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Proc. nº 70/03
3ª Secção Relator: Cons. Gil Galvão
Acordam, em Conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. A ...,S A (ora recorrida) reclamou, ao abrigo do disposto no artigo 688º do Código de Processo Civil, para o Tribunal da Relação de Lisboa, da decisão do Conselho de Administração de ICP – ANACOM - Autoridade Nacional de Comunicações
(ora recorrente), que não lhe admitiu o recurso para aquele Tribunal da deliberação do mesmo órgão, na qual foi resolvido o litígio que opõe a reclamante e a empresa C à empresa D..., S A.
2. O Tribunal da Relação de Lisboa, por decisão de 14 de Novembro de 2002 (fls.
722 a 725), deferiu a reclamação e, em consequência, ordenou ao ora recorrente a substituição da deliberação em que decidiu não conhecer do requerimento de interposição do recurso por outra que o admita.
3. Inconformado com o assim decidido, o ICP – ANACOM (Autoridade Nacional de Comunicações) veio, ao abrigo do disposto nos artigos 677º, in fine, e 668º, n.º
1, alíneas. d) e e), ambos do Código de Processo Civil, arguir a nulidade daquela decisão.
4. O Tribunal da Relação de Lisboa, por decisão de 20 de Dezembro de 2002, decidiu indeferir aquele requerimento, decisão que fundamentou nos seguintes termos:
“Diz-se nas alíneas d) e e) do n.º 1 do artigo 688º [recte 668º] do Código de Processo Civil, que a decisão é nula quando o juiz deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar ou que conheça de outras que não podia tomar conhecimento ou ainda que condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido. Salvo o devido respeito, nenhuma destas situações se verifica na decisão proferida sobre a reclamação apresentada. A decisão sobre a reclamação pronunciou-se sobre as questões que lhe foram colocadas e aplicou-lhes as disposições que considerou adequadas. Sucede que a reclamada tem entendimento diferente sobre a apreciação e interpretação das normas que foram aplicadas no caso. Mas tal, embora legítimo, não constituí qualquer nulidade. Significa tão só que o seu entendimento é outro. E esta é a questão de fundo que já foi decidida e que não pode agora por nós ser alterada uma vez que o poder jurisdicional se esgotou com a prolação daquela decisão. Como claramente resulta da alegação do ICP – ANACOM (Autoridade Nacional de Comunicações), o que está em causa é a interpretação dos normativos dos artigos
16º e 18º do Decreto-Lei n.º 451/98, de 31 de Dezembro, com referência à Lei n.º
31/86, de 29 de Agosto. Esta situação foi analisada na decisão sobre a reclamação e expressamente se disse qual é o entendimento sobre esta interpretação, daí resultando o deferimento da reclamação.
É certo que o ICP-ANACOM (Autoridade Nacional de Comunicações) não concorda com aquele entendimento. Mas daí não resulta o cometimento de qualquer nulidade, designadamente as previstas nas alíneas d) e e) do n.º 1 do artigo 688º [recte
668º] do Código de Processo Civil”.
4. Desta decisão foi interposto, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do art. 70º da LTC, recurso de constitucionalidade, através de um requerimento que tem o seguinte teor:
“O ICP – ANACOM (Autoridade Nacional de Comunicações), tendo sido notificada da douta decisão de 20/12/2002, a fls. dos autos, com a qual não se conforma, dela vem interpor recurso para o Tribunal Constitucional, a subir nos próprios autos, com efeito suspensivo, nos termos do disposto nos artigos 70º, n.º 1, al. b) e
78º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, com vista à apreciação da inconstitucionalidade dos artigos 16º, n.º 3 e 18º do Decreto-Lei n.º 451/98, de
31 de Dezembro, atenta a violação, na interpretação do despacho recorrido, do princípio da reserva da competência judicial – art. 202º da Constituição da República e, em especial da reserva de jurisdição administrativa constante do art. 212º, n.º 3, da Constituição da República; do princípio da reserva de competência legislativa da Assembleia da República – art. 165º, n.º 1, alíneas b) e p) da Constituição da República; do princípio da separação de poderes plasmado no art. 111º, n.º 1 da Constituição da República e do princípio do Estado de direito democrático expressamente consagrado nos artigos 2º e 9º da Constituição da República, conforme oportunamente invocado pelo ora recorrente no requerimento apresentado em 03.12.2002, a fls. dos autos”.
5. Na sequência, foi proferida pelo Relator do processo neste Tribunal, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decisão sumária no sentido do não conhecimento do recurso (fls. 842 a 845). É o seguinte, na parte decisória, o seu teor:
“[...] A admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional - o interposto pelo ora recorrente - pressupõe, nomeadamente, que a decisão recorrida tenha efectivamente aplicado, como ratio decidendi, a norma cuja constitucionalidade os recorrentes pretendem ver apreciada. Ora, como vai sumariamente ver-se, é manifesto que tal não aconteceu. Efectivamente, a decisão recorrida – expressamente identificada no requerimento de interposição do recurso como a decisão de 20.12.2002, e que supra já transcrevemos integralmente – manifestamente não aplicou as normas dos artigos
16º, n.º 3 e 18º do Decreto-Lei n.º 451/98, de 31 de Dezembro, limitando-se a decidir, com base em outros preceitos, designadamente os constantes das alíneas d) e e) do n.º 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil, que não se verificava a alegada nulidade invocada pelo ora recorrente. Dessa forma, e sem necessidade de maiores considerações, torna-se evidente que não pode conhecer-se do objecto do recurso de constitucionalidade que o recorrente pretendeu interpor, por falta de um dos seus pressupostos legais de admissibilidade; a saber: ter a decisão recorrida efectivamente aplicado, como ratio decidendi, as normas cuja constitucionalidade pretendia ver apreciadas”.
6. Inconformado com esta decisão, o recorrente apresentou, ao abrigo do disposto no art. 78º-A, n.º 3 da LTC, a presente reclamação para a Conferência (fls. 857 a 865). Nela alega, em síntese, que, ao contrário do que se decidiu na decisão reclamada, a decisão recorrida - a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa de
20.12.2002 - teria efectivamente aplicado, ainda que implicitamente, as normas dos artigos 16º, n.º 3 e 18º do Decreto-Lei n.º 451/98, de 31 de Dezembro, cuja inconstitucionalidade o recorrente pretendia ver apreciada. Afirma, nomeadamente:
“[...] Ora, na perspectiva do recorrente, a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa de 20.12.2002 apenas e só decidiu que não se verificava a alegada nulidade invocada pelo recorrente, na medida em que julgou válida e conforme à Constituição a interpretação e aplicação dos artigos 16°, n.º 3 e 18° do Decreto-Lei n.º 451/98, de 31 de Dezembro, resultante do despacho de 14.11.2002, assim tendo aplicado, implicitamente, os referidos normativos. A não ser assim, não poderia o Tribunal da Relação de Lisboa no despacho que apreciou a arguição de nulidade ter deixado de considerar, como naquele se pretendia, entre outros aspectos, que o Tribunal apreciou matéria que não era da sua competência e de que não podia, desse modo, tomar conhecimento. De resto, esta perspectiva ressalta, com particular acuidade, do próprio despacho do Tribunal da Relação de Lisboa de 20.12.2002, no qual se fez expressamente constar que 'como claramente resulta da alegação do ICP, o que está em causa é a interpretação dos normativos dos artigos 16° e 18° do Decreto-Lei n.º 451/98, de 31 de Dezembro, com referência à Lei n° 31/86, de 29 de Agosto' (realces nossos).
[...]
É, pois, exacto, como no despacho de 20.12.2002 se fez constar, 'que a reclamante tem entendimento diferente sobre a apreciação e interpretação das normas aue foram aplicadas no caso (sublinhados e sombreados nossos). Sendo certo que, as normas aplicadas no caso, assim invocadas na decisão recorrida de
20.12.2002 correspondem, precisamente, aos artigos 16° e 18° do Decreto-Lei n.º
451/98.
É, de igual forma verdade, como no referido despacho se fez notar, que a
'situação foi analisada na decisão sobre a reclamação e expressamente se disse qual é o entendimento sobre esta interpretação, daí resultando o diferimento da reclamação'. Já não é, porém, verdade, que daí não tenha resultado “... o cometimento de qualquer nulidade, designadamente as previstas nas alíneas d) e e) do n.º 1 do artigo 688° [recte 668} do Código de Processo Civil ' e, bem assim, não é igualmente verdade que a referida questão de fundo não pudesse ser alterada pela Relação de Lisboa, 'uma vez que o poder jurisdicional se esgotou com a prolação daquela decisão” (cfr. despacho de 20.12.2002, a fls. dos autos). Isto porque, desde logo, o Tribunal da Relação de Lisboa acabou por ser confrontado com uma norma que, a ser julgada inconstituciona1, determinaria a sua incompetência absoluta em razão da matéria. 'Ou por outras palavras', conforme se pode ler em Guilherme da Fonseca a respeito de caso em idêntico, favoravelmente decidido pelo Tribunal ConstitucionaJ, 'a questão de constitucionalidade da norma constituía o fundamento da incompetência absoluta do tribunal ( ac. 3/83). Ora, por força do n.º 1 do art.102° do CPC, a incompetência absoluta pode ser arguida pelas partes em qualquer estado do processo, enquanto não houver decisão com trânsito em julgado proferida sobre o fundo da causa, o que, de facto, no caso, aconteceu, uma vez que foi arguida depois de proferida a decisão, de mérito, mas antes do seu trânsito em julgado. Assim sendo, era ainda possível ao tribunal recorrido conhecer também da questão de constitucionalidade que estava subjacente a tal arguição de incompetência' ( ob. cit. pp. 49).
[...] Dito de outro modo: a circunstância de o Tribunal da Relação de Lisboa não ter sopesado cada um e a totalidade dos argumentos demoradamente esgrimidos pelo recorrente em abono da tese da inconstitucionalidade, não pode levar à conclusão perfilhada pelo despacho reclamado, segundo a qual o referido Tribunal não apreciou a invocada inconstitucionalidade e não aplicou, consequentemente, as normas e os princípios contrários à Constituição, tendo-se limitado a decidir uma mera arguição de nulidade, com aplicação dos dispositivos correspondentes do Código de Processo Civil. Para os efeitos do disposto no artigo 70°, n.º 1, al. b), da LTC, importa apenas que a questão da constitucionalidade tenha sido colocada em termos de o Tribunal recorrido saber que tem aquela questão por resolver, não importando, - para efeitos de admissibi1idade do recurso, insiste-se -, a forma mais ou menos detalhada, correcta ou incorrecta, expressa ou implícita como tal questão é resolvida. Ora, a questão da constitucionalidade deu corpo à arguição de incompetência/nulidade, pelo que sem ela esta última não faz sentido algum -: o Tribunal da Relação de Lisboa, na tese do recorrente, apreciou questões relativamente às quais não podia tomar conhecimento (artigo 668°, nº1, al. d), do CPC), na medida em que os artigos 16° e 18° do D.L. n.o 451/98, de 31 de Dezembro, não têm, ou melhor, não podem ter a interpretação que lhes foi dada por aquele Tribunal, sob pena de grave e flagrante violação de múltiplas normas e princípios constitucionais, que a seu tempo foram devidamente indicados. Quer isto dizer, como adiante melhor se precisará, com a pertinente referência jurisprudencial, que só a aplicação - ainda que implícita - dos artigos 16° e
18° do D.L. n.º 451/98, de 31 de Dezembro, podia conduzir à conclusão a que se chegou na decisão recorrida
7. Por parte da recorrida não foi apresentada, dentro do prazo legal, qualquer resposta.
Dispensados os vistos legais, cumpre decidir.
II – Fundamentação
8. Com a presente reclamação o ora reclamante vem fundamentalmente contestar que, conforme se decidiu na decisão reclamada de fls. 842 a 845, a decisão recorrida não tenha efectivamente aplicado, como ratio decidendi, as normas dos artigos 16º, n.º 3 e 18º do Decreto-Lei n.º 451/98, de 31 de Dezembro, cuja inconstitucionalidade pretendia ver apreciada.
Efectivamente, entende o ora reclamante que, ao contrário do que se decidiu na decisão reclamada, tais preceitos teriam sido efectivamente aplicados, embora implicitamente, pela decisão recorrida - a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 20 de Dezembro de 2002 -, o que, de acordo com a anterior jurisprudência do Tribunal Constitucional, seria suficiente para que se conhecesse do objecto do recurso.
Alega, nesse sentido, designadamente que a decisão recorrida “(...) apenas e só decidiu que não se verificava a alegada nulidade invocada pelo recorrente, na medida em que julgou válida e conforme à Constituição a interpretação e aplicação dos artigos 16º, n.º 3 e 18º do Decreto-Lei n.º 451/98, de 31 de Dezembro, resultante do despacho de 14.11.2002, assim tendo aplicado, implicitamente, os referidos normativos”.
A verdade, porém, é que não lhe assiste razão.
E não tem razão não porque, em abstracto, não seja suficiente uma aplicação implícita pela decisão recorrida das normas cuja inconstitucionalidade vem questionada, mas porque, no caso dos autos, a decisão recorrida, efectivamente, não aplicou, ainda que implicitamente, os artigos 16º, n.º 3 e 18º do Decreto-Lei n.º 451/98, de 31 de Dezembro, cuja inconstitucionalidade o recorrente pretendia ver apreciada.
É, aliás, a própria decisão recorrida que expressamente rejeita a possibilidade de, no contexto do julgamento da reclamação por nulidade, voltar a reapreciar a questão da sua própria competência - tornando a reexaminar a questão de saber qual a melhor interpretação dos artigos 16º, n.º 3 e 18º do Decreto-Lei n.º
451/98, de 31 de Dezembro - por entender que, com a prolação da decisão reclamada por nulidade - que decidiu precisamente essa questão -, se havia esgotado o seu poder jurisdicional sobre essa matéria.
Em suma: o que, manifestamente, se decidiu na decisão recorrida foi que tendo a questão da competência do Tribunal da Relação para o conhecimento do recurso da decisão do Conselho de Administração do ICP -ANACOM, sido precisamente o objecto da decisão reclamada por nulidade – isto é, objecto da decisão de 14 de Novembro de 2002 (fls. 722 a 725) -, foi ela, por esta decisão, definitivamente decidida, não sendo permitido ao recorrente utilizar o mecanismo processual da reclamação por nulidade para voltar a ver reapreciada, pelo mesmo Tribunal, a mesma questão.
É certo que esta solução assenta numa interpretação do artigo 668º, n.º 1, alíneas d) e e) do Código de Processo Civil, que exclui do objecto possível da reclamação por nulidade a questão da competência do tribunal quando a mesma já tenha sido objecto da decisão reclamada.
A verdade, porém, é que foi nessa interpretação do artigo 668º, n.º 1, alíneas d) e e) do Código de Processo Civil - e não nos artigos 16º, n.º 3 e 18º do Decreto-Lei n.º 451/98, de 31 de Dezembro - que a decisão recorrida se fundou normativamente para indeferir as arguidas nulidades. E, nem compete a este Tribunal Constitucional pronunciar-se sobre a questão de saber se se trata da melhor interpretação do artigo 668º, n.º 1, alíneas d) e e) do Código de Processo Civil, nem essa interpretação vem questionada sub specie constitutionem.
Assim sendo, e pelas razões já constantes da decisão reclamada, que mantém inteira validade, é efectivamente de não conhecer do objecto do recurso que o recorrente pretendeu interpor.
III - Decisão
Em face do exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada no sentido do não conhecimento do objecto do recurso. Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 15 (quinze) unidades de conta.
Lisboa, 11 de Abril de 2003- Gil Galvão Bravo Serra Luís Nunes de Almeida