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Proc. n.º 586/01
3ª Secção Relator: Cons. Gil Galvão
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório
1. Por decisão do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra foi o ora recorrente, A., condenado:
a) pela prática de um crime de homicídio negligente, previsto e punido no artigo
137º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 2 anos de prisão; b) na contra-ordenação prevista pelos artigos 87º, n.º 1 e 2 do Código da Estrada, com referência ao art. 148º al. m) do mesmo diploma legal, na coima de
95.000$00; c) na sanção acessória de inibição da faculdade de conduzir por um período de 14 meses.
Decidiu ainda o Tribunal, nos termos do artigo 1º, n.º 1 e 4º da Lei n.º 29/99, de 12 de Maio, perdoar “um ano de prisão e um ano no período de inibição acessória da faculdade de conduzir, sob condição resolutiva de o arguido não praticar infracção dolosa nos três anos subsequentes à data da entrada em vigor desta lei da amnistia”.
2. Inconformados com esta decisão dela recorreram o Ministério Público e o arguido.
O Ministério Público, na sua alegação, sustentou, designadamente, que:
“1. O acórdão recorrido, ao perdoar um ano de prisão e um ano no período de inibição acessória da faculdade de conduzir, aplicadas ao arguido, viola o disposto no art. 2º, n.º 1, al. a), da Lei n.º 29/99 de 12 de Maio.
2. Uma vez que foi dado como provado, no mesmo acórdão, que no momento do acidente, que teve consequências mortais, aquele conduzia com uma taxa de alcoolémia superior a 0,5 gr/litro;
3. E aquela disposição legal dispõe que não beneficiam do perdão e da amnistia concedida «os infractores ao C. Estrada (...) quando tenham praticado a infracção sob a influência do álcool (...), independentemente da pena;
4. Sendo certo que já na Lei n.º 15/94, de 11 de Maio, constava semelhante exclusão, como veio a ser confirmada pelo Acórdão n.º 4/97 desse mesmo Tribunal
(...) que fixou, com carácter obrigatório, a jurisprudência seguinte «A alínea c) do n.º 2 do art. 9º da Lei n.º 15/94, de 11 de Maio, exclui da amnistia e perdão concedidos na mesma lei os crimes cometidos por negligência através da condução sob o efeito do álcool ou com abandono de sinistrado, independentemente da pena».
[...]”.
Por sua vez, a concluir a extensa motivação do recurso que também interpôs (fls.
294 a 353), sustentou o recorrido, designadamente, o seguinte:
“[...] Em suma, o acórdão recorrido ao não suspender a execução da pena aplicada, baseando-se para tal em critérios relativos à culpa, não fundamentando que as exigência de prevenção geral só se alcançariam com a execução da pena de prisão e ao não atender às razões de prevenção especial, na interpretação e aplicação em concreto que fez das normas dos art.s 50º e 71º do Código Penal, violou os princípios da necessidade, proporcionalidade e subsidiaridade e, consequentemente, as disposições da Lei Constitucional em matéria de direitos e deveres fundamentais, art. 18º, n.º 2 da Constituição, para além de ter ainda violado as normas dos art.s 1º, 13º, 25º, n.º 1, na medida em que foi violada a dignidade da pessoa humana (do recorrente) decorrente do princípio da culpa.
31ª - O acórdão recorrido ao julgar como julgou violou as disposições dos art.s
71º, 50º e 137º do Código Penal; o significado normativo dos art.s 50º e 71º, tal como foi determinado e aplicado pelo acórdão recorrido, ofende materialmente o direito da pessoa à sua dignidade, bem como o princípio da culpa, presente nas disposições constitucionais dos artigos 1º, 13º, n.º 1 e 25º, n.º 1.
[...]”.
Emitiu depois parecer o representante do Ministério Público (fls. 378 a 380), onde defende a procedência do recurso do Ministério Público e o parcial provimento do interposto pelo arguido, no que toca à prescrição do procedimento das contra-ordenações.
Respondeu depois o arguido (fls. 382), tendo concluído:
“Não pode julgar-se que a infracção cometida pelo arguido o tenha sido sob a influência do álcool por tais factos não terem sido levados à acusação; por tal a Lei da Amnistia n.º 29/99 de 12 de Maio, nomeadamente o perdão previsto no art. 2º, n.º 1, al. a) é aplicável ao caso em apreço; a ser outro o entendimento deste Tribunal, o que não se espera, violar-se-á a norma contida no art. 32º da Constituição da República Portuguesa”.
3. O Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão de 28 de Março de 2001, decidiu, designadamente:
“[...]
2. Declarar extinto por prescrição o procedimento contra-ordenacional quanto às contra-ordenações de que o arguido vinha acusado e, em consequência, revogar o acórdão recorrido na parte em que o condena na coima de 95.000$00 e na sanção acessória de 4 meses de inibição da faculdade de conduzir (contra-ordenação p. e p. pelo art. 87º, n.ºs 1 e 2 do Cód. Estrada).
3. Revogar o mesmo acórdão na parte em que declarou perdoados um ano na pena de prisão e um ano na sanção acessória.
4. Assim, fica o arguido/recorrente condenado por um crime de homicídio por negligência na pena de 2 (dois) anos de prisão; e ainda, nos termos do al. a) do n.º 1 do art. 69º do Cód. Penal, na sanção acessória de inibição da faculdade de conduzir pelo período de 14 (catorze) meses”.
4. Novamente inconformado o arguido veio de novo aos autos, desta vez para arguir “nulidades e irregularidades” daquela decisão, designadamente por o Tribunal não se ter pronunciado sobre as alegadas inconstitucionalidades suscitadas durante o processo. Aproveitou ainda o arguido este momento processual para suscitar uma nova questão de constitucionalidade. Reportando-se
à alínea a) do n.º 1 do art. 2º da Lei n.º 29/99, de 12 de Maio, refere:
“[...] Com efeito, a norma em causa só exclui a amnistia e o perdão em relação aos transgressores do Código da Estrada, seus regulamentos, legislação complementar e rodoviária, e não aos infractores ao Código Penal. [...] A lei da amnistia é excepcional, e como tal tem de ser aplicada tal como consta do seu articulado, não sendo permitida a interpretação extensiva, sob pena de violação da norma do art. 161-f) da Constituição, violação essa que foi praticada pelo acórdão recorrido e que se invoca. [...]”
5. As arguidas nulidades e irregularidades foram, porém, desatendidas pelo acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 27 de Junho de 2001.
6. É nesta sequência que vem interposto, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do art.
70º da LTC, o presente recurso de constitucionalidade. Pretende o recorrente, nos termos do respectivo requerimento, ver apreciada “a inconstitucionalidade e a ilegalidade das seguintes normas:
a) da aplicação extensiva da norma da alínea a) do n.º 1 do art. 2º da Lei da Amnistia n.º 29/99, de 12 de Maio, por violação do art. 161º-f) da CRP; b) dos artigos 50º e 71º do Código Penal, na interpretação e aplicação em concreto que o acórdão recorrido fez das citadas normas; c) da alínea a) do n.º 1 do art. 2º da Lei da Amnistia n.º 29/99, de 12 de Maio, na interpretação e aplicação em concreto que o acórdão recorrido fez da citada norma, por violação do artigo 32º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa”.
6. Já no Tribunal Constitucional foi o recorrente notificado, nos termos do art.
75º-A da LTC, “para identificar a interpretação ou dimensão normativa ou a norma que extrai dos artigos 50º e 71º do Código Penal e cuja inconstitucionalidade pretende ver apreciada”.
7. Em resposta a esta solicitação apresentou o recorrente o requerimento de fls.
440 e 441, que concluiu da seguinte forma:
“Pretende o recorrente que o Tribunal Constitucional aprecie a interpretação e a aplicação que em concreto o acórdão recorrido fez das normas dos artigos 50º e
71º do Código Penal ao ter este acórdão decidido que a pena de prisão aplicada ao recorrente não pode ser suspensa nem sequer substituída por multa porque, no caso de homicídio involuntário praticado no exercício da condução, com culpa grave e exclusiva do agente e sem concorrência de um circunstancialismo fortemente redutor da culpa, a pena de prisão não deve ser suspensa nem sequer substituída por multa; Porquanto, nos termos do art. 71º do C.Penal e no que respeita à determinação da medida da pena deve ela ser determinada de acordo com os critérios da culpa e da prevenção, cabendo à culpa indicar o limite máximo da pena que ao caso deve caber e sendo em função de considerações de prevenção especial de socialização que deve ser determinada a medida final da pena, assim, na interpretação e aplicação que em concreto fez o acórdão recorrido das normas dos artigos 50º e
71º do C. Penal violou este acórdão os princípios da necessidade, proporcionalidade e da subsidiariedade e, consequentemente, as disposições da Lei Constitucional em matéria de direitos e deveres fundamentais (art. 18º, n.º
2 da CRP) para além de ter ainda violado a dignidade da pessoa humana (do recorrente) decorrente do princípio da culpa.
8. Na sequência foi o recorrente notificado para alegar, o que fez, tendo concluído da seguinte forma:
1ª - O acórdão recorrido, na sua fundamentação, quanto à escolha da pena decidiu que “a culpa do arguido traduzida em negligência grosseira é gravíssima... e que
“a gravidade da ilicitude também não pode deixar de ser considerada como gravíssima, se considerarmos o resultado da conduta do arguido ...”, que “as condições pessoais e económicas do arguido... não revestem um quadro atenuativo de especial valor, pois correspondem a grande parte da situação social e económica dos cidadãos deste país “(...)” e que “As exigências de prevenção geral são também relevantes, face aos elevados números de sinistralidade rodoviária. Todavia, nada consta do cadastro estradal do arguido, encartado desde 1979. Sendo assim, entende-se como equilibrada a pena de 2 (dois) anos de prisão pela prática do crime de homicídio por negligência p.p. pelo art.º 137º, n.º 1 e 2º do Cód. Penal...”
2ª - O acórdão recorrido, na sua fundamentação, quanto à determinação da medida concreta da pena de prisão e à não aplicação de uma pena de substituição decidiu:
“Não deve assim ser decretada a suspensão da execução da pena de prisão, na esteira aliás da jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça no sentido de que, no caso de homicídio involuntário praticado no exercício da condução, com culpa grave e exclusiva do agente e sem concorrência de um circunstancialismo fortemente redutor da culpa, a pena de prisão não deve ser suspensa nem sequer substituída por multa”.
3ª - A determinação definitiva da pena comporta três fases distintas – a determinação da moldura penal aplicável, a determinação da medida concreta da pena e a escolha da espécie de pena que efectivamente deve ser cumprida – procedimento cuja respectiva correcção é susceptível de recurso.
4ª - Pelo que respeita à determinação da medida da pena deve ela ser determinada, segundo o artigo 71º do Código Penal, de acordo com os critérios da culpa e da prevenção, cabendo à culpa indicar o limite máximo da pena que ao caso deve caber e sendo em função de considerações de prevenção especial de socialização que deve ser determinada a medida final da pena.
5ª - No caso em apreço demonstra-se que o agente manifesta no facto ilícito praticado uma atitude que é apenas descuidada em face das exigências do dever-ser jurídico-penal, revelando uma culpa pelo facto apenas negligente, a gravidade da violação do dever objectivo de cuidado que lhe é imposto é, nestas circunstâncias, diminuta, a reflectir-se em sede de medida da pena em termos de o seu limite máximo não dever ultrapassar os três anos de prisão
6ª - Por sua vez, a necessidade de pena para alcançar o objectivo de prevenção especial de socialização é reduzida, praticamente nula; impondo-se que o limite mínimo de um ano da moldura penal seja respeitado – só assim ficando devidamente salvaguardada a defesa do ordenamento jurídico -, é exactamente nesse limite mínimo que as necessidades de prevenção especial de socialização obrigam a que ela se aplique.
7ª - Impondo-se, numa última fase, averiguar da possibilidade de substituição da pena de prisão aplicada, tal deve ser levado a efeito unicamente à luz de um critério de prevenção – geral e especial; o juízo de culpa já foi feito – antes de se colocar a questão da escolha da pena importou já decidir, como vimos, sobre a aplicação da pena de prisão e sobre a sua medida concreta, para o que foi decisivo um juízo (concreto) sobre a culpa do agente -, pelo que não há que repeti-lo agora.
8ª - O que importa averiguar é apenas se, do ponto de vista da prevenção especial, é de substituir a pena de prisão em que o agente foi condenado; resposta que, no caso, só pode ser afirmativa; por um lado, o cariz marcadamente
“socializador” implícito em qualquer pena de substituição é suficiente para alcançar esse objectivo; no caso concreto, o agente sempre revelou uma atitude de temor e fidelidade ao direito, sendo a uma pena não privativa de liberdade que deve ser pedido que exerça uma influência positiva sobre o delinquente, assim se obviando aos efeitos criminógenos estigmatizantes aliados à prisão. Por outro lado,
9ª - a aplicação de uma pena de substituição é ainda suficiente para satisfazer o limiar mínimo de prevenção geral de defesa do ordenamento jurídico: com a aplicação de uma pena de substituição – e estamos aqui perante verdadeira
“penas”, com o que isso implica de inflição de um sofrimento ao condenado – assegura-se plenamente, em certos casos, como é o presente, a “manu[]tenção da fidelidade do público ao direito” e a sua “confiança” na validade daquele.
10º - O acórdão recorrido, através da sua fundamentação não demonstrou que razões de prevenção exigiam a aplicação da pena de prisão efectiva; nele o julgador limitou-se a afirmar que “a facilidade e a frequência com que são cometidas infracções à legislação estradal, (...) agravadas com o alarmante número de mortes e de feridos graves que todos os dias correm nas nossas estradas, constitui um grave problema social contra o qual se deve lutar sem contemplações, cumprindo aos tribunais, através da aplicação de medidas dissuasórias de uma condução perigosa e arriscada, desempenhar uma função de prevenção”.
11ª - Em suma, o acórdão recorrido ao não suspender a execução da pena de prisão aplicada, baseando-se para tal em critérios relativos à culpa, não fundamentando que as exigências de prevenção geral só se alcançariam com a execução da pena de prisão e ao não atender às razões de prevenção especial, na interpretação e aplicação em concreto que fez das normas dos artºs 50º e 71º do Código Penal violou os princípios da necessidade, da proporcionalidade e da subsidiaridade e, consequentemente, as disposições da Lei Constitucional em matéria de direitos e deveres fundamentais, artº 18, n.º 2 da Constituição, para além de ter ainda violado as normas dos artºs 1º, 13º, n.º 25, n.º 1, na medida em que violada foi a dignidade da pessoa humana (do recorrente) decorrente do princípio da culpa.
12º - O acórdão recorrido ao julgar como julgou violou as disposições dos artºs
71, 50º e 137º do Código Penal; o significado normativo dos artºs 50º e 71º, tal como foi determinado e aplicado pelo acórdão recorrido, ofende materialmente o direito da pessoa à sua dignidade, bem como o princípio da culpa, presente nas disposições constitucionais dos artºs 1º, 13º, n.º1 e 25º, n.º 1.
13º - O recurso interposto pelo Ministério Público foi provido e, em sua consequência, foi revogado o acórdão de 1ª instância, na parte em que declarou perdoado um ano na pena de prisão e um ano na sanção acessória, com o fundamento de que o arguido não poderá beneficiar do perdão concedido pela Lei n.º 29/99 de
12 de Maio, porque praticou a infracção por que se viu condenado sob a influência do álcool.
14º - O acórdão em apreço interpretou e aplicou extensivamente a norma da alínea a) do n.º 1 do artº 2 da lei n.º 29/99 de 12 de Maio, a qual estipula que não beneficiam o perdão e da amnistia previstos na presente lei “Os infractores ao Código da Estrada, sem regulamento, legislação complementar e demais legislação rodoviária, quando tenham praticado a infracção sob a influência do álcool ou de estupefacientes ou com abandono de sinistrado, independentemente da pena. A norma em causa só exclui a amnistia e o perdão em relação aos transgressores do Código da Estrada, seu regulamento, legislação complementar e rodoviária, e não aos infractores ao Código Penal. O arguido foi condenado em pena de prisão efectiva por infracção ao artº 137, n.º 1 do Código Penal.
15º - A lei da amnistia é lei excepcional, e como tal tem de ser aplicada tal como consta do respectivo articulado, não sendo permitida a interpretação extensiva, sob pena de violação da norma do artº 161-f) da Constituição, violação esta que foi praticada pelo acórdão recorrido.
16ª Termos em que, julgando-se procedente o presente recurso, se deve julgar inconstitucional a interpretação e aplicação que em concreto o acórdão recorrido fez das normas dos artºs 50º e 71º do Código Penal por violação dos princípios da necessidade, da proporcionalidade e da subsidiaridade e ainda a interpretação e aplicação extensiva que o acórdão recorrido fez da norma da alínea a) do n.º 1 do artº 2º da Lei n.º 29/99 de 12 de Maio, e, consequentemente, seja mandado reformar o acórdão recorrido em conformidade com a decisão de constitucionalidade tomada”.
9. Contra-alegou o Ministério Público, tendo concluído da seguinte forma:
“1 – Não constitui questão de inconstitucionalidade, idónea para integrar o objecto do controlo da constitucionalidade, cometido ao Tribunal Constitucional, a pretensão de que este Tribunal vá sindicar o decidido pela instâncias, de modo a apurar de uma pretensa interpretação extensiva de certo conceito legal, bem como valorar a escolha e medida concreta da pena imposta ao arguido, no quadro de um verdadeiro recurso de amparo.
2 – Termos em que – por manifesta inidoneidade do objecto – não deverá sequer conhecer-se do recurso interposto”.
10. Notificado para se pronunciar, querendo, sobre a questão prévia suscitada pelo Ministério Público, disse o recorrente:
“1 ° - Pretende o recorrente que o Tribunal Constitucional aprecie no presente recurso a interpretação e a aplicação que em concreto o acórdão recorrido fez das normas dos artºs 50 e 71 do Código Penal, ao ter este acórdão decidido que a pena de prisão aplicada ao recorrente não pode ser suspensa nem sequer substituída por multa porque, no caso de homicídio involuntário praticado no exercício da condução, com culpa grave e exclusiva do agente e sem concorrência de um circunstancionalismo fortemente redutor da culpa, a pena de prisão não deve ser suspensa nem sequer substituída por multa.
2°- Nos termos do art.º 71° do C. Penal, e no que respeita à determinação da medida da pena, deve ela ser determinada de acordo com os critérios da culpa e da prevenção, cabendo à culpa indicar o limite máximo da pena que ao caso deve caber e sendo em função de considerações de prevenção especial de socialização que deve ser determinada a medida final da pena.
3° - Assim, na interpretação e aplicação que em concreto fez o acórdão recorrido das normas dos artºs 50° e 71 ° do C. Penal, violou este acórdão os princípios da necessidade, da proporcionalidade e da subsidariedade e, consequentemente, as disposições da lei constitucional em matéria de direitos e deveres fundamentais
(art° 18° n° 2 da CRP), para além de ter ainda violado as normas dos art°s 1º,
13 ° - n° 25 n° 1, na medida em que foi violada a dignidade da pessoa humana ( do recorrente) decorrente do princípio da culpa.
4º - Sempre que os tribunais decidam em desconformidade com a Constituição é possível atacar a decisão junto do Tribunal Constitucional, com base em que a aplicação da norma ou a interpretação dela na decisão viola a Constituição.
5° - A jurisprudência reiterada deste Tribunal tem sido no sentido de que a questão de constitucionalidade tanto pode respeitar a uma norma como à interpretação ou sentido com que foi tomada no caso concreto e aplicada na decisão recorrida (cfr. neste sentido os acórdãos nos 106/92, 151/94, 612/94,
243/95, 342/95, 829/96, 205/99, 655/99 e 383/200).
6° - É verdade que podem entender-se estes recursos como uma espécie de
'quase-recurso de amparo', uma vez que o controlo do Tribunal, nestes casos, não
é da norma mas sim da interpretação/aplicação que o Tribunal recorrido dela fez.
7° - É abundante e reiterada a jurisprudência deste Tribunal no sentido de que o recurso de constitucionalidade em fiscalização concreta cumpre, no actual sistema constitucional português as funções do recurso de amparo. Termos em que se conclui pela improcedência da questão prévia suscitada pelo Ministério Público devendo o presente recurso prosseguir e ser apreciado, em conformidade com a jurisprudência do Tribunal Constitucional”.
Dispensados os vistos, cumpre decidir.
II – Fundamentação
11. Admitido o recurso no Tribunal da Relação de Coimbra, cumpre, antes de mais, decidir se pode conhecer-se do seu objecto, uma vez que a decisão que o admitiu não vincula o Tribunal Constitucional (cfr. artigo 76º, n.º 3, da LTC).
O recurso previsto na al. b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional pressupõe, designadamente, que: a) o recorrente tenha suscitado, durante o processo e de forma processualmente adequada, a inconstitucionalidade de determinada norma jurídica - ou de uma sua interpretação normativa - e que; b) não obstante, a decisão recorrida a tenha efectivamente aplicado, como ratio decidendi, no julgamento do caso
Ora, como vai ver-se, é por demais evidente que não se verificam in casu aqueles pressupostos de admissibilidade do recurso.
11.1. Pretende o recorrente, nos termos do respectivo requerimento de interposição do recurso, ver apreciada, antes de mais, a inconstitucionalidade
“da interpretação extensiva da norma da alínea a) do n.º 1 do art. 2º da Lei da Amnistia n.º 29/99, de 12 de Maio”, por alegada violação do disposto no art.
161º, al. f) da Constituição.
Sobre esta questão alega o Ministério Público, citando a anterior jurisprudência deste Tribunal, concretamente o Acórdão n.º 674/99, que “não constitui questão de inconstitucionalidade normativa, susceptível de ser valorada pelo Tribunal Constitucional, a realização de uma interpretação alegadamente extensiva ou de cariz analógico de conceitos utilizados por normas vigentes em áreas que – como o direito penal – estão submetidas ao princípio da tipicidade ou legalidade”.
Tem, efectivamente, razão o Ministério Público.
Na realidade, como se ponderou no acórdão n.º 674/99 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 45º Volume, pgs. 559 e sgs.), bem como em jurisprudência entretanto já por várias vezes reiterada:
“[...] o recorrente não questiona que o conteúdo da norma, com a interpretação adoptada, seja compatível com o texto constitucional [...]. O que vem questionado pelo recorrente nos presentes autos é tão-só que o julgador possa alcançar esse mesmo conteúdo normativo através de um processo interpretativo[...]. Conclui-se, assim, inequivocamente, que o que vem impugnado pelo recorrente não
é a norma, em si mesma considerada, mas antes, a decisão judicial que a aplicou, por via de um processo interpretativo constitucionalmente proibido. Ora, tal questão - por não respeitar a uma inconstitucionalidade normativa, mas antes a uma inconstitucionalidade da própria decisão judicial - excede os poderes de cognição do Tribunal Constitucional, uma vez que, entre nós, não se encontra consagrado o denominado recurso de amparo, designadamente na modalidade do amparo contra decisões jurisdicionais directamente violadoras da Constituição.
[...] Aliás, se assim não fosse, o Tribunal Constitucional passaria a controlar, em todos os casos, a interpretação judicial das normas penais (ou fiscais), já que a todas as interpretações consideradas erróneas pelos recorrentes poderia ser assacada a violação do princípio da legalidade em matéria penal (ou fiscal). E, em boa verdade, por identidade lógica de raciocínio, o Tribunal Constitucional, por um ínvio caminho, teria que se confrontar com a necessidade de sindicar toda a actividade interpretativa das leis a que necessariamente se dedicam os tribunais - designadamente os tribunais supremos de cada uma das respectivas ordens -, uma vez que seria sempre possível atacar uma norma legislativa, quando interpretada de forma a exceder o seu «sentido natural» (e qual é ele, em cada caso concreto?), com base em violação do princípio da separação de poderes, porque mero produto de criação judicial, em contradição com a vontade real do legislador; e, outrossim, sempre que uma tal interpretação atingisse norma sobre matéria da competência legislativa reservada da Assembleia da República, ainda se poderia detectar cumulativamente, nessa mesma ordem de ideias, a existência de uma inconstitucionalidade orgânica. Ora, um tal entendimento - alargando de tal forma o âmbito de competência do Tribunal Constitucional - deve ser repudiado, porque conflituaria com o sistema de fiscalização da constitucionalidade, tal como se encontra desenhado na Lei Fundamental, dado que esvaziaria praticamente de conteúdo a restrição dos recursos de constitucionalidade ao conhecimento das questões de inconstitucionalidade normativa [...]”.
Esta jurisprudência - que, por manter inteira validade e ser aplicável ao caso, agora se reitera - conduz efectivamente a que não possa conhecer-se, nesta parte, do objecto do recurso, por não estar ali colocada uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa de que o Tribunal deva conhecer.
11.2. No requerimento de interposição do recurso referia ainda o recorrente pretender ver apreciada a inconstitucionalidade da “alínea a) do n.º 1 do art.
2º da Lei da Amnistia n.º 29/99, de 12 de Maio, na interpretação e aplicação em concreto que o acórdão recorrido fez da citada norma, por violação do artigo
32º, n.º 5 da Constituição”. Verifica-se, porém, que nas alegações que posteriormente apresentou o recorrente abandonou claramente esta questão, pois que a ela nunca se refere, pelo que da mesma se não conhecerá.
11.3. Pretendia finalmente o recorrente ver apreciada a inconstitucionalidade
“dos artigos 50º e 71º do Código Penal, na interpretação e aplicação em concreto que o acórdão recorrido fez das citadas normas”, por alegada violação dos princípios da necessidade, da proporcionalidade e da subsidiariedade.
Também desta questão não poderá conhecer-se, como se verá já de seguida.
Como este Tribunal tem afirmado repetidamente nada obsta a que seja questionada apenas uma certa interpretação ou dimensão normativa de um determinado preceito. Porém, nesses casos, tem o recorrente o ónus de enunciar durante o processo, de forma clara e perceptível, o sentido normativo do preceito que considera inconstitucional.
Como se disse, por exemplo, no Acórdão n.º 178/95 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 30º vol., p.1118.) “tendo a questão de constitucionalidade que ser suscitada de forma clara e perceptível (cfr., entre outros, o Acórdão n.º
269/94, Diário da República, II Série, de 18 de Junho de 1994), impõe-se que, quando se questiona apenas uma certa interpretação de determinada norma legal, se indique esse sentido (essa interpretação) em termos de que, se este Tribunal o vier a julgar desconforme com a Constituição o possa enunciar na decisão que proferir, por forma a que o tribunal recorrido que houver de reformar a sua decisão, os outros destinatários daquela e os operadores jurídicos em geral, saibam qual o sentido da norma em causa que não pode ser adoptado, por ser incompatível com a Lei Fundamental”.
Em face da jurisprudência assim firmada importa então decidir se, durante o processo, o recorrente efectivamente enunciou, nos termos antes expostos, o sentido normativo dos artigos 50º e 71º do Código Penal que considera inconstitucional.
Cremos que não.
Como pode ver-se nas alegações que apresentou perante o Tribunal da Relação de Coimbra, e que supra já transcrevemos na parte ora relevante, verificamos que aí não foi suscitada qualquer questão de inconstitucionalidade normativa reportada a uma interpretação dos artigos 50º e 71º do Código Penal, optando o recorrente por imputar à própria decisão recorrida a violação de vários princípios constitucionais.
Para o demonstrar basta transcrever as conclusões daquela alegação em que o recorrente refere a uma alegada violação de vários princípios constitucionais:
“(...)
30ª - Em suma, o acórdão recorrido ao não suspender a execução da pena aplicada, baseando-se para tal em critérios relativos à culpa, não fundamentando que as exigência de prevenção geral só se alcançariam com a execução da pena de prisão e ao não atender às razões de prevenção especial, na interpretação e aplicação em concreto que fez das normas dos art.s 50º e 71º do Código Penal, violou os princípios da necessidade, proporcionalidade e subsidiaridade e, consequentemente, as disposições da Lei Constitucional em matéria de direitos e deveres fundamentais, art. 18º, n.º 2 da Constituição, para além de ter ainda violado as normas dos art.s 1º, 13º, 25º, n.º 1, na medida em que foi violada a dignidade da pessoa humana (do recorrente) decorrente do princípio da culpa.
31ª - O acórdão recorrido ao julgar como julgou violou as disposições dos art.s
71º, 50º e 137º do Código Penal; o significado normativo dos art.s 50º e 71º, tal como foi determinado e aplicado pelo acórdão recorrido, ofende materialmente o direito da pessoa à sua dignidade, bem como o princípio da culpa, presente nas disposições constitucionais dos artigos 1º, 13º, n.º 1 e 25º, n.º 1”.
Ora, a não suscitação, durante o processo, de uma verdadeira questão de inconstitucionalidade normativa impede, só por si, a possibilidade de conhecer do objecto do recurso, por falta de um dos seus pressupostos processuais de admissibilidade..
Verifica-se, porém, que a dificuldade em identificar uma concreta interpretação normativa a que imputar a inconstitucionalidade, susceptível de ser enunciada enquanto dimensão normativa, se mantém quer no requerimento de interposição do recurso, quer na resposta ao convite do Relator para que fosse dado cabal cumprimento ao disposto no art. 75º-Ada LTC.
No requerimento de interposição do recurso que apresentou neste Tribunal o recorrente limita-se a referir, a este propósito, pretender ver apreciada a inconstitucionalidade “dos artigos 50º e 71º do Código Penal, na interpretação e aplicação em concreto que o acórdão recorrido fez das citadas normas”. Limita-se, pois, o recorrente, a suscitar a inconstitucionalidade da aplicação que em concreto a decisão recorrida fez daqueles preceitos, sem, contudo, cuidar de a enunciar enquanto dimensão normativa susceptível de integrar o recurso de constitucionalidade.
E nem mesmo quando expressamente convidado pelo Relator para identificar essa dimensão normativa o recorrente logra fazê-lo. Ilustrativo disso mesmo é a
“síntese conclusiva” da resposta ao convite do relator para que fosse indicada a dimensão normativa dos artigos 50º e 71º do Código Penal cuja inconstitucionalidade o recorrente pretende que o Tribunal aprecie. Refere-se aí:
“Pretende o recorrente que o Tribunal Constitucional aprecie a interpretação e a aplicação que em concreto o acórdão recorrido fez das normas dos artigos 50º e
71º do Código Penal ao ter este acórdão decidido que a pena de prisão aplicada ao recorrente não pode ser suspensa nem sequer substituída por multa porque, no caso de homicídio involuntário praticado no exercício da condução, com culpa grave e exclusiva do agente e sem concorrência de um circunstancialismo fortemente redutor da culpa, a pena de prisão não deve ser suspensa nem sequer substituída por multa; Porquanto, nos termos do art. 71º do C.Penal e no que respeita à determinação da medida da pena deve ela ser determinada de acordo com os critérios da culpa e da prevenção, cabendo à culpa indicar o limite máximo da pena que ao caso deve caber e sendo em função de considerações de prevenção especial de socialização que deve ser determinada a medida final da pena, assim, na interpretação e aplicação que em concreto fez o acórdão recorrido das normas dos artigos 50º e
71º do C. Penal violou este acórdão os princípios da necessidade, proporcionalidade e da subsidiariedade e, consequentemente, as disposições da Lei Constitucional em matéria de direitos e deveres fundamentais (art. 18º, n.º
2 da CRP) para além de ter ainda violado a dignidade da pessoa humana (do recorrente) decorrente do princípio da culpa. (Sublinhado nosso).
Em suma: como, bem, conclui o Ministério Público, em termos substanciais, verifica-se que “o que o arguido verdadeiramente pretende é que este Tribunal Constitucional [...] vá sindicar a concreta decisão das instâncias, no que toca
à escolha e determinação da medida concreta da pena [...]) o que naturalmente transcende o plano do controlo normativo, cometido a este Tribunal.
III. Decisão
Por tudo o exposto, decide-se não conhecer do objecto do recurso. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em oito unidades de conta.
Lisboa, 28 de Abril de 2003 Gil Galvão Alberto Tavares da Costa Bravo Serra Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (no que toca à primeira questão de constitucionalidade, votei o não conhecimento mas pela razão de não ter sido suscitada “durante o processo” (nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82), ou seja, colocada perante o tribunal recorrido, a questão em causa. O recorrente dispôs de oportunidade de a suscitar na resposta de fls 382 (cf. nº 2 do artigo 72º da Lei 28/82). Luís Nunes de Almeida