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Proc. n.º 924/03 - Plenário Relator: Cons. Carlos Pamplona de Oliveira
ACORDAM EM PLENÁRIO NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
I
1. O Procurador-Geral Adjunto em funções neste Tribunal pediu, ao abrigo do disposto nos artigos 281º, n.º 3 da Constituição e 82º da Lei do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro), a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma constante da parte final do § único do artigo 67º do Decreto n.º 44 623, de 10 de Outubro de 1962,
«enquanto manda aplicar o máximo da pena prevista no artigo 64º do mesmo diploma para o crime de pesca em época de defeso, quando concorra a agravante de a pesca ter lugar em zona de pesca reservada». Invoca o Requerente que a norma já fora
«julgada materialmente inconstitucional, por violação dos princípios constitucionais da culpa, da igualdade e da proporcionalidade», nos Acórdãos n.º
70/02, de 19 de Fevereiro (tirado em Plenário, confirmando o Acórdão n.º 95/01, de 13 de Março, da 3ª Secção), 485/02, de 20 de Novembro, da 2ª Secção, e na decisão sumária n.º 258/03, de 27 de Outubro, da 1ª Secção.
2. O Primeiro-Ministro foi convidado, nos termos e para os efeitos dos artigos 54º e 55º n.º 3 da Lei do Tribunal Constitucional, a pronunciar-se e respondeu a oferecer o merecimento dos autos.
II
3. É inquestionável que se verificam os pressupostos do pedido previstos nos artigos 281º, n.º 3 da Constituição e 82º da Lei do Tribunal Constitucional, pois é certo que naquelas três decisões se julgou inconstitucional a parte final do § único do artigo 67º do Decreto n.º 44 623, de 10 de Outubro de 1962,
«enquanto manda aplicar o máximo da pena prevista no artigo 64º do mesmo diploma para o crime de pesca em época de defeso, quando concorra a agravante de a pesca ter lugar em zona de pesca reservada».
Passemos, portanto, à apreciação do mérito da pretensão.
4. O artigo 67º do Decreto n.º 44.623, de 10 de Outubro de 1962, dispõe o seguinte:
Art. 67.º Constitui circunstância agravante das infracções previstas e punidas pelos artigos 61º, 62º, 64º e 65º o facto de terem sido praticadas de noite ou em águas onde a pesca for proibida, reservada ou objecto de concessão.
§ único Quando concorra qualquer destas agravantes, as penas previstas no artigo 61º nunca poderão ser inferiores a seis meses de prisão e a 5.000$ de multa. Nos casos previstos nos artigos 62º, 64º e 65º serão aplicados os máximos das penas.
As decisões por força das quais foi esta norma julgada inconstitucional remetem, todas elas, para o Acórdão n.º 95/2001, publicado no Diário da República – II série, de 24 de Abril de 2002, cuja fundamentação é, no essencial, a seguinte:
«(...) O princípio da culpa, enquanto princípio conformador do direito penal de um Estado de Direito, proíbe – já se disse – que se aplique pena sem culpa e, bem assim, que a medida da pena ultrapasse a da culpa. Trata-se de um princípio que emana da Constituição e que, na formulação de JOSÉ DE SOUSA E BRITO (loc. cit., página 199), se deduz da dignidade da pessoa humana, em que se baseia a República (artigo 1º da Constituição), e do direito de liberdade (artigo 27º, n.º 1); e, nos dizeres de JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, vai buscar o seu fundamento axiológico “ao princípio da inviolabilidade da dignidade pessoal: o princípio axiológico mais essencial à ideia do Estado de Direito democrático” (Direito Penal Português. As Consequências Jurídicas do Crime, Lisboa, 1993, página 73). Pois bem: um direito penal de culpa não é compatível com a existência de penas fixas: de facto, sendo a culpa não apenas princípio fundante da pena, mas também o seu limite, é em função dela (e, obviamente também, das exigências de prevenção) que, em cada caso, se há-de encontrar a medida concreta da pena, situada entre o mínimo e o máximo previsto na lei para aquele tipo de comportamento. Ora, prevendo a lei uma pena fixa, o juiz não pode, na determinação da pena a aplicar ao caso que lhe é submetido, atender ao grau de culpa do agente – é dizer: à intensidade do dolo ou da negligência. A previsão pela lei de uma pena fixa também não permite que o juiz, na determinação concreta da medida da pena, leve em consideração o grau de ilicitude do facto, o modo de execução do mesmo e a gravidade das suas consequências, nem tão-pouco o grau de violação dos deveres impostos ao agente, nem as circunstâncias do caso que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra ele. Ora, isto pode ter como consequência que o juiz se veja forçado a tratar de modo igual situações que só aparentemente são iguais, por, essencialmente, acabarem por ser muito diferentes. Ou seja: prevendo a lei uma pena fixa, o juiz não tem maneira de atender à diferença das várias situações que se lhe apresentam. Mas, o princípio da igualdade – que impõe se dê tratamento igual a situações essencialmente iguais e se trate diferentemente as que forem diferentes – também vincula o juiz. A lei que prevê uma pena fixa pode também conduzir a que o juiz se veja forçado a aplicar uma pena excessiva para a gravidade da infracção, assim deixando de observar o princípio da proporcionalidade, que exige que a gravidade das sanções criminais seja proporcional à gravidade das infracções. Por isso, a norma legal que preveja uma pena fixa viola o princípio da culpa, que enforma o direito penal, e o princípio da igualdade, que o juiz há-de observar na determinação da medida da pena. E pode violar também o princípio da proporcionalidade. E isto é assim, quer a pena que a norma prevê seja uma pena de prisão, quer seja uma pena de multa. JORGE DE FIGUEIREDO DIAS (Direito Penal Português cit., página 193), depois de dizer que decorre da Constituição que a determinação da pena exige cooperação –
“mas também, por outro lado, uma separação de tarefas e de responsabilidades tão nítida quanto possível entre o legislador e o juiz” –, sublinha que “uma responsabilização total do legislador pelas tarefas de determinação da pena conduziria à existência de penas fixas e, consequentemente, à violação do princípio da culpa e (eventualmente também) do princípio da igualdade”. Este Tribunal, no seu Acórdão n.º 202/2000 (publicado no Diário da República, II série, de 11 de Outubro de 2000), debruçou-se sobre a norma constante do artigo
31º, n.º 10, da Lei n.º 30/86, de 27 de Agosto – que mandava aplicar a pena fixa de interdição do direito de caçar por um período de cinco anos àquele que caçasse em zonas de regime cinegético especial em épocas de defeso ou com o emprego de meios não permitidos – e concluiu que a mesma era inconstitucional, por violar os princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade. Escreveu-se aí:
“Deve, pois, reconhecer-se que a cominação, pela norma em análise, de uma pena fixa, de quantum legalmente determinado sem possibilidade de individualização de acordo com as circunstâncias do caso concreto, não se acha em conformidade com a exigência de que à desigualdade da situação concreta (do facto cometido e das suas “circunstâncias”) corresponda também uma diferenciação da sanção penal que lhe é aplicada, e que esta seja proporcional às circunstâncias relevantes de tal situação concreta. Os princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade implicam, na verdade, o juízo de que a cominação de uma pena de interdição do direito de caçar invariável de cinco anos para o “crime de caça” do artigo 31º, n.º 10, da Lei n.º 30/86 é materialmente inconstitucional”. Importa, então, saber se a norma sub iudicio prevê uma pena fixa, pois, tal sucedendo, ela é constitucionalmente ilegítima nos termos que se deixaram apontados.
(...) Decorre, na verdade, dos princípios da culpa, da igualdade e da proporcionalidade a necessidade de a lei prever penas variáveis: é que, só desse modo o legislador abre ao juiz a possibilidade de graduar a pena, fixando-a entre o mínimo e o máximo que a lei prevê, de acordo com todas as circunstâncias atendíveis (grau de culpa, necessidades de prevenção e demais circunstâncias), por forma a punir diferentemente situações que, sendo aparentemente iguais, são, em si mesmas, diferentes, e de modo também a evitar o risco de aplicar penas desproporcionadas às infracções cometidas, tendo em consideração todo o quadro que envolveu a prática de cada uma delas. Ou seja: só prevendo o legislador penas variáveis, pode o juiz adequar a pena à culpa do agente, às exigências de prevenção e, bem assim, às demais circunstâncias que ele deve considerar para encontrar, em concreto, a pena ajustada a cada caso. Esse resultado não o pode, com efeito, o juiz atingir, lançando mão do instituto da atenuação especial da pena ou, sendo o caso, do da dispensa de pena, a que faz apelo o acórdão n.º 83/91 para ver consagrada, na norma sub iudicio, uma pena que, tão-só tendencialmente, é uma pena fixa, e não uma pena rigidamente fixa: é que, desde logo, a atenuação especial da pena pressupõe que a pena (de prisão ou de multa) aplicável ao caso seja variável (cf. o artigo 73º do Código Penal); e, depois, supõe a ocorrência de um quadro de circunstâncias com valor fortemente atenuativo (“quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou necessidade da pena”, diz o n.º 1 do artigo 72º do mesmo Código). E, quanto à dispensa de pena, também só pode recorrer-se a ela, quando, estando em causa uma infracção de pequena gravidade
(recte, uma infracção punível com prisão não superior a seis meses, ou só com multa não superior a cento e vinte dias), o juiz verificar que são “diminutas”
“a ilicitude do facto e a culpa do agente”; que o “dano” já foi “reparado”; e que “à dispensa de pena” se não opõem “razões de prevenção” (cf. o artigo 74º do mesmo Código). Estes mecanismos são, de facto inaptos para – como se escreveu no citado Acórdão n.º 202/2000, a propósito da atenuação especial da pena – “dar conta da necessária adequação da pena em concreto às circunstâncias a considerar – à culpa do agente e às necessidades de prevenção”. Recorrendo, de novo, aos dizeres do Acórdão n.º 202/2000:
“Não pode aceitar-se o argumento de que, interpretando a norma em causa como prevendo uma pena apenas “tendencialmente fixa” ela não viola o princípio da igualdade e da proporcionalidade, do qual decorre que a gravidade das penas (e das medidas de segurança) há-de ser proporcional à gravidade das infracções, encaradas sob o ponto de vista, respectivamente, da culpa e das necessidades de prevenção geral (e, para aquelas medidas, da prevenção especial, perante a perigosidade do agente)”. E, mais adiante, ponderou ainda o mesmo Acórdão n.º 202/2000:
“A admissão de que o recurso a estas possibilidades, previstas na lei geral – de atenuação especial da pena e de dispensa de pena –, bastaria para permitir a graduação, no caso concreto, de uma pena prevista na lei como de duração fixa, assim a tornando proporcional às circunstâncias deste, se coerentemente seguida, conduziria, aliás, à conclusão da desnecessidade de previsão de quaisquer molduras penais abstractas, satisfazendo-se as exigências constitucionais da igualdade e da proporcionalidade através daqueles institutos gerais”.»
5. É esta a orientação que o Tribunal continua a perfilhar e que permite concluir – sem outras considerações adicionais e remetendo para quanto, como fundamentação, se afirma no transcrito Acórdão n.º 95/2001 – pela inconstitucionalidade da norma questionada, na dimensão em apreço.
III
6. Em consequência, o Tribunal Constitucional declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante da parte final do § único do artigo 67º do Decreto n.º 44 623, de 10 de Outubro de 1962 – enquanto manda aplicar o máximo da pena prevista no artigo 64º do mesmo diploma para o crime de pesca em época de defeso, quando concorra a agravante de a pesca ter lugar em zona de pesca reservada – por violação dos princípios constitucionais da culpa, da igualdade e da proporcionalidade.
Lisboa, 2 de Março de 2004
Carlos Pamplona de Oliveira Bravo Serra Paulo Mota Pinto Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Maria Helena Brito Benjamim Rodrigues Vítor Gomes Artur Maurício Rui Manuel Moura Ramos Gil Galvão Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Luís Nunes de Almeida