Imprimir acórdão
Processo n.º 923/03 Plenário Relatora: Maria Helena Brito
Acordam em Plenário no Tribunal Constitucional:
I Pedido
1. O Procurador-Geral Adjunto em funções no Tribunal Constitucional veio, ao abrigo do disposto no artigo 281º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa e no artigo 82º da Lei do Tribunal Constitucional, requerer a apreciação e declaração da inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 218/99, de 15 de Junho.
2. A norma que constitui o objecto do pedido dispõe como segue:
Artigo 7º Competência territorial
As acções previstas no presente diploma devem ser propostas no tribunal da sede da entidade credora.
O pedido formulado fundamenta-se na circunstância de a norma referida ter sido julgada inconstitucional, pelo Tribunal, em três casos concretos.
Os casos concretos em que tal norma foi julgada inconstitucional são os decididos pelo Acórdão n.º 58/03 (publicado no Diário da República, II Série, n.º 92, de 19 de Abril de 2003, p. 6024 ss), pelo Acórdão n.º 233/03 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt) e pela Decisão Sumária n.º 247/03 (inédita). Em todas essas decisões se considerou que a norma em causa violava o artigo
165º, n.º 1, alínea p), da Constituição da República.
3. Notificado nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 54º e
55º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, o Primeiro-Ministro ofereceu o merecimento dos autos e requereu ao Tribunal que – na hipótese de a norma em questão vir a ser declarada inconstitucional com força obrigatória geral – tivesse em especial consideração “razões imperativas de segurança jurídica e de interesse público, no sentido de fixar temporalmente os efeitos da decisão, reportando-os à data da publicação do respectivo Acórdão, com ressalva das situações litigiosas pendentes, nos termos do n.º 4 do artigo 282º da Constituição”.
4. Apresentado o memorando pelo Presidente do Tribunal, nos termos do artigo 63º, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional, foi o mesmo discutido e definida a orientação do Tribunal, tendo o processo sido distribuído à relatora para a elaboração do acórdão, ao abrigo do disposto no artigo 63º, n.º 2, parte final, da mesma Lei.
Cumpre agora apreciar e decidir. II Fundamentos
5. O Decreto-Lei n.º 218/99, de 15 de Junho, em que se insere a norma questionada no presente processo, foi aprovado pelo Governo ao abrigo da sua competência legislativa própria (artigo 198º, n.º 1, alínea a), da Constituição) e, portanto, sem precedência de autorização legislativa parlamentar.
A questão de inconstitucionalidade orgânica suscitada exige que o Tribunal averigue se tal autorização era necessária, uma vez que a Constituição inclui na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República as matérias atinentes à “competência dos tribunais” (primeira parte da alínea p) do n.º 1 do artigo 165º).
6. Nas decisões fundamento do pedido, o Tribunal Constitucional deu resposta afirmativa à pergunta colocada.
No Acórdão n.º 58/03, o Tribunal analisou a referida questão, nos seguintes termos:
“A resposta à questão da eventual violação do preceito da primeira parte da alínea p) do n.º 1 do artigo 165º da Constituição pela norma que constitui o objecto do presente recurso implica a análise do carácter inovatório desta mesma norma face à norma do Código de Processo Civil que seria potencialmente aplicável na determinação do foro territorialmente competente para a acção de que emergiram os presentes autos. Tal carácter inovatório corresponde ao critério de aferição da conformidade constitucional seguido no acórdão deste Tribunal n.º 376/96, de 6 de Março
(publicado no Diário da República, II Série, n.º 160, de 12 de Julho de 1996, p.
9416), no qual se observou o seguinte, a propósito da norma do artigo 10º do
(revogado) Decreto-Lei n.º 194/92, de 8 de Setembro, relativa ao foro competente para a execução:
“[...] se bem se atentar, tal norma, comparativamente com aqueloutra constante do artigo 94º, n.º 1, do Código de Processo Civil, e tendo por referência o disposto no artigo 774º do Código Civil, não veio estabelecer, de per si, uma regra diferente no tocante à competência territorial do tribunal caso o credor esteja munido de um qualquer título dotado de força executiva que não o decorrente de sentença judicial [...].” No caso da norma que constitui o objecto do presente recurso, considerou o tribunal recorrido que ela inova relativamente à norma que, na sua falta, se aplicaria à acção intentada pelo ora recorrido: a norma do artigo 74º, n.º 2, do Código de Processo Civil (reguladora da competência territorial para a acção destinada a efectivar a responsabilidade civil baseada em facto ilícito ou fundada no risco). E inova, porque a norma que constitui o objecto do presente recurso estabelece como territorialmente competente o tribunal da sede da entidade credora e a norma do artigo 74º, n.º 2, do Código de Processo Civil estabelece como territorialmente competente o tribunal do lugar onde o facto ocorreu.
Sustenta o representante do Ministério Público neste Tribunal [...] que para dirimir a questão de constitucionalidade ora em apreço seria essencial tomar posição sobre a natureza da acção proposta e identificar a respectiva causa de pedir, atendendo a que, caso ela se enquadrasse na previsão do artigo
74º, n.º 1, do Código de Processo Civil (preceito que regula a competência territorial para as acções destinadas a exigir o cumprimento de obrigações, a indemnização pelo não cumprimento ou pelo cumprimento defeituoso e a resolução do contrato por falta de cumprimento), nenhuma inovação substancial, relativamente a tal preceito, representaria a norma do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 218/99, de 15 de Junho, impondo-se, consequentemente, a conclusão da não inconstitucionalidade desta norma.
Todavia, afigura-se que, independentemente da posição que se adopte acerca da precisa natureza da acção dos autos e dos concretos elementos constitutivos da respectiva causa de pedir, a circunstância de se tratar de uma acção destinada a exigir o pagamento de uma indemnização por serviços prestados a uma vítima de acidente de viação, sem que entre o autor e o réu tivesse sido previamente celebrado qualquer contrato e sem que o réu se tivesse, de algum modo, obrigado em virtude de negócio jurídico [...], sempre redundaria na impossibilidade de aplicação do disposto no artigo 74º, n.º 1, do Código de Processo Civil, dado que este preceito tem em vista a responsabilidade contratual ou, eventualmente, a responsabilidade emergente de negócio jurídico em sentido amplo.
Portanto, se a norma que constitui o objecto do presente recurso não estivesse em vigor, ao intérprete apenas restaria a opção entre o critério estabelecido no já mencionado artigo 74º, n.º 2, do Código de Processo Civil
(lugar onde o facto ocorreu) – que foi aquele que na decisão recorrida se considerou potencialmente aplicável – e, caso se considerasse que a responsabilidade do réu dos presentes autos não deriva de facto ilícito nem se funda no risco, o critério geral consagrado no artigo 85º, n.º 1, do mesmo Código (domicílio do réu). Ora, optando-se por um ou por outro destes critérios, a solução seria sempre diversa daquela a que se chega pela aplicação do artigo 7º do Decreto-Lei n.º
218/99, de 15 de Junho, pois que este preceito estabelece como critério de aferição da competência em razão do território o da sede da entidade credora. Conclui-se, assim, que este preceito inova relativamente à norma do Código de Processo Civil que seria potencialmente aplicável na determinação do foro territorialmente competente para a acção de que emergiram os presentes autos, pelo que infringe o disposto no artigo 165º, n.º 1, alínea p), da Constituição.
7. Conclui-se, assim, pelas razões constantes das decisões fundamento, para as quais se remete, no sentido da inconstitucionalidade da norma do artigo
7º do Decreto-Lei n.º 218/99, de 15 de Junho, por violação do artigo 165º, n.º
1, alínea p), da Constituição da República Portuguesa.
Na verdade, da norma em causa resulta que, sejam quais forem os contornos da acção proposta, sempre a competência do tribunal terá de aferir-se em função de critério diverso dos estabelecidos no Código de Processo Civil – o critério da localização da “sede da entidade credora” – e portanto em função de um critério inovatório.
Nem pode objectar-se a tal conclusão que a norma do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 218/99 retoma a solução que constava do artigo 10º do Decreto-Lei n.º 194/92, de 8 de Setembro, por ele revogado. É que o novo diploma veio alterar todo o sistema de cobrança de dívidas pelas instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde em virtude dos cuidados de saúde prestados. Assim, enquanto o artigo 10º do Decreto-Lei n.º 194/92 definia o foro competente para a execução das certidões de dívidas emitidas pelos hospitais, o artigo 7º do Decreto-Lei n.º 218/99, aqui questionado, estabelece a regra de competência territorial para as acções previstas no diploma, que são acções declarativas.
8. A presente inconstitucionalidade tem repercussões ao nível da definição dos tribunais territorialmente competentes para as acções de cobrança de dívidas pelas instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde e, se viesse a produzir efeitos sobre os processos ainda pendentes, originaria grande perturbação no funcionamento dos tribunais e no andamento dos próprios processos, pois exigiria, em cada caso, a determinação do tribunal territorialmente competente e, posteriormente, a remessa dos autos para o tribunal em questão.
Assim sendo, razões de segurança jurídica e de interesse público de excepcional relevo justificam que os efeitos da inconstitucionalidade se produzam, não ex tunc, mas sim, e tão só, para o futuro, isto é, a partir da publicação do respectivo Acórdão no jornal oficial (nos termos do n.º 4 do artigo 282º da Constituição), exceptuando-se, porém, os processos pendentes em que tenha sido ou seja ainda possível arguir a incompetência relativa do tribunal, nos termos da legislação processual aplicável.
III Decisão
8. Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 218/99, de 15 de Junho
b) Limitar os efeitos da inconstitucionalidade de modo que essa inconstitucionalidade só produza efeitos após a publicação do presente Acórdão no Diário da República, exceptuando-se, porém, os processos pendentes em que tenha sido ou seja ainda possível arguir a incompetência relativa do tribunal, nos termos da legislação processual aplicável.
Lisboa, 2 de Março de 2004 Maria Helena Brito Benjamim Rodrigues Vítor Gomes Artur Maurício Rui Manuel Moura Ramos Gil Galvão Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Carlos Pamplona de Oliveira Bravo Serra Paulo Mota Pinto Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida