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Processo n.º 453/03
2ª Secção Relator – Cons. Paulo Mota Pinto
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.A. impugnou judicialmente a liquidação adicional de IRS, na sequência do indeferimento de reclamação graciosa contra a mesma liquidação, defendendo a dedutibilidade de todos os encargos suportados, na sua actividade de profissional independente de análises clínicas, com o pagamento dos serviços de realização das análises por uma sociedade de que era sócia-gerente, nos termos do artigo 26º, n.º 1, alínea a), do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS), relativa a remunerações e encargos obrigatórios com empregados e colaboradores. Por sentença de 30 de Julho de 2002 do Tribunal Tributário de 1ª Instância do Porto, a impugnação foi julgada improcedente, enquadrando-se os custos em causa na alínea e) do n.º 1 do citado artigo 26º (pagamentos de serviços prestados por terceiros) e aplicando-se o limite de 32,5% previsto no n.º 8 deste artigo. Recorreu a impugnante para o Supremo Tribunal Administrativo, defendendo nas conclusões das suas alegações:
“A) As despesas suportadas pela recorrente no pagamento dos serviços executados pela B. subsumem-se nas previstas na al. a) do n.º 1 do art.º 26º do CIRS, na redacção vigente no ano de 1997, não estando, por conseguinte, sujeitas à limitação prevista no n.º 8 do mesmo artigo. B) A douta sentença, ao julgar improcedente a impugnação, por considerar tais despesas enquadráveis na al. e) do n.º 1 do art.º 26º do CIRS, interpretou e aplicou erradamente o preceituado nas als. a) e e) do n.º 1, bem como no n.º 8 do art.º 26º do CIRS, violando-os. C) A entender-se que as referidas despesas são enquadráveis na al. e) do n.º 1 e lhe são aplicáveis as limitações do n.º 8 do art.º 26º do CIRS, a norma ínsita neste último preceito, conjugada com a da al. e), é inconstitucional por violação do princípio da capacidade contributiva.” Por acórdão de 26 de Março de 2003, o Supremo Tribunal Administrativo negou provimento ao recurso, dizendo, quanto à questão de constitucionalidade:
“No que tange à alegada (conclusão C) violação do princípio da capacidade contributiva, sobre não ter a Rct. Densificado os motivos por que entende que a sobredita interpretação (coincidente com a da instância, secundando a da AF) afronta o estatuído no artigo 104º da Constituição (assim se perfilando alegação genérica, por isso que inidónea para alicerçar alteração ou revogação da decisão recorrida) não vislumbramos nela postergação do mesmo princípio fundamental do nosso sistema fiscal.”
2.A impugnante veio então interpor o presente o presente recurso de constitucionalidade, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b) da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da “inconstitucionalidade material da norma ínsita no n.º 8 do art. 26º do Código do IRS, conjugada com a das alíneas a) e e) do n.º 1 do mesmo artigo, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 18/97, de 21 de Janeiro, por violação do princípio da capacidade contributiva”. A recorrente concluiu as suas alegações nos seguintes termos:
“A) Nos autos vem demonstrado que a recorrente no ano de 1997 prestava serviços, enquanto profissional independente, de análises clínicas. B) Para o exercício dessa actividade não dispunha de funcionários nem de equipamento, recorrendo para a realização das análises aos serviços de uma sociedade de que era sócia-gerente (B.). C) As despesas com o pagamento dos serviços prestados pela B. para a realização das análises eram absolutamente indispensáveis para a obtenção dos rendimentos sujeitos a IRS na esfera da recorrente. D) O acórdão recorrido interpreta e aplica o n.º 8 do art. 26º do CIRS, aditado e na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 18/97, de 21 de Janeiro, em conjugação com as alíneas a) e e) do n.º 1 do mesmo artigo do CIRS, na redacção vigente em
1997, no sentido de, não obstante a sua indispensabilidade, a dedução das despesas relativas aos serviços prestados pela B., conjuntamente com as demais não excluídas pelo mesmo n.º 8, estar sujeita ao limite de 32,5% do volume de negócio ou da prestação de serviços. E) A Constituição da República Portuguesa consagra o princípio da capacidade contributiva, que tem como corolário nos impostos sobre o rendimento o princípio do rendimento líquido (“Nettoprinzip”), o qual implica a dedução de todas as despesas que apresentam uma relação de necessária conexão com a obtenção do rendimento sujeito a imposto. F) A norma do n.º 8 do art. 26º do CIRS, aditado e na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 18/97, de 21 de Janeiro, em conjugação com as alíneas a) e e) do n.º 1 do mesmo artigo do CIRS, na redacção vigente em 1997, consoante interpretada e aplicada no acórdão recorrido, viola o referido princípio da capacidade contributiva.” Nas suas contra-alegações, a Fazenda Pública disse:
“A recorrente coloca a tónica da sua alegação na invocação de que a definição legal de um limite para a dedução de determinadas despesas, no caso as despesas relativas a serviços prestados, significaria a violação efectiva do princípio do rendimento líquido. Mas não tem razão:
- Desde logo, a recorrente sempre teria ao seu alcance a opção de, no âmbito do exercício da sua actividade como trabalhador independente, organizar a actividade relativa às análises sob a sua directa dependência, em termos de, legalmente, poder enquadrar tais custos na previsão da alínea a) do n.º 1 do artigo 26º do CIRS.
- O que não pode é, optando pela via da aquisição a terceiros dos serviços próprios da sua actividade, pretender beneficiar das vantagens da dedução total que a lei estabelece para as remunerações e encargos obrigatórios com empregados ou colaboradores.
- Pelo que, fazendo a opção pela aquisição dos serviços a outra entidade, não pode deixar de se conformar com as normas legais que definem o limite das respectivas deduções de despesa. Termos em que não ocorre a alegada inconstitucionalidade, devendo ser mantido o douto Acórdão recorrido.” Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
3.O presente recurso, intentado ao abrigo do disposto no artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, visa, nos termos do respectivo requerimento, a apreciação da ““inconstitucionalidade material da norma ínsita no n.º 8 do art. 26º do Código do IRS, conjugada com a das alíneas a) e e) do n.º 1 do mesmo artigo, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 18/97, de 21 de Janeiro, por violação do princípio da capacidade contributiva”
É a seguinte a redacção destes preceitos:
“Artigo 26º Rendimentos do trabalho independente: deduções
1 – Aos rendimentos brutos da categoria B deduzir-se-ão os seguintes encargos, quando conexos com a respectiva actividade profissional: a) Remunerações e encargos obrigatórios com empregados e colaboradores;
(…) e) Pagamento de serviços prestados por terceiros, com excepção dos referentes a grandes reparações nos bens referidos na alínea c);
(…)
8 – As deduções previstas nos números anteriores, com excepção das constantes das alíneas a), b), c), m) e n) do n.º 1 e sem prejuízo dos limites neles estabelecidos, não poderão exceder, no seu conjunto, 32,5% do volume de negócios ou da prestação de serviços dos sujeitos passivos que não disponham de contabilidade organizada.” Ora, consultando a decisão recorrida e as alegações de recurso, verifica-se que aquilo que, segundo a recorrente, fundamentaria a inconstitucionalidade, por violação do “princípio da capacidade contributiva”, seria a circunstância de,
“não obstante a sua indispensabilidade, a dedução das despesas relativas aos serviços prestados [à contribuinte por terceiro], conjuntamente com as demais não excluídas pelo mesmo n.º 8, estar sujeita ao limite de 32,5% do volume de negócio ou da prestação de serviços.” O que está em causa é, portanto, o limite previsto neste n.º 8 do artigo 26º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares – na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 18/97, de 21 de Janeiro, para o caso da alínea e) do n.º 1, e não, em si mesmas, as alíneas a) e e) do n.º 1 deste artigo 26º – com as quais aquele n.º 8 seria conjugado, para efeitos de apreciação da constitucionalidade, mas que, pelas razões referidas, podem ser excluídas do objecto do recurso. Este recurso tem, assim, por objecto a apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 26º, n.º 8, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, na redacção do Decreto Lei n.º 18/97, de 21 de Janeiro, por referência apenas à alínea e) [e não à alínea a)] do n.º 1 desse artigo 26º, aplicada à recorrente. Esta reputa esse n.º 8 inconstitucional por se afastar da tributação do “rendimento líquido”, que “implica a dedução de todas as despesas que apresentam uma relação de necessária conexão com a obtenção do rendimento sujeito a imposto”, e, portanto – segundo conclui – do princípio da capacidade contributiva.
4.Este Tribunal teve já por mais de uma vez ocasião de aflorar a problemática da consagração constitucional do referido princípio da capacidade contributiva. Assim, no Acórdão n.º 308/2001 (in DR, I série-A, de 20 de Novembro de 2001) declarou-se, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma da alínea c) do nº 1 do artigo 11º do Código do IRS, na interpretação segundo a qual nela estariam abrangidas as pensões de preço de sangue, “por violação do artigo 13º, combinado com o princípio emergente dos artigos 103º, n.º 1, e 104º, n.º 1 da Constituição da República” – isto é, o referido princípio, tendo-se dito neste aresto que “a tributação das pensões em causa – representando verdadeiras indemnizações e não acréscimos patrimoniais – é inconstitucional, por violação dos critérios materiais de justiça fiscal traduzidos, em especial, no princípio da capacidade contributiva (decorrente dos artigos 13º e 103º, nº
1, da Constituição – 'repartição justa dos rendimentos e da riqueza').” Mais recentemente, a propósito do “problema da articulação entre as presunções estabelecidas em matéria tributária e o princípio da capacidade contributiva”, escreveu-se no Acórdão n.º 452/2003:
«(…)o Acórdão nº 84/03 (in D.R., II Série, nº 124, de 29-5-2003, pp. 8338ss) articulou o princípio da capacidade contributiva com a possibilidade de o contribuinte dispor de meios para ilidir os resultados de determinadas formas de tributação:
«O princípio da capacidade contributiva exprime e concretiza o princípio da igualdade fiscal ou tributária na sua vertente de “uniformidade” – o dever de todos pagarem impostos segundo o mesmo critério – preenchendo a capacidade contributiva o critério unitário da tributação. Consiste este critério em que a incidência e a repartição dos impostos – dos
“impostos fiscais” mais precisamente – se deverá fazer segundo a capacidade económica ou “capacidade de gastar” (na formulação clássica portuguesa, de Teixeira Ribeiro, “A justiça na tributação” in “Boletim de Ciências Económicas”, vol. XXX, Coimbra 1987, n.º 6, autor que também se lhe refere como “capacidade para pagar”) de cada um e não segundo o que cada um eventualmente receba em bens ou serviços públicos (critério do benefício). A actual Constituição da República não consagra expressamente este princípio com longa tradição no direito constitucional português - a Carta Constitucional de
1826 expressa-o na fórmula de tributação “conforme os haveres” dos cidadãos e, na Constituição de 33, o artigo 28º consigna-o na obrigação imposta a todos os cidadãos de contribuir para os encargos públicos “conforme os seus haveres”). Não obstante o silêncio da Constituição, é entendimento generalizado da doutrina que a “capacidade contributiva” continua a ser um critério básico da nossa
“Constituição fiscal” sendo que a ele se pode (ou deve) chegar a partir dos princípios estruturantes do sistema fiscal formulados nos artigos 103º e 104º da CRP (cfr. Casalta Nabais “O dever fundamental de pagar impostos”, págs. 445 e segs., onde, no entanto, se defende que, embora o princípio não careça – para ter suporte constitucional – de preceito específico e directo, não é de todo inútil ou indiferente a sua consagração expressa). Autores há, porém, que contestam a operatividade jurídica prática ao princípio da capacidade contributiva, em razão, nomeadamente, da sua acentuada e indiscutível indeterminabilidade, não se estando aí senão perante uma “fórmula passe-partout” imprestável para um teste jurídico-constitucional dos impostos, quer porque se limitaria a “estabelecer que “deve pagar-se o que se pode pagar” sem definir o “poder pagar”, quer porque “não forneceria nenhum critério concreto para a repartição justa dos encargos fiscais por todos os contribuintes”, quer ainda porque “diria muito pouco sobre as taxas a considerar correctas dos impostos ou sobre a sua exacta progressão, caso esta, em alguma medida possa resultar de um tal princípio” (cfr. Casalta Nabais ob. cit. págs. 459 e 461). Diferentemente, outros autores, como é o caso do próprio Casalta Nabais reconhecem ainda “importantes préstimos” ao princípio, o qual “afasta o legislador fiscal do arbítrio, obrigando-o a que, na selecção e articulação dos factos tributários, se atenha a revelações da capacidade contributiva, ou seja erija em objecto ou matéria colectável de cada imposto um determinado pressuposto que seja manifestação dessa capacidade e esteja presente nas diversas hipóteses legais do respectivo imposto” e tem “especial densidade no concernente ao(s) imposto(s) sobre o rendimento” exigindo “um conceito de rendimento mais amplo do que o rendimento-produto” e implicando “quer o princípio do rendimento líquido (...) quer o princípio do rendimento disponível
(...)” (“Direito Fiscal”, págs. 157/168). De todo o modo, deve reconhecer-se não ser fácil retirar consequências jurídicas muito líquidas e seguras do princípio da capacidade contributiva, traduzidas num juízo de inadmissibilidade constitucional de certa ou certas soluções adoptadas pelo legislador fiscal.
[...] certos métodos de tributação, pela sua mesma estrutura, podem, afinal, acabar por conduzir à imposição de situações ou realidades em que falece, de todo, a capacidade contributiva, ou (e com maior probabilidade) em que a medida do imposto exigido não tem efectiva correspondência com essa capacidade, indo além (e, porventura, bastante além) dela; é o que ainda Casalta Nabais (“O dever fundamental...”, págs. 497/498 e 501/502) considera, quando se refere a
“soluções tradicionais do direito dos impostos” com suporte no “interesse fiscal”, em particular as “presunções”, considerando esta técnica legislativa
“movida por legítimas preocupações de simplificação de praticabilidade das leis fiscais”, mas que “tem de compatibilizar-se com o princípio da capacidade contributiva, o que passa, quer pela ilegitimidade das presunções absolutas, na medida em que obstam à prova da inexistência da capacidade contributiva visada na respectiva lei, quer pela idoneidade das presunções relativas para traduzirem o correspondente pressuposto económico do imposto” e, mais adiante, aludindo ao
“rendimento normal”, quando sustenta que ele “apenas poderá ser contestado nos casos em que a tributação conduza a situações de intolerável iniquidade”. Mas, se nos ativermos ao que aquele autor escreve na obra citada [...], não pode deixar de se concluir que a solução em causa se compatibiliza com o princípio da capacidade contributiva. É que, a admitir-se que na hipótese em apreço se está perante uma “presunção”, ela admite prova em contrário e, a considerar-se que se trata de uma tributação pelo “rendimento normal”, não pode dizer-se que ela necessariamente conduza a “situações de intolerável iniquidade”. Não se desconhece que, em escrito posterior, o mesmo autor veio sustentar a desconformidade constitucional da norma ínsita na alínea c) do artigo 87º da LGT
(“O quadro constitucional da tributação das empresas”, in Nos 25 anos da Constituição da República Portuguesa de 1976, ed. AAFDL, 2001). Simplesmente, aí, o fundamento do juízo de inconstitucionalidade situa-se já num plano diferente do das considerações gerais a que atrás se fez referência; embora tendo a ver com elas, ele assenta na equiparação a uma inadmissível
“presunção absoluta de rendimentos” da eventual situação (“situação limite”) em que a tributação do rendimento normal não admita prova em contrário. Mas, no caso, não terá cabimento pôr as coisas nesses termos já que ao contribuinte começa por ser dada a possibilidade de justificar o afastamento da sua matéria tributável dos indicadores-padrão (assim podendo evitar a aplicação destes), o que é afinal menos do que exigir-lhe a prova de que não obteve o rendimento correspondente a tais indicadores». Mais recentemente, no Acórdão nº 211/03 (in D.R., II Série, nº 141, de
21-6-2003, pp. 9240ss), o Tribunal decidiu julgar inconstitucional a norma do artigo 26º do Código do Imposto Municipal da Sisa e do Imposto sobre as Sucessões e Doações, aprovado pelo Decreto-Lei nº 41 969, de 24 de Novembro de
1958, na redacção que lhe foi dada pelo nº 1 do artigo 1º do Decreto-Lei nº
308/91, de 17 de Agosto, ao estabelecer, nas transmissões por morte, não ocorrendo “arrolamento judicial dos [bens] mobiliários”, uma presunção sem admissão de prova em contrário da existência de uma determinada quota de
“mobílias, dinheiro, jóias, e mais objectos de uso pessoal ou doméstico”, por se considerar que uma presunção inilidível, neste domínio, violava o princípio constitucional da igualdade, conexionado com o da capacidade contributiva, contidos nos artigos 13º, nº 1, e 104º, nº 3, da Constituição da República. Recorde-se a redacção da norma aí julgada inconstitucional: “Nas transmissões por morte, quando não houver arrolamento judicial dos mobiliários, presumir-se-á, sem admissão de prova em contrário, a existência de mobílias, dinheiro, jóias e mais objectos de uso pessoal ou doméstico, necessários para perfazer, com os bens da mesma espécie que foram relacionados, um valor mínimo equivalente às seguintes percentagens do activo restante da sucessão [...]”
[itálico acrescentado]. Como se referiu neste Acórdão nº 211/93, citando anterior jurisprudência do Tribunal:
«(...) o princípio da tributação do rendimento real exprime uma exigência constitucional mais vasta que se alarga a toda a tributação do rendimento que, no entanto, exclui o recurso à técnica das presunções absolutas para a definição da incidência ou a determinação da matéria colectável do imposto (cfr. J. M. Cardoso da Costa, “O Enquadramento Constitucional do Direito dos Impostos em Portugal: A Jurisprudência do Tribunal Constitucional”, in Perspectivas Constitucionais. Nos 20 Anos da Constituição de 1976, vol. II, Coimbra, 1997, pág. 425, nota 19). A entender-se diferentemente, surpreender-se-ia desigualdade de regimes para situações análogas, quanto à questão da tributação em si mesma considerada, sujeitando a critérios não idênticos a articulação entre a prestação tributária e o pressuposto económico seleccionado pelo legislador para objecto do imposto, o que tem a ver com o conceito de capacidade contributiva que, não obstante a sua não consagração constitucional, mais não será do que “a expressão
(qualificada) do princípio da igualdade, entendido em sentido material, no domínio dos impostos, ou seja, a igualdade no imposto” (José Casalta Nabais,
“Jurisprudência do Tribunal Constitucional em Matéria Fiscal”, in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. LXIX, 1993, pág. 417. Cfr., igualmente, a anotação do mesmo autor no mencionado Acórdão nº 348/97 na revista Fisco, ano IX, nºs. 84/85, págs. 93 e segs. e Clotilde Celorico Palma,
“Da Evolução do Conceito de Capacidade Contributiva”, in Ciência e Técnica Fiscal, nº 402, pág. 134, nota 34)».
5.Pode, pois, concluir-se que este Tribunal tem considerado o princípio da capacidade contributiva (taxable capacity, também frequentemente designada por capacidade de pagar – ability to pay – ou capacidade económica – wirtschaftliche Leistungsfähigkeit) como “critério básico da nossa ‘Constituição fiscal’” – concretizando o dever de todos pagarem impostos segundo o mesmo critério, a capacidade contributiva é o critério unitário da tributação. Por outro lado, é claro que o “princípio da capacidade contributiva” tem de ser compatibilizado com outros princípios com dignidade constitucional, como o princípio do Estado Social, a liberdade de conformação do legislador, e certas exigências de praticabilidade e cognoscibilidade do facto tributário, indispensáveis também para o cumprimento das finalidades do sistema fiscal. Tem igualmente este Tribunal reconhecido que “o princípio da tributação do rendimento real exprime uma exigência constitucional mais vasta que se alarga a toda a tributação do rendimento”, e não apenas à tributação do rendimento das empresas, para o qual está consagrado expressamente no artigo 104º, n.º 2, da Constituição (“A tributação das empresas incide fundamentalmente sobre o seu rendimento real). Isto, sendo certo, porém, que tal pode assumir diversa intensidade de sentidos consoante o plano da tributação em que se esteja (das empresas ou pessoas singulares). O princípio do rendimento líquido – ou “princípio do rendimento líquido objectivo” – nos termos do qual apenas o montante líquido constitui (verdadeiro) rendimento para o pagamento dos impostos, constitui, pois decorrência do princípio da capacidade contributiva na modelação do imposto sobre o rendimento. E, em princípio, tal justifica que ao rendimento total auferido devam ser deduzidas despesas específicas com a sua obtenção, pois tais gastos constituem uma expressão negativa da capacidade contributiva e, como tal, devem ser excluídos desse conceito se se revelarem indispensáveis à produção ou obtenção do rendimento (sobre tudo isto, cfr., entre nós, José Casalta Nabais, Contratos fiscais, Coimbra, 1994, pág. 284, idem, O dever fundamental de pagar impostos, Coimbra, 1998, págs. 469 e segs. e 521 e seg., e também, por exemplo, José Guilherme Xavier de Basto, O princípio da tributação do rendimento real e a Lei Geral Tributária, in Fiscalidade, n.º 5; especificamente sobre o reflexo dos referidos princípios constitucionais na dedução de custos em matéria fiscal, v. António Moura Portugal, A dedutibilidade de custos na jurisprudência fiscal portuguesa, Coimbra, 2004, esp. págs. 22 e segs.). O princípio da tributação pelo rendimento líquido poderá, porém, sofrer limitações, por via da não aceitação total ou parcial de determinadas despesas incorridas pelo sujeito passivo, sendo de relevar, aliás, que na própria consagração do princípio da tributação segundo o rendimento real pela Constituição da República, para a tributação das empresas, não deixou de se incluir um importante “moderador de sentido” – “fundamentalmente segundo o seu rendimento real”. As excepções ou desvios objectivos à tributação do rendimento líquido são justificadas por combinações de complementação e restrição recíprocas com outas exigência, mais evidentes no caso das limitações inerentes à exigência ou princípio de praticabilidade. Como se salienta na doutrina, “ao legislador não pode de todo ser negada uma certa dose de liberdade para limitar a certo montante, ou até excluir, as deduções específicas, expressão de determinados gastos indispensáveis à obtenção do correspondente rendimento, conquanto que isso seja estritamente excepcional, tenha um fundamento racional e se aplique a todos os rendimentos em relação aos quais não se verifique qualquer razão fundada para tratamento diferente” (Casalta Nabais, Contratos fiscais, cit., pág. 284; cfr. também, no mesmo sentido, idem, O dever de fundamental…, cit., pág. 520). É o caso, designadamente, de despesas que tanto podem ser pessoais ou profissionais (de modo a que o apuramento da sua exacta natureza se torna quase impossível), de despesas com uma natureza dúplice (porque são simultaneamente despesas empresariais e pessoais), com uma natureza de difícil apuramento, por razões de praticabilidade administrativa (inerentes à impossibilidade de controlo) e, mesmo, de justiça (por forma a evitar que alguns contribuintes burlem o sistema apresentando despesas ou gastos inexistentes ou de impossível sindicância). A criação de um limite percentual objectivo para as deduções constitui, assim, uma das técnicas possíveis para combater as situações de impossibilidade de apurar a natureza pessoal ou profissional da despesa, evitando-se – sobretudo quando o contribuinte tem como alternativa outro tipo de custos de mais fácil apuramento – a necessidade de um juízo caso a caso, para investigar a ligação da despesa à actividade profissional do contribuinte, ou, mesmo, introduzindo certos “desvios de normalidade”, criando mais segurança na relação Fisco–contribuinte.
6.No presente caso, não pode deixar de entender-se que o limite previsto na norma em apreço para a dedução de uma certa espécie de custos – com pagamento de serviços prestados por terceiros –, para além de ser objectivo e de se aplicar à generalidade dos rendimentos em causa, tem um fundamento racional, pois é, evidentemente, mais difícil controlar a natureza destes pagamentos do que dos restantes custos excluídos desse limite – designadamente, dos relativos a remunerações e encargos obrigatórios com empregados e colaboradores. Enquadra-se, pois, a fixação de tal limite no âmbito da referida liberdade de conformação do legislador. Acresce que não pode, a propósito da situação em que o contribuinte é deixado, deixar de conceder-se relevância, também, à circunstância de se tratar de um limite cuja aplicação apenas resulta da opção do contribuinte – isto é, da sua natureza opcional, sob dois aspectos. Em primeiro lugar, como salienta correctamente a Fazenda Pública, o sujeito passivo teria a opção de, como trabalhador independente, organizar a sua actividade (relativa a à realização de análises) sob a sua directa dependência, e não pela sua aquisição a terceiros, enquadrando tais custos na previsão da alínea a) do n.º 1 do artigo 26º do CIRS, não sujeitos a qualquer limite. Optando pela aquisição a terceiros dos serviços em questão, próprios da sua actividade, a circunstância de não beneficiar das vantagens da dedução total prevista para remunerações com empregados ou colaboradores é, ainda, de reconduzir a tal forma de organização da sua actividade. Por outro lado, o limite em causa vale apenas para os sujeitos passivos que não disponham de contabilidade organizada, podendo sempre a contribuinte ter optado por tal regime. Ora, tais soluções legais, que introduzem desvios à tributação do rendimento líquido, não podem também deixar de ser consideradas constitucionalmente conformes, desde logo, pode serem criadas e existirem apenas como “opção”, que o sujeito passivo pode exercer – como que “contrapartida” da não exigência de manutenção de contabilidade organizada, desempenhando as exigência de praticabilidade um papel decisivo (e isto, mesmo independentemente de quaisquer situações de abuso ou de confundibilidade entre a despesa pessoal e a profissional). O princípio da capacidade contributiva – e a tributação do rendimento líquido –, constitucionamente consagrado, não vedava, pois, ao legislador a previsão de um tal limite, nestes termos, à dedução de encargos – designadamente, como no presente caso, de encargos com pagamentos de serviços prestados por terceiros. Pelo que deve ser negado provimento ao presente recurso. III. Decisão Com estes fundamentos, o Tribunal Constitucional decide: a) Não julgar inconstitucional o artigo 26º, n.º 8, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, na redacção do Decreto-Lei n.º 18/97, de 21 de Janeiro, na parte relativa à alínea e) do n.º 1 do mesmo artigo 26º; b) Por conseguinte, negar provimento ao presente recurso; c) Condenar a recorrente em custas, com 15 (quinze) unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 10 de Março de 2004 Paulo Mota Pinto Benjamim Rodrigues Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Rui Manuel Moura Ramos