteração ou cessação de medidas de promoção e protecção, regime, esse, que, evidentemente, prevalece sobre o regime geral do Código de Processo Civil. Ora, a legitimidade para a interposição do recurso em causa nos presentes autos afere-se, em primeira linha, por esse regime especial, afigurando-se que a invocação do princípio geral do Código de Processo Civil não passou de um argumento adjuvante invocado na decisão recorrida. E, decisivamente, não pode dizer-se que uma eventual decisão de inconstitucionalidade da norma constante do referido regime especial, na medida em que não reconhece legitimidade a entidades que se encontrem na situação da recorrente, não implicaria uma alteração da decisão recorrida, pois é claro que levaria igualmente ao afastamento, por inconstitucionalidade, da mesma solução obtida por uma eventual interpretação desse regime geral. Entende-se, pois, que, apesar da invocação do “princípio geral do art. 678.º do C.P.C.” (e repete-se a nota de que a disciplina de “quem pode recorrer” se contém antes no artigo 680º desse Código de Processo Civil) pela decisão recorrida, o julgamento que este Tribunal viesse a efectuar sobre a norma especial do artigo 123º, n.º 2, da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo não poderia deixar de se reflectir sobre a decisão recorrida. Pelo que – ainda que se considerasse que existe um outro fundamento normativo autónomo para a decisão da questão de legitimidade (problema que se pode deixar em aberto) –, sempre manteria utilidade a apreciação da constitucionalidade daquela norma. Julga-se, pois, improcedente a questão prévia suscitada pelo Ministério Público, passando-se ao conhecimento do recurso.
5.Está em questão a conformidade constitucional da norma do artigo 123º, n.º 2, da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, na medida em que atribui legitimidade para recorrer a quem tiver a guarda de facto da criança ou do jovem, mas não a entidades – como a recorrente – a quem tinha sido atribuída a confiança provisória do menor. Segundo a recorrente, “admitir legitimidade para recorrer a quem detenha a guarda de facto da criança e não a conceder a quem possua a sua guarda de direito, por força de decisão judicial em que essa guarda lhe foi conferida” – situação que seria a sua – violaria o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição. Importa, antes de prosseguir, deixar claro que, na decisão de recursos de constitucionalidade, não compete ao Tribunal Constitucional dizer o melhor direito – ou, sequer, censurar a má aplicação ou interpretação de normas, dentro dos limites da conformidade constitucional –, mas apenas apreciar se a norma, ou interpretação, adoptada deve ser considerada inconstitucional. Está em causa, não apenas o bom ou mau direito, mas o que é não direito, por ser contrário à Constituição da República. E é também claro que não está em causa, no presente recurso, nem a conveniência, no plano de jure condendo, da eventual atribuição de legitimidade a entidades como a recorrente, nem, muito menos, qualquer consequência da forma de desempenho do papel de entidades como a recorrente, na missão de assistência a entidades públicas na protecção de crianças e jovens em risco.
6.No âmbito do processo tutelar de promoção e protecção da menor em causa, esta foi provisoriamente confiada à recorrente, por um período de seis meses, sendo esta medida prorrogada por duas vezes, até que, por despacho de Setembro de
2002, foi determinada a transferência da menor para outra instituição, sob a
égide da segurança social. A confiança provisória havia sido decretada nos termos dos artigos 34º e 35º da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo. Ora, não cabe ao Tribunal Constitucional decidir a questão de saber se a qualificação mais correcta da situação concreta da recorrente era ou não a de titular de “guarda de facto” da menor em causa – e se, portanto, uma correcta qualificação levaria a considerá-la abrangida no artigo 123º, n.º 2, do diploma em questão. Segundo a decisão recorrida, a recorrente “não tem tal qualidade, pois que a B. lhe foi confiada por decisão judicial, apenas para a acolher, prover ao seu sustento, educação e conforto”. E é justamente a exclusão da legitimidade para recorrer a quem recebeu o menor por decisão judicial, quando ela é reconhecida a quem apenas tem a guarda de facto do menor, que, segundo a recorrente, fundaria a violação do princípio da igualdade e a inconstitucionalidade da norma em questão – “tal interpretação restritiva da invocada norma do artigo 123.º da L.P.C.J.P., a entender-se assim, violará a Constituição da República Portuguesa, o seu princípio da igualdade e o seu art.º 13.º.”
7.Este Tribunal tem desde há muito desenvolvido, em numerosos arestos, o seu entendimento das exigências resultantes do princípio constitucional da igualdade. Essa linha jurisprudencial – bem como contributos doutrinários e de outras jurisdições – foi recenseada e resumida, recentemente, no Acórdão n.º
232/2003 (publicado no DR, II série, n.º 138, de 17 de Junho de 2003), da seguinte forma:
«O Acórdão nº 319/00 (in AcTC, 47º vol., pp. 497ss), apoiando-se no Acórdão nº
563/96 (in AcTC, 33º vol., pp. 47ss), procedeu a uma síntese da jurisprudência constitucional relativa ao princípio da igualdade. Assim:
“[O] Tribunal Constitucional teve já a oportunidade de se pronunciar diversas vezes sobre as exigências do princípio constitucional da igualdade, que, no fundo, se reconduz à proibição do arbítrio, proibição essa que, naturalmente, não anula a liberdade de conformação do legislador onde ele a não infrinja. Assim, por exemplo, no Acórdão nº 563/96 (...), publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 33º, pág. 47 e segs., foram assim descritas:
‘1.1. – O princípio da igualdade do cidadão perante a lei é acolhido pelo artigo
13º da Constituição da República que, no seu nº 1, dispõe, genericamente, terem todos os cidadãos a mesma dignidade social, sendo iguais perante a lei, especificando o nº 2, por sua vez, que ‘ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica ou condição social’. Princípio estruturante do Estado de Direito democrático e do sistema constitucional global (cfr., neste sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, pág. 125) o princípio da igualdade vincula directamente os poderes públicos, tenham eles competência legislativa, administrativa ou jurisdicional (cfr. ob. cit., pág.
129) o que resulta, por um lado, da sua consagração como direito fundamental dos cidadãos e, por outro lado, da 'atribuição aos preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias de uma força jurídica própria, traduzida na sua aplicabilidade directa, sem necessidade de qualquer lei regulamentadora, e da sua vinculatividade imediata para todas as entidades públicas, tenham elas competência legislativa, administrativa ou jurisdicional
(artigo 18º, nº 1, da Constituição)”(cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional nº 186/90, publicado no Diário da República, II Série, de 12 de Setembro de
1990). Muito trabalhado, jurisprudencial e doutrinariamente, o princípio postula que se dê tratamento igual a situações de facto essencialmente iguais e tratamento desigual para as situações de facto desiguais (proibindo, inversamente, o tratamento desigual de situações iguais e o tratamento igual das situações desiguais) – cfr., entre tantos outros, e além do já citado Acórdão nº 186/90, os Acórdãos nºs. 39/88, 187/90, 188/90, 330/93, 381/93, 516/93 e 335/94, publicados no referido jornal oficial, I Série, de 3 de Março de 1988, e II Série, de 12 de Setembro de 1990, 30 de Julho de 1993, 6 de Outubro do mesmo ano, e 19 de Janeiro e 30 de Agosto de 1994, respectivamente.
1.2. – O princípio não impede que, tendo em conta a liberdade de conformação do legislador, se possam (se devam) estabelecer diferenciações de tratamento,
‘razoável, racional e objectivamente fundadas’, sob pena de, assim não sucedendo, ‘estar o legislador a incorrer em arbítrio, por preterição do acatamento de soluções objectivamente justificadas por valores constitucionalmente relevantes’, no ponderar do citado Acórdão nº 335/94. Ponto
é que haja fundamento material suficiente que neutralize o arbítrio e afaste a discriminação infundada (o que importa é que não se discrimine para discriminar, diz-nos J.C. Vieira de Andrade – Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 1987, pág. 299). Perfila-se, deste modo, o princípio da igualdade como ‘princípio negativo de controlo’ ao limite externo de conformação da iniciativa do legislador – cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., pág. 127 e, por exemplo, os Acórdãos nºs. 157/88, publicado no Diário da República, I Série, de 26 de Julho de 1988, e os já citados nºs. 330/93 e 335/94 – sem que lhe retire, no entanto, a plasticidade necessária para, em confronto com dois (ou mais) grupos de destinatários da norma, avalizar diferenças justificativas de tratamento jurídico diverso, na comparação das concretas situações fácticas e jurídicas postadas face a um determinado referencial (‘tertium comparationis’). A diferença pode, na verdade, justificar o tratamento desigual, eliminado o arbítrio (cfr., a este propósito, Gomes Canotilho, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 124, pág. 327; Alves Correia, O Plano Urbanístico e o Princípio da Igualdade, Coimbra, 1989, pág. 425; acórdão nº 330/93). Ora, o princípio da igualdade não funciona apenas na vertente formal e redutora da igualdade perante a lei; implica, do mesmo passo, a aplicação igual de direito igual (cfr. Gomes Canotilho, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra, 1982, pág. 381; Alves Correia, ob. cit., pág. 402) o que pressupõe averiguação e valoração casuísticas da ‘diferença’ de modo a que recebam tratamento semelhante os que se encontrem em situações semelhantes e diferenciado os que se achem em situações legitimadoras da diferenciação. O nº 2 do artigo 13º da Constituição da República enumera uma série de factores que não justificam tratamento discriminatório e assim actuam como que presuntivamente – presunção de diferenciação normativa envolvendo violação do princípio da igualdade – mas que são enunciados a título meramente exemplicativo: cfr., v.g., os Acórdãos nºs. 203/86 e 191/88, publicados no Diário da República, II Série, de 26 de Agosto de 1986, e I Série, de 6 de Outubro de 1988, respectivamente, na esteira do parecer nº 1/86, da Comissão Constitucional, in Pareceres da Comissão Constitucional, vol., 1º, pág. 5 e segs., maxime pág. 11. A intenção discriminatória (...) não opera, porém, automaticamente, tornando-se necessário integrar a aferição jurídico-constitucional da diferença nos parâmetros finalístico, de razoabilidade e de adequação pressupostos pelo princípio da igualdade’ ”. Registe-se ainda que, quer a Comissão, quer o Tribunal Constitucional admitiram já a hipótese de, em certos casos, se proceder a diferenciações de tratamento ou, noutra perspectiva, a “discriminações positivas” (sobre a jurisprudência constitucional nesta matéria, cf., por todos, Luís Nunes de Almeida e Armindo Ribeiro Mendes, “Les discriminations positives – Portugal”, Annuaire International de Justice Constitutionnelle, vol. XIII, 1997, pp. 223ss).
(…) Assente a possibilidade de estabelecimento de diferenciações, tornar-se-á depois necessário proceder ao controlo das normas sub judicio, feito a partir do fim que visam alcançar, à luz do princípio da proibição do arbítrio (Willkürverbot) e, bem assim, de um critério de razoabilidade. Com efeito, é a partir da descoberta da ratio da disposição em causa que se poderá avaliar se a mesma possui uma “fundamentação razoável” (vernünftiger Grund), tal como sustentou o “inventor” do princípio da proibição do arbítrio, Gerhard Leibholz (cf. F. Alves Correia, O plano urbanístico e o princípio da igualdade, Coimbra, 1989, pp. 419ss). Essa ideia é reiterada entre nós por Maria da Glória Ferreira Pinto: “[E]stando em causa (...) um determinado tratamento jurídico de situações, o critério que irá presidir à qualificação de tais situações como iguais ou desiguais é determinado directamente pela ‘ratio’ do tratamento jurídico que se lhes pretende dar, isto é, é funcionalizado pelo fim a atingir com o referido tratamento jurídico. A ‘ratio’ do tratamento jurídico
é, pois, o ponto de referência último da valoração e da escolha do critério”
(cf. Princípio da igualdade: fórmula vazia ou fórmula ‘carregada’ de sentido?, sep. do Boletim do Ministério da Justiça, nº 358, Lisboa, 1987, p. 27). E, mais adiante, opina a mesma Autora: “[O] critério valorativo que permite o juízo de qualificação da igualdade está, assim, por força da estrutura do princípio da igualdade, indissoluvelmente ligado à ‘ratio’ do tratamento jurídico que o determinou. Isto não quer, contudo, dizer que a ‘ratio’ do tratamento jurídico exija que seja este critério, o critério concreto a adoptar, e não aquele outro, para efeitos de qualificação da igualdade. O que, no fundo, exige é uma conexão entre o critério adoptado e a ‘ratio’ do tratamento jurídico. Assim, se se pretender criar uma isenção ao imposto profissional, haverá obediência ao princípio da igualdade se o critério de determinação das situações que vão ficar isentas consistir na escolha de um conjunto de profissionais que se encontram menosprezados no contexto social, bem como haverá obediência ao princípio se o critério consistir na escolha de um rendimento mínimo, considerado indispensável
à subsistência familiar numa determinada sociedade” (ob. cit., pp. 31-32). Também a jurisprudência constitucional se orienta nesse sentido. Assim, o Tribunal Constitucional alemão já teve ensejo de afirmar que “(...) um tratamento arbitrário é aquele que (...) não é compreensível por uma apreciação razoável das ideias dominantes da Lei Fundamental” (42 BVerfGE 64, 74) e que
“[A] máxima da igualdade é violada quando para a diferenciação legal ou para o tratamento legal igual não é possível encontrar um motivo razoável, que surja da natureza das coisas ou que, de alguma outra forma, seja compreensível em concreto, isto é, quando a disposição tenha de ser qualificada como arbitrária”
(1 BVerfGE 14, 52; mais recentemente, cf. 12 BVerfGE 341, 348; 20 BVerfGE 31,
33; 30 BVerfGE 409, 413; 44 BVerfGE 70, 90; 51 BVerfGE 1, 23; 60 BVerfGE 101,
108). Caminhos idênticos foram percorridos pelo Tribunal Constitucional português (a título meramente exemplificativo, cf. os Acórdãos nºs 44/84, 186/90, 187/90 e
188/90, in AcTC, 3º vol., pp. 133ss, e 16º vol., pp. 383 ss, 395ss e 411ss, respectivamente). No Acórdão nº 39/88, o Tribunal teve ocasião de dizer: “[O] princípio da igualdade não proíbe, pois, que a lei estabeleça distinções. Proíbe, isso sim, o arbítrio; ou seja, proíbe as diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, que o mesmo é dizer sem qualquer justificação razoável, segundo critérios de valor objectivo constitucionalmente relevantes
(...)” (in AcTC, 11º vol., pp. 233ss). E, curiosamente, também nos Estados Unidos se alude à necessidade de, no estabelecimento de diferenciações, obedecer a um cânone de razoabilidade (reasonableness) (cf. J. Tussman e J. tenBroek,
“The equal protection of the laws”, California Law Review, nº 37, 1949, p. 344, cit. por Gianluca Antonelli, “La giurisprudenza italiana e statunitense sul principio di solidarietà”, Studi parlamentari e di politica costituzionale, nºs.
125-126, 1999, p. 89; sobre o princípio da razoabilidade na jurisprudência norte-americana, cf. Giovanni Bognetti, “Il principio di ragionevolezza e la giurisprudenza della Corte Suprema degli Stati Uniti”, in AA.VV., Il principio di ragionevolezza nella giurisprudenza della Corte Costituzionale. Riferimenti comparatistici, Milão, 1994, pp. 43ss). Neste domínio em especial, merece destaque a evolução da jurisprudência constitucional italiana que, tendo firmado em termos absolutos a ideia da discricionariedade do legislador (sentenze nºs 28/1957 e 56/1958), veio pouco depois indagar se uma dada lei se apresentava “destituída de qualquer justificação” e se a mesma detinha uma “razão idónea” (sentenza nº 46/1959). Na sentenza nº 15/1960, a Corte disse que era sua jurisprudência constante considerar que “(...) o princípio da igualdade é violado mesmo quando a lei, sem um motivo razoável, procede a um tratamento diverso de cidadãos que se encontram em situação idêntica”. A doutrina, de seu lado, não andou longe destas asserções: já Mortati afirmava, por exemplo, que o legislador tinha “a obrigação de não violar as leis da lógica” (Istituzioni di diritto pubblico, Pádua, 1958, p. 715; mais recentemente, cf. a mesma obra, 9ª ed., actualizada, Pádua, 1976, pp. 1412ss). Mais tarde, Carlo Lavagna teve a percepção clara da necessidade do recurso a um princípio de razoabilidade - que definiu como “la utilizzazione razionale dei contesti umani nella costruzione di norme sulla base delle prescrizioni-fonte” - e enunciou os diversos critérios da sua ponderação: a correspondência (corrispondenza), o juízo sobre a finalidade (giudizio sulle finalità), a pertinência (pertinenza), a congruência (congruità) meios/fins, a coerência (coerenza), a evidência (evidenza) e, enfim, a motivação (motivazione)
(cf. “Ragionevolezza e legittimità costituzionale”, in Studi in memoria di Carlo Esposito, vol. III, Pádua, 1973, pp. 1573ss). De igual modo, Vezio Crisafulli reconheceu que o Tribunal, ao indagar de eventuais violações do princípio da igualdade, fá-lo, designadamente, com base numa “cláusula geral de razoabilidade” (cf. Lezioni di diritto costituzionale, tomo II, 5ª ed., revista e actualizada, Pádua, 1984, p. 372). Contrariando a tese do “racional como razoável” (Aulis Aarnio), Gustavo Zagrebelski veio distinguir a ideia de racionalidade - que, em seu entender, corresponderia à coerência lógica - da ideia de razoabilidade, estando esta ligada a uma adequação aos valores de justiça que funciona primacialmente como um vínculo negativo do legislador [cf. La giustizia costituzionale, 2ª ed., Bolonha, 1988, pp. 147ss; idem, “Su tre aspetti della ragionevolezza”, in AA.VV., Il principio..., cit., pp.179ss, em esp. pp. 181-184 (onde parece aproximar os conceitos de razoabilidade e racionalidade)]. E, justamente naquele primeiro sentido - isto é, no sentido de uma racionalidade coerente -, aludiu o Tribunal Constitucional italiano, na sua sentenza nº 204/1982, a um “cânone geral de coerência” (generale canone di coerenza) [cf., sobre a evolução jurisprudencial do Tribunal Constitucional italiano, A. Agrò, “Commento all’art 3 Cost.”, in G. Branca (org.), Commentario della Costituzione, vol. I, Bolonha e Roma, 1975, pp. 141ss; Paolo Barile, “Il principio di ragionevolezza nella giurisprudenza della Corte Costituzionale”, in AA.VV., Il principio..., cit., pp. 21ss; Livio Paladin, “Ragionevolezza
(principio di)”, in Enciclopedia del Diritto – Aggiornamento, vol. I, Milão,
1997, em esp. pp. 900ss].(…)» Ora, assente este conteúdo paramétrico do princípio constitucional da igualdade, importa averiguar se a norma em questão o violará.
8.A resposta à questão posta não pode deixar de ser negativa. Na verdade, corresponda ou não a solução em causa à melhor interpretação da norma a apreciar, é certo que a limitação da legitimidade para recorrer à pessoa que, embora apenas no plano fáctico, exerce a “guarda de facto” do menor e assume reiteradamente (mesmo que sem legitimação normativa ou judicial) o núcleo das responsabilidades parentais, com exclusão da instituição ou pessoa colectiva que, por incumbência do tribunal, é chamada a assumir, em termos precários e provisórios, uma tarefa de acolhimento de crianças, sem outorga de poderes de representação e sob o poder decisório do tribunal com que cooperam, não viola o princípio da igualdade. Tal solução não é arbitrária, baseando-se em critérios objectivos e constitucionalmente relevantes: enquanto num caso está em questão uma pessoa que, no plano fáctico, tem a guarda do menor e que provê às suas necessidades, no segundo está em causa uma instituição que apenas vê ser-lhe confiada a guarda por incumbência do tribunal, o qual mantém o poder de decidir sobre a manutenção, alteração ou cessação desta medida – está em causa, por outras palavras, uma instituição cuja situação é já o resultado de uma medida de protecção e promoção do menor. Na primeira situação está uma pessoa que, mesmo sem legitimação normativa ou judicial, assume as responsabilidades parentais; na segunda está em causa uma pessoa colectiva que apenas é chamada a intervir em colaboração com o tribunal, por incumbência deste, em termos precários e provisórios, para acolher crianças e prover ao seu sustento, educação e conforto, mas sem que lhe sejam concedidos poderes de representação e sempre sob o poder decisório do tribunal com que colaboram. A atribuição de legitimidade para recorrer de decisões sobre medidas atinentes à promoção e protecção de menores apenas à pessoa singular que se encontre na primeira situação, mas já não à pessoa colectiva que se encontre na segunda (por força de anterior decisão judicial) não pode, pois, considerar-se arbitrária ou discricionária. E, por conseguinte, não se verifica qualquer violação do princípio da igualdade na norma em causa, ao excluir a legitimidade para recorrer por parte de instituições que se encontrassem na situação da recorrente
– e isto, repete-se, independentemente da questão de saber se tal solução corresponde ou não à melhor interpretação do direito infra-constitucional, ou se seria mais conveniente no plano de jure condendo atribuir também legitimidade a entidades como a recorrente. Note-se, ainda, estar por demonstrar que resulte da norma em questão, pelo facto de dela resultar a falta de legitimidade para recorrer das instituições que, em colaboração com do tribunal, são chamadas a, em termos precários e provisórios, acolher crianças, qualquer não cumprimento do dever de protecção da crianças previsto no artigo 69º da Constituição, ou uma lacuna de protecção das crianças. Isto, desde logo, considerando o facto de essa protecção estar também especificamente cometida a entidades públicos como as comissões de protecção de crianças e jovens, o Ministério Públicos e os tribunais. Pelo que deve ser negado provimento ao presente recurso. III. Decisão Com estes fundamentos, o Tribunal Constitucional decide: a) Não julgar inconstitucional o artigo 123º, n.º 2, da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, aprovada pela Lei n.º 147/99, de 1 de Setembro; b) Por conseguinte, negar provimento ao presente recurso; c) Condenar a recorrente em custas, com 15 (quinze) unidades de conta de taxa de justiça. Lisboa, 10 de Março de 2004 Paulo Mota Pinto Benjamim Rodrigues Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Rui Manuel Moura Ramos