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Procº nº 656/2003.
3ª Secção. Relator: Bravo Serra.
1. Tendo, pelo Tribunal Administrativo do Círculo d--
------- interposto A. recurso contencioso de anulação da deliberação proferida em 10 de Julho de 1995 pelos administradores da Imprensa Nacional - Casa da Moeda, E.P., - deliberação essa que negou provimento ao recurso hierárquico da decisão proferida em 6 de Dezembro de 1994 pelo Director da Contrastaria
-------------, que lhe aplicara as multas de Esc. 750.000$00, Esc. 3.000.000$00, Esc. 750.000$00, Esc. 10.000$00 e Esc. 15.000$00, pelas infracções aos nº 2 do artº 13º, nº 1 do mesmo artº 13º, nº 2 do artº 12º, nº 1 do artº 3º e nº 1 do artº 14º, todos do Regulamento das Contrastarias, aprovado pelo Decreto-Lei nº
391/79, de 20 de Setembro, além de, ainda, nos termos do nº 4 do artº 95º do mesmo Regulamento, determinar a proibição do recorrente em se matricular nas contrastarias, em qualquer modalidade - o Juiz daquele Tribunal, e no que ora releva, por sentença de 9 de Novembro de 2000, negou provimento ao recurso, o que motivou o impugnante a, do assim decidido, interpor recurso para o Supremo Tribunal Administrativo.
Este Alto Tribunal, por acórdão de 29 de Maio de 2003, concedeu parcial provimento ao recurso, revogando a sentença recorrida na parte em que não anulou a deliberação impugnada quando por ela se determinou a inibição do recorrente em se matricular nas contrastarias.
Para decidir neste particular, o aresto em causa recusou, por inconstitucionalidade, a aplicação da norma constante do já indicado nº 4 do artº 95º do Regulamento das Contrastarias, o que motivou a interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, por banda do Representante do Ministério Público.
2. Determinada a feitura de alegações, rematou a entidade recorrente a por si produzida com as seguintes «conclusões»:
“1° - É exigência constitucional, por força do artigo 30°, n° 4 da Lei Fundamental, que da aplicação de uma pena - independentemente da sua natureza - não pode resultar como sua consequência automática e imediata, a perda de direitos, à revelia da culpa do agente infractor e das necessidades de prevenção.
2° - É por isso inconstitucional a norma do artigo 95° n° 4 do Regulamento das Contrastarias, aprovado pelo Decreto-Lei n° 391/79, de 20 de Setembro, ao estabelecer, como consequência directa e imediata da condenação em multa, a perda de direitos profissionais, traduzida na inibição de matrícula nas contrastarias.
3°- Termos em que, deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade realizado pela decisão recorrida”.
De seu lado, o recorrido não apresentou alegação.
Cumpre decidir.
3. A norma cuja aplicação foi recusada no acórdão ora impugnado reza assim:
Art. 95.º - 1 -
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2 -
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3 -
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4 - As pessoas singulares ou colectivas matriculadas a quem tenha sido aplicada a multa prevista na portaria por infracção do artigo 13º, bem como as pessoas singulares ou colectivas não matriculadas que tenham incorrido na falta prevista no mesmo artigo, ficam impedidas de se tornarem a matricular ou de se matricularem, consoante os casos, em qualquer das contrastarias e de exercerem funções de gerência ou de administração de quaisquer outras pessoas singulares ou colectivas matriculadas nas contrastarias.
5 -
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6 -
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No nº 1 deste mesmo artigo estabelece-se que as infracções a determinadas disposições constantes do Regulamento das Contrastarias, nelas se incluindo as constantes do artº 13º, são puníveis com multa a fixar por portaria, comandando-se no nº 2 que se considera perdida a favor do Estado a parte metálica dos artefactos apreendidos por infracções, por entre outras, ao mesmo artº 13º.
Anote-se que, segundo a definição dada pelo nº 1 do artº
1º do Regulamento em causa, as contrastarias são serviços oficiais essencialmente técnicos, integrados na empresa pública Imprensa Nacional-Casa da Moeda (INCM), e têm como especial função regular e fiscalizar, dentro das áreas da sua competência, o exercício da indústria e comércio de barras e medalhas comemorativas de metal precioso, de artefactos de ourivesaria, com o fim de garantir a espécie e toque do dos respectivos metais.
Por outro lado, o artº 12º, nº 1, prescreve que o punção de fabrico ou equivalente é um punção privativo dos industriais, dos ensaiadores-fundidores ou dos importadores, consoante se destine a marcar os artefactos de ourivesaria e medalhas comemorativas de metal precioso de sua exclusiva produção, a marcar as barras fundidas e ensaiadas nos seu laboratório ou a marcar os artefactos de origem estrangeira importados em seu nome, e serve para, como tais os identificar, responsabilizando os industriais, os ensaiadores-fundidores ou os importadores por quaisquer vícios de fabrico, de fundição ou de qualidade inapreciáveis no ensaio da contrastaria ou praticados, após a marcação, com o seu comprovado reconhecimento.
No nº 2 deste mesmo artº 12º consagra-se que o uso do punção de fabrico ou equivalente é exclusivo da pessoa singular ou colectiva a favor de quem esteja registado ou de seus mandatários, sendo expressamente proibida a sua utilização ou reprodução por qualquer outra pessoa.
Os punções de contrastaria, de acordo com o nº 1 do artº
13º, são cunhos do Estado que servem para aplicar as marcas de garantia do toque dos metais preciosos ou para assinalar determinadas circunstâncias e, nessa qualidade, a sua falsificação, contrafacção ou uso abusivo de que eventualmente sejam objecto constituem factos puníveis nos termos do Código Penal e do Regulamento das Contrastarias.
De acordo com o nº 1 do artº 14º do Regulamento em apreço, toda a pessoa singular ou colectiva que pretenda exercer a indústria ou comércio de barras ou medalhas comemorativas de metal precioso, de artefactos de ourivesaria, pedras preciosas ou de relógios de uso pessoal deverá previamente requerer, para cada modalidade e para cada estabelecimento onde seja exercida, a respectiva matrícula na contrastaria em cuja área se localiza o estabelecimento ou, na sua falta, a residência, sendo que, como se extrai do seu artº 15º, as modalidades de matrícula a conceder pelas contrastarias conferem aos seus titulares determinadas faculdades, descritas nas alíneas a) a o) do seu nº 1.
4. Pela deliberação que foi objecto de impugnação contenciosa, e tal como se viu já, foi aplicada ao recorrido - pessoa singular, devendo anotar-se que é esta a única situação que agora está em causa - a medida constante do transcrito nº 4 do artº 95º, na decorrência das infracções que foram consideradas cometidas pelo mesmo e que foram subsumidas à previsão do artº 13º do Regulamento das Contrastarias, ficando, assim, o mesmo proibido de se matricular nas contrastarias, em qualquer modalidade.
Não se antevê como altamente discutível que a medida em questão se possa configurar como uma verdadeira sanção automática consistente na proibição de matrícula do recorrido nas contrastarias.
Poderá, por isso, sustentar-se que tal sanção, em certa medida, contenderá com a esfera de direitos profissionais da pessoa singular que pretenda exercer a indústria ou comércio de metal precioso, de artefactos de ourivesaria, pedras preciosas ou de relógios de uso pessoal.
4.1. A nossa actual Constituição, partindo da dignidade da pessoa humana, princípio estrutural e fundante de qualquer Estado de Direito, intentou, através da disposição constante do nº 4 do seu artigo 30º, que da aplicação de uma pena possa resultar, de forma meramente automática, a aplicação de uma outra, sem que a aplicação deste última possa ser precedida de uma adequada ponderação judicia, evitando-se, dessa sorte, a atribuição de efeitos estigmatizantes e perturbadores da readaptação social do agente (cfr., sobre este ponto, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, 198, e Mário Torres, Suspensão e demissão de funcionários ou agentes como efeito de pronúncia ou condenação criminais, in Revista do Ministério Público, ano 7, números 25 e 26, 111 e seguintes e 161 e seguintes, artigo de onde se extrai que a opinião deste último autor é a de que aquela disposição constitucional apenas impede que o legislador ordinário possa estatuir preceitos de onde resulte a correspondência automática de certos efeitos a determinadas penas, e já não de que a correspondência dos efeitos automáticos surja pela prática de certos crimes; cfr., igualmente, os Acórdãos deste Tribunal números 16/84 e 127/84, publicados nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 2º volume, 367 e seguintes, e 4º volume, 403 e seguintes).
Tendo em conta que o feito em apreciação se reporta a uma sanção que decorre automaticamente da imposição da pena de multa pelo cometimento de infracções previstas em matéria (hoje) contra-ordenacional, deverá ser sublinhado que este órgão de administração de justiça tem adoptado uma postura de acordo com a qual a injunção contida no nº 4 do artigo 30º do Diploma Básico é também aplicável no domínio do ilícito administrativo (cfr. Acórdãos 282/96, citados Acórdãos, 8º volume, 207 e seguintes, e 522/95, idem,
32º volume, 345 e seguintes).
4.2. Considerando o que acima se veio de expor no sentido de a medida prevista no nº 4 do artº 95º do Regulamento das Contrastarias se afigurar como contendendo com a esfera de direitos profissionais da pessoa singular que pretenda exercer a indústria ou comércio de metal precioso, de artefactos de ourivesaria, pedras preciosas ou de relógios de uso pessoal, e constituindo ela um efeito automático ou ope legis (isto é, um efeito consequente ou necessário e, justamente por isso, independente de uma ponderação concreta) da condenação em multa imposta pela prática dos ilícitos prescritos no artº 13º do mesmo Regulamento, haverá de concluir-se pela enfermidade constitucional da aprecianda norma.
Como assinalou Ferrer Correia, citado no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 16/84 (publicado no Diário da República , 2ª Série, de 12 de Maio de 1984), é precisamente o automatismo, “que não pode aceitar-se na medida em que briga claramente com o fim da pena que se reputa essencial. O da recuperação social do delinquente. Pois é precisamente o seu carácter automático que lhe confere a natureza de labéu, de pena infamante, de marca indelével...”.
Não é, pois, possível ao legislador impor, ex lege, um agravamento punitivo automático, fazendo-o derivar de forma directa e inseparável dos efeitos da decisão condenatória (cfr. José Ignacio Lopez Gonzalez, Revista de Administración Pública, 120, Setembro-Dezembro, 1989, La Inhabilitacion Especial del funcionario Publico y los efectos jurídico-administrativos “ex lege”, que, a dado passo, refere: - “En un Estado social y democrático de Derecho, las determinaciones del Derecho Penal y del Derecho Administrativo sancionatório – inspiradas en los principios de legalidad
y tipicidad, comunes a ambos ordenamientos- agotan todas las facultades del poder punitivo del Estado, en garantia de las libertades públicas y derechos de las personas; mas allá de este poder constitucionalmente reglado, la imposición de medidas punitivas se convierte en una actuación ilegítima (...) carente de justificación jurídica. (...) El legislador no puede sustaer al poder judicial la tipicidad ni la punibilidad de las condutas pénales(...) los derechos fundamentales de la persona impiden una aplicación extensiva del poder punitivo del Estado operando de forma automática ex lege”.
É que, como é bom de ver, o que se pretende, nestas situações, é que à condenação em certa pena se não acrescente, de forma automática e independentemente de ponderação na decisão condenatória, uma consequência «sancionatória» - e «sancionatória» no ponto em que vai implicar a perda de direitos civis, profissionais ou políticos.
Como se escreveu no já aludido Acórdão nº
282/86, “o princípio constitucional do artigo 30º, nº 4, não proíbe que a lei possa definir como penas a privação de direitos profissionais (interdições profissionais) a serem aplicadas judicialmente de acordo com as regras competentes (princípio da culpa, regra da tipificação, adequação entre a gravidade da infracção e a pena, etc). O que ele proíbe é que a privação de direitos profissionais seja uma simples consequência – por via directa da lei – da condenação por infracções de qualquer tipo”.
5. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide:
a) julgar inconstitucional, por violação do nº 4 do artigo 30º da Constituição, a norma do nº 4 do artº 95º do Regulamento das Contrastarias aprovado pelo Decreto-Lei nº 391/79 de 20 de Setembro, enquanto aplicável a pessoas singulares;
b) consequentemente, negar provimento ao recurso.
Lisboa, 13 de Janeiro de 2004
Bravo Serra Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Vítor Gomes Gil Galvão
Luís Nunes de Almeida