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Proc. nº 183/02
1ª Secção Relator: Cons.º Luís Nunes de Almeida
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. O MINISTÉRIO PÚBLICO requereu ao Tribunal de Contas, ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 111º e nos termos do disposto na alínea a) do n.º 1 e no n.º 2 do artigo 58º e no artigo 89º e seguintes, todos da Lei n.º 98/97, de
26 de Agosto (LOPTC), o julgamento em processo de julgamento de responsabilidade financeira de A, B, C, D, E, F e G, na qualidade de Presidente e Vereadores da Câmara Municipal de ..., relativamente à gerência do ano de 1993 dessa Câmara Municipal. Fundamentou-se, para tanto, no Relatório de Auditoria com o n.º
39/99, aprovado pela 2ª Secção do Tribunal de Contas.
Os demandados teriam cometido quatro infracções financeiras, na modalidade de pagamentos indevidos, previstos no n.º 1 do artigo 49º da Lei n.º
86/89, de 8 de Setembro, e no artigo 59º da Lei n.º 98/97, consubstanciadas nos comportamentos seguintes:
a) os demandados aprovaram, em reunião da Câmara Municipal de ..., de 10 de Fevereiro de 1993, o regulamento do chamado Piquete de Esgoto, dispondo no mesmo a atribuição de um subsídio de disponibilidade no domicílio aos trabalhadores respectivos, tendo, em virtude do mesmo, pago nesse ano de 1993, a quantia global de 3.915.998$00 de subsídio, apesar de saberem que o mesmo era ilegal, por contrariar o disposto no n.º 2 do artigo 15º e o n.º 3 do artigo 19º do Decreto-Lei n.º 184/89, de 2 de Junho e nos artigos 3º, 11º e 12º do Decreto-Lei n.º 353-A/89, de 16 de Outubro;
b) atribuíram a diversos funcionários da Câmara, a exercer funções junto dos Vereadores, um suplemento de secretariado, em virtude do qual efectuaram pagamentos no montante global de 765.840$00, apesar de saberem que tal suplemento carecia de base legal, pois tais funcionários não integravam o secretariado do Presidente da Câmara, tendo infringido o artigo 26º do Decreto-Lei n.º 341/83, de 21 de Julho, e os artigos 11º e 12º do Decreto-Lei n.º 353-A/89;
c) pagaram o denominado «prémio ou subsídio de esforço», criado por deliberação camarária de 26 de Outubro de 1988, no montante global de
3.451.281$00, quando sabiam que tal pagamento era ilegal, por infringir o disposto no n.º 1 do artigo 8º do Decreto-Lei n.º 110-A/81, de 14 de Maio, o disposto no artigo 7º do Decreto-Lei n.º 57-C/84, de 20 de Fevereiro e ainda o disposto no artigo 12º do Decreto-Lei n.º 353-A/89;
d) por fim, pagaram um «subsídio de insalubridade» criado em 1985 por um técnico dos extintos Serviços Municipalizados, sem suporte em qualquer deliberação camarária, no montante global de 217.200$00, quando sabiam que tal subsídio infringia o disposto no n.º 1 do artigo 8º do Decreto-Lei n.º 110-A/81, o n.º 1 do artigo 11º e o artigo 12º do Decreto-Lei n.º 353-A/89 e ainda o n.º 1 do artigo 26º do Decreto-Lei n.º 341/83.
2. Na contestação, os demandados suscitaram desde logo a inconstitucionalidade do Decreto-Lei n.º 110-A/81, de 14 de Maio «quer por emitido sem credencial parlamentar quer, no tocante ao seu art.º 8º, n.º 1 e elenco das excepções constantes do art. 6º, n.º 3 na medida em que, conjugadamente, limitam a retribuição do trabalho a modalidades que desatendem
às imposições constitucionais constantes do art. 53º da CRP», e ainda do
«Decreto-Lei n.º 57-C/84, de 20 de Fevereiro que, aliás, mantendo em vigor o Decreto-Lei n.º 110-A/81, de 14 de Maio, na parte consigo compatível (art. 19º, n.º 2), volta a proibir a criação de remunerações acessórias que este já proibira e reduz o montante das não emergentes de criação por lei, decreto-lei ou regulamentar».
Por sentença de 14 de Fevereiro de 2001, do Juiz da 3ª Secção do Tribunal de Contas, e tendo em conta desde logo que a eventual responsabilidade sancionatória se encontrava amnistiada pela alínea a) do artigo 7º da Lei n.º
29/99, de 12 de Maio, foram os demandados absolvidos relativamente à reposição pedida das importâncias pagas a título de suplemento de secretariado por desses pagamentos não terem resultado danos para o município, e, no mais, solidariamente condenados, como co-autores das restantes infracções financeiras de pagamentos indevidos, a reporem nos cofres da Câmara Municipal de Évora as quantias de 1.000.000$00 respeitante ao subsídio de esgoto, de 1.000.000$00 relativa ao subsídio de esforço e de 50.000$00 relativa ao subsídio de insalubridade.
Considerou a sentença que a conduta infractora dos demandados se deveu a negligência, e não a dolo, o que justificou a redução da responsabilidade financeira dos demandados «porquanto se limitaram, por um lado, a manter os subsídios que já eram processados em anos anteriores ou a aplicar um subsídio de esgoto a situações análogas já existentes, como era o caso do subsídio de disponibilidade no Piquete de Abastecimento de Água, e, por outro, desses pagamentos ilegais resultaram alguns benefícios para os Munícipes – sem falar das vantagens para os trabalhadores escalados em tais piquetes – quanto a prontidão e eficácia da resposta na reparação das avarias de funcionamento».
Relativamente às suscitadas questões de inconstitucionalidade, entendeu a sentença que as mesmas se não verificavam, porquanto «o referido diploma, bem como o DL 57-C/84, não afectam a retribuição pelo trabalho prestado, antes constitui o seu principal objectivo, designadamente o trabalho efectuado em horas fora do horário normal», salientando ainda que, «por outro lado, não tratam tais diplomas das 'bases do regime e âmbito da função pública' para que, face ao disposto na al. f) do n.º 1 do art.º 165º da CRP, só pudessem ser aprovados pelo Governo mediante autorização legislativa».
3. Inconformados, os demandados interpuseram recurso dessa decisão, formulando, desde logo, as seguintes conclusões:
a) os recorrentes procederam aos pagamentos dos autos com o objectivo de assegurar a eficácia na prossecução das atribuições do município, [...]
b) fazendo-o convictos de que agiam legalmente, quer face ao disposto no Decreto-Lei n.º 110-A/81, de 14 de Maio (inconstitucional, aliás, por emitido sem autorização parlamentar – necessária face à então vigente al. m) do art.
167º da CRP – e inconstitucional ainda no tocante ao seu art. 8º, n.º 1 e elenco das excepções constantes do art. 6º, n.º 3, na medida em que, conjugadamente, limitam a retribuição do trabalho a modalidades que desatendem as imposições constitucionais constantes do então art. 53º da mesma CRP [...]
c) quer face ao Decreto-Lei 57-C/84, de 20 de Fevereiro (que enferma dos mesmos vícios de inconstitucionalidade que o referido Decreto-Lei n.º
110-A/81), quer face ao Decreto-Lei n.º 184/89, de 2 de Junho, quer, por último, face ao Decreto-Lei 353-A/89, de 16 de Outubro, [...]
d) em qualquer caso, os recorrentes não agiram com culpa, nem sequer na forma de negligência;
e) e, da atribuição dos referidos subsídios, não resultou dano para o município mas, ao invés, dela 'decorreu a possibilidade de assegurar necessidades básicas das populações', com 'economia de gastos' e 'notória minimização de custos';
f) ainda que assim se não entendesse, face às circunstâncias em que os pagamentos dos autos foram efectuados deveria a responsabilidade dos ora recorrentes ser relevada nos termos do art. 64º, n.º 2 da Lei 98/97, de 26 de Agosto;
Nas respectivas contra-alegações de recurso, o Ministério Público manifestou-se no sentido da confirmação da sentença recorrida.
4. Por acórdão de 21 de Novembro de 2001, em Sessão Plenária da 3ª Secção, o Tribunal de Contas decidiu negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida.
No tocante às suscitadas questões de inconstitucionalidade, entendeu-se nesse aresto:
Já referimos que ambos os diplomas [Decreto-Lei n.º 110-A/81 e Decreto-Lei n.º 57-C/84] se debruçam sobre o regime remuneratório do funcionalismo público, com a publicação das tabelas de vencimentos e normas relativas a gratificações, pensões e remunerações acessórias.
Não estamos, pois, no âmbito das bases do regime da função pública e da responsabilidade civil da Administração, matéria de acrescida dignidade, própria das que se integram na esfera da competência da Assembleia.
[...]
São estas, seguramente, as áreas de legislação [as relativas a responsabilidade civil do Estado, responsabilidade civil, criminal e disciplinar dos funcionários e agentes e as regras fundamentais a que deve obedecer o regime da função pública] que se integram na previsão constitucional de reserva da Assembleia, sendo as concretas tabelas de vencimentos e disposições afins de cariz remuneratório estranhas à reserva constitucional.
O que nos leva a concluir que os Dec. Leis 110-A/81 e 57-C/84 não fixam o regime, o âmbito da função pública e, muito menos, a responsabilidade civil da Administração. Logo, não sofrem da invocada inconstitucionalidade orgânica.
E, passando a analisar a segunda questão de inconstitucionalidade, atinente à eventual violação do artigo 53º da Constituição, entendeu ainda este acórdão:
Estamos perante enunciados de direitos que a lei deverá consagrar, designadamente no âmbito das relações laborais, e que, em nada são afectados com o conteúdo dos artigos 6º e 8º do Decreto-Lei n.º 110-A/81, reiterados nos art.º
7º e 19º - n.º 2 do Dec.-Lei n.º 54-C/84.
Na verdade, a proibição da criação, aumento ou extensão das remunerações acessórias, a exigência de um prazo mínimo de um ano para nova actualização das gratificações, que aqueles artigos normatizam, são, de todo, compatíveis com os princípios constitucionais de igualdade, não discriminação, do direito à retribuição: estamos a falar de suplementos, gratificações, de políticas de restrição de abusos e de correcções a 'situações de privilégio abusivo e de formas transviadas de acréscimo de vencimento'.
Ou seja: as normas sindicadas pelos Recorrentes não são inconstitucionais, sendo, aliás, pertinente, relembrar que, pese embora os vinte anos decorridos desde a respectiva publicação, não se conhece qualquer decisão que tenha considerado inconstitucionais tais diplomas. E que não resulta minimamente indiciado nos autos que os Recorrentes, enquanto responsáveis pelas decisões de atribuição dos subsídios, alguma vez tenham suscitado a eventual inconstitucionalidade dos mesmos. Acresce que, enquanto as normas não forem consideradas inconstitucionais, a Administração não pode deixar de as cumprir.
Este acórdão foi assinado com um voto de vencido de um dos três conselheiros que compõem a Secção do Tribunal de Contas e ainda com uma declaração de voto de outro conselheiro.
Os recorrentes arguiram então a nulidade deste acórdão, «por falta do necessário vencimento, já que não houve dois votos concordes com a fundamentação – art. 716º, n.º 1, 2ª parte do CPC», mais concretamente porquanto
«se decidiu no douto acórdão não se verificar a situação prevista no n.º 2 do art. 59º da Lei n.º 98/97, de 26 de Agosto, sendo certo que tal entendimento apenas tem o voto favorável do Exm.º Conselheiro Relator».
Notificado para se pronunciar, veio o Ministério Público afirmar que aquela declaração de voto referida não pode ser entendida como outra declaração de 'voto de vencido', antes pelo contrário, uma vez que a mesma «diz expressamente que 'voto o acórdão', daí que seja o seu próprio sentido absolutamente inequívoco», pelo que tal declaração «mais não é que o reforço da decisão vencedora», por assim «manifestar plena concordância com a fundamentação, considerando, como ali se escreve, que o 'benefício... para o serviço público' tem reflexo apenas na avaliação da responsabilidade, ou seja, na fixação do montante das quantias a repor [...] nada tem a ver com a qualificação como indevidos dos pagamentos efectuados por conta do dito subsídio cuja percepção a mesma declaração de voto afirma 'ilegal'».
Por acórdão, proferido em conferência, de 30 de Janeiro de 2002, foi julgado improcedente o pedido de nulidade invocado, porquanto, como se pode ler neste aresto, «no acórdão ora em causa houve um voto de vencido, conforme consta na assinatura exarada pelo primeiro dos Exmos. Adjuntos, voto de vencido esse que se consubstancia na [...] declaração em anexo», não se mostrando assim possível «alegar que o acórdão não fez o necessário vencimento [...] sendo abusivo procurar na declaração que acompanhou o voto do segundo dos Exmos. Adjuntos aquilo que não está lá escrito».
5. Inconformados, os recorrentes interpuseram recurso, para o Tribunal Constitucional, do acórdão de 21 de Novembro de 2001, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, para apreciação da questão de inconstitucionalidade do Decreto-Lei n.º 110-A/81, de 14 de Maio «no seu todo por um lado e, por outro, o seu art. 8º, n.º 1 e elenco das excepções constantes do seu art. 6º, n.º 3» e ainda do Decreto-Lei n.º 57-C/84, de 20 de Fevereiro
«no seu todo por um lado e, por outro lado, o seu art. 9º», por violação dos
«artigos 167º, alínea n) e 53º da Constituição, na redacção então vigente».
Já neste Tribunal, os recorrentes apresentaram alegações onde, relativamente à questão de inconstitucionalidade orgânica, afirmaram:
Discutiu-se (e discute-se), por um lado, se têm ou não conteúdo semelhante as expressões 'Regime' e 'Bases do regime' e, por outro lado, o que deve ser entendido por 'Bases do regime'.
Não se ignoram as posições que defenderam serem equivalentes as expressões 'Regime de função pública' (vigente até à Revisão de 1982) e 'Bases do regime da função pública' (vigente após tal Revisão). Não se ignora, nomeadamente e por todos, o Parecer n.º 22/79 da Comissão Constitucional que fazendo um entendimento restritivo da expressão 'Regime da função pública' o faz equivaler a 'Bases gerais do regime da função pública'.
Pensa-se, porém, que tendo a CRP utilizado nuns casos [alíneas d) e
)] a expressão 'Regime' e noutros casos [alíneas n) e r)] a expressão 'Bases' elas não podem ter-se por equivalentes. [...]
Por outro lado, e sem conceder, mesmo num entendimento que faça equivaler as duas expressões ('regime' e 'bases do regime'), parece que a remuneração, maxime o estatuto remuneratório (no seu todo, ou princípios do mesmo), terá de ser considerado elemento integrador do regime/base do regime da função pública.
O DL 110-A/81, de 14 de Maio não visa a apenas uma mera 'revisão dos vencimentos do funcionalismo' antes '(...) introduzem-se princípios genéricos uniformizadores do estatuto remuneratório dos funcionários e agentes (...)', como expressamente consta do respectivo preâmbulo.
Por sua vez, o mesmo pode ser dito, designadamente quanto aos arts.
7º e seguintes do Decreto-Lei n.º 57-C/84, de 20 de Fevereiro.
E, relativamente à questão de inconstitucionalidade material, sustentaram:
Os subsídios dos autos visavam remunerar [...] a disponibilidade dos trabalhadores fora do horário normal de serviço (no caso do Piquete de Esgoto), a insalubridade do serviço (no caso do subsídio de insalubridade) e a penosidade
(no caso do subsídio de esforço).
[...]
[...] não se tiveram em conta duas realidades diferentes: uma a disponibilidade dos trabalhadores (fora do seu horário de trabalho) nos seus domicílios para se necessário poderem ser chamados e ir prestar trabalho; outra a prestação efectiva de trabalho se chamados para a prestar. Aquela disponibilidade era remunerada pelo subsídio de disponibilidade, esta prestação era remunerada como trabalho extraordinário.
O douto acórdão recorrido decidiu que o subsídio de disponibilidade constituía 'uma compensação adicional pelo mero facto de se prestar um certo serviço' ou seja, decidiu-se que a disponibilidade do trabalhador (isto é, o facto de ele se obrigar a estar em casa, disponível para ser chamado, fora do horário de trabalho, sábados, domingos e feriados) não constituía contrapartida do subsídio pago já que [...] a relação subsídio-contrapartida
(subsídio-disponibilidade) não é imediata mas apenas mediata.
[...]
[...] no entender do douto acórdão recorrido, quando o trabalhador está disponível mas não está efectivamente a prestar trabalho, não tem direito a qualquer remuneração... nem sequer ao subsídio de disponibilidade. E o mesmo se diga quanto aos outros dois subsídios em causa, já que se decidiu no douto acórdão recorrido 'O mesmo se aplica aos outros subsídios, que eram meros complementos da remuneração, não destinados à retribuição de trabalho efectivamente prestado'.
A admitir-se tal interpretação como a correcta para o art. 8º, n.º 1 do DL 110-A/81 e para o DL 57-C/84, enquanto mantém tal norma, tais normas violam a norma constitucional constante da alínea a) do n.º 1 do art. 53º da CRP e, após a 1ª Revisão, da alínea a) do n.º 1 do art. 60º.
Nas suas contra-alegações, o Ministério Público manifestou-se no sentido da improcedência de ambas as questões de inconstitucionalidade suscitadas.
No tocante à questão da inconstitucionalidade orgânica, ressalvando desde logo que a mesma «se deve naturalmente considerar circunscrita às normas legais, relevantes para o caso dos autos, e efectivamente aplicados à apreciação da questão da responsabilidade financeira dos recorrentes», e não à totalidade dos diplomas indicados, o Ministério Público entendeu que «a concreta tipificação do conceito de 'remunerações acessórias' legítimas, não pode considerar-se incluída na definição daquele estatuto geral da função pública, e, como tal, não se encontra consequentemente abrangida pela referida 'reserva de parlamento'.
E, relativamente à questão de inconstitucionalidade material, entendeu o Ministério Público:
[...] – importando, desde logo, notar que a tese sustentada pelos recorrentes redundaria em facultar à Administração a possibilidade de verificação de inconstitucionalidades e correcção de normas legais alegadamente inconstitucionais, atribuindo determinados subsídios ou remunerações complementares, proibidas por lei, com fundamento numa invocada e injustificada desigualdade na retribuição do trabalho.
Na verdade – e assente, pela interpretação das normas legais vigentes, que não é lícito à autarquia outorgar certa 'remuneração acessória' a determinados trabalhadores, colocados em situação de disponibilidade para a prestação eventual de trabalho, só através de uma decisão judicial seria possível verificar (e suprir, mediante decisão interpretativa ou aditiva) a eventual violação do princípio da igualdade no pagamento da retribuição do trabalho, estando seguramente excluído que tal 'decisão aditiva' pudesse ser tomada pelos órgãos autárquicos, através de uma verdadeira interpretação
'correctiva' do regime legal vigente.
6. Antes de mais, cumpre delimitar o objecto do presente recurso.
Os recorrentes suscitaram, em primeiro lugar, a questão da inconstitucionalidade orgânica do Decreto-Lei n.º 110-A/81, de 14 de Maio, e do Decreto-Lei n.º 57-C/84, de 20 de Fevereiro, «no seu todo», ou seja, referindo-se assim à totalidade das normas que compõem esses diplomas. Mas, na verdade, a decisão recorrida não aplicou a totalidade das normas integrantes desses diplomas legais, os quais dispõem sobre os vencimentos dos funcionários e agentes da função pública.
O presente recurso é interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 78º da LTC, ou seja, para apreciação da questão de inconstitucionalidade de norma ou normas que tenham sido concreta e efectivamente aplicadas na decisão recorrida.
E, até porque estamos em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade, o Tribunal apenas pode conhecer essas questões de constitucionalidade, não podendo, pois, in casu, fiscalizar a constitucionalidade do diploma na sua globalidade.
Objecto do presente recurso de constitucionalidade são, pois, e apenas, as normas constantes do artigo 8º, n.º 1, e do artigo 6º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 110-A/81, de 14 de Maio, e a norma constante do artigo 9º do Decreto-Lei n.º 57-C/84, de 20 de Fevereiro, únicas normas efectivamente aplicadas na decisão recorrida.
7. As normas em causa têm o seguinte teor: Decreto-Lei n.º 110-A/81 Artigo 6º
1-...
2-...
3- A actualização de gratificações por despacho não poderá ocorrer antes de um ano sobre a data da sua última fixação nem exceder a média ponderada do aumento anual de vencimentos.
Artigo 8º
1- É proibida a criação, aumento ou extensão de remunerações acessórias, nomeadamente ao pessoal dos serviços e unidades orgânicas que seja criados ou integrados, mantendo quadros de pessoal diferenciados e hierarquia própria, em departamentos em cujo âmbito as mesmas venham sendo praticadas.
Decreto-Lei n.º 57-C/84 Artigo 9º
São reduzidas no quantitativo correspondente a 30% do aumento dos vencimentos fixados neste diploma todas as remunerações acessórias não previstas em lei, decreto-lei ou decreto regulamentar, independentemente das formas que revista e dos motivos que determinaram a sua concessão ou das rubricas orçamentais por onde serão processadas.
Os recorrentes suscitaram, desde logo, a questão da inconstitucionalidade orgânica dessas normas, entendendo, no essencial, que «a remuneração, maxime o estatuto remuneratório (no seu todo, ou princípios do mesmo), terá de ser considerado elemento integrador do regime/base do regime da função pública». Por seu lado, o Ministério Público entendeu de forma contrária, afirmando que no
âmbito desse regime «se incluem a definição de 'sistema geral' de categorias chamadas a integrar os quadros do funcionalismo público, a definição das condições gerais de acesso à função pública – ou seja, o 'estatuto geral' da função pública, a definição do sistema de categorias, de organização de carreiras, de condições de acesso e de recrutamento, do complexo de direitos e de deveres funcionais que valem em princípio para todo e qualquer funcionário público e que, por isso mesmo, fornecem o enquadramento da função pública como um todo, dentro das funções do Estado». E concluiu, assim, que «a concreta tipificação do conceito de 'remunerações acessórias' legítimas, não pode considerar-se incluída na definição daquele estatuto geral da função pública, não estando, consequentemente abrangida pela referida 'reserva de parlamento'.
8. Pois bem, este Tribunal dispõe de jurisprudência – originária da Comissão Constitucional - firme quanto ao conceito de «regime» ou «bases de regime» da função pública, para os efeitos da actual alínea t) do artigo 168º da Constituição. Por todos, leia-se o que se entendeu no Acórdão n.º 36/96
(Acórdãos do Tribunal Constitucional, 33º vol., págs. 197 e segs.):
Importa assim, desde logo, apurar qual o exacto sentido e extensão da matéria que na alínea u) do artigo 168º, nº 1, da Constituição (na versão saída da revisão constitucional de 1982), se inscreve no domínio da competência reservada da Assembleia da República.
Na versão originária da Constituição a norma correspondente ao actual artigo 168º, nº 1, alínea v) - a alínea m), do artigo 167º - definia esta reserva legislativa em termos de 'regime e âmbito da função pública'.
Aquando da revisão constitucional de 1982, a matéria desta reserva transitou para o artigo 168º, nº 1, alínea u) com a definição que comporta no artigo 168º, nº 1, alínea v), após a revisão de 1989.
Ainda na vigência do primitivo texto constitucional, já na jurisprudência da Comissão Constitucional (cfr. pareceres nºs 22/79 e 12/82, Pareceres da Comissão Constitucional, vols. 9º, p. 48, e 19º, p. 119, respectivamente) se sustentava que na competência reservada da Assembleia da República entrava apenas o 'estatuto geral' da função pública, aquilo que 'é comum e geral a todos os funcionários e agentes', aí se compreendendo, designadamente, 'a definição do sistema de categorias, de organização de carreiras, de condições de acesso e de recrutamento, de complexo de direitos e deveres funcionais que valem, em princípio, para todo e qualquer funcionário público e que, por isso mesmo, favorecem o enquadramento da função pública como um todo, dentro das funções do Estado'; diversamente, já pertencia à competência legislativa do Governo a 'concretização' desse estatuto geral, a sua
'complementação, execução e particularização', ou seja, 'quer o desenvolvimento de tais princípios, quer a sua aplicação e adaptação aos sectores que exijam um regime particular específico ou até excepcional'.
Após a revisão constitucional de 1982, veio este entendimento a ser perfilhado e, porventura, reforçado pela jurisprudência do Tribunal Constitucional (cfr. por todos os acórdãos nºs 142/85, 154/86 e 103/87, Diário da República, II série, de 7 de Setembro de 1985 e I série, de 12 de Junho de
1986 e 6 de Maio de 1987, respectivamente).
No primeiro destes arestos, escreveu-se assim:
'Ora, se as coisas já se concebiam deste modo com referência ao texto constitucional anterior à revisão, com muito maior razão se impõe o entendimento de que a reserva estabelecida depois dela pelo actual artigo 168º, nº 1, alínea u) [presentemente alínea v)], abrange unicamente o estatuto geral da função pública e o delineamento geral do seu âmbito, mas não a particularização e concretização desse estatuto e o traçado em pormenor do respectivo âmbito de aplicação no concernente a quaisquer sectores concretos e individualizados da Administração Pública. Mais: essa reserva não se reporta sequer a um tratamento normativo desenvolvido da matéria em causa, mas tão só à definição dos seus princípios fundamentais.
É isso o que textual e indiscutivelmente resulta do referido preceito constitucional e se revela, a todas as luzes, do confronto dele com a precedente disposição do artigo 167º, alínea m). Na verdade, em face só do teor literal desta, ainda se poderia duvidar do rigor da orientação interpretativa a seu respeito fixada pela Comissão Constitucional, pelo menos em alguma ou algumas das formulações de que se revestiu; mas, depois que o legislador da revisão constitucional - certamente determinado por considerações de fundo idênticas às que estiveram na base da `jurisprudência' daquela Comissão - veio expressamente limitar a reserva da Assembleia `às bases' do regime e âmbito da função pública, não pode deixar de ter-se por absolutamente líquido que a extensão de tal reserva é unicamente a que ficou apontada, sendo inclusivamente menor do que a que lhe era atribuída na versão originária da Constituição. Temos assim que o que em exclusivo cabe à Assembleia da República (...) é a definição das grandes linhas que hão-de inspirar a regulamentação legal da função pública e demarcar o âmbito institucional e pessoal da aplicação desse específico regime jurídico. Na imediata dependência de um debate e de uma decisão parlamentar (é esse, bem se sabe, o significado da reserva) encontra-se apenas, e compreensivelmente, o estabelecimento do quadro dos princípios básicos fundamentais daquela regulamentação, dos seus princípios reitores ou orientadores - princípios esses que caberá depois ao Governo desenvolver, concretizar e mesmo particularizar, em diplomas de espectro mais ou menos amplo
(consoante o exigir a especificidade das situações a contemplar), e princípios que constituirão justamente o parâmetro e o limite desse desenvolvimento, concretização e particularização'.
Na esteira desta jurisprudência que por inteiro se perfilha, poder-se-á dizer em síntese final, que a reserva legislativa a que se reporta a alínea v), do nº 1, do artigo 168º da Constituição, remete para uma lei quadro da função pública, na qual se incluirá apenas o que tenha a natureza de regulamentação de princípio, por constituir, ou co-envolver, uma redefinição de princípios jurídicos da respectiva matéria.
Ora, ainda que se entenda, como o faz o Ministério Público, que aquela concreta tipificação ou concretização das remunerações acessórias não se enquadra na reserva de parlamento relativa às bases do regime da função pública, sempre terá, todavia, que se abranger nesse âmbito a fixação, proibição ou alteração genérica, ou seja, o regime geral e abrangente para toda a função pública (cfr., nomeadamente, o Acórdão n.º 78/84, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 4º vol., pág. 65 e segs., o Acórdão n.º 142/85, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 6º vol., pág. 81 e segs., e o Acórdão n.º 103/87, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 9º vol., pág. 83 e segs.), atinente às remunerações acessórias.
9. Pois bem, o que a norma constante do artigo 8º do Decreto-Lei n.º 110-A/81 faz é determinar expressamente a proibição da criação, aumento ou extensão das remunerações acessórias, sendo clara e inequívoca a intenção «genérica» e
«uniformizadora» do Decreto-Lei n.º 110-A/81, ao regulamentar o regime remuneratório da função pública, expressamente assumida no respectivo preâmbulo, onde se pode ler:
Numa perspectiva mais ampla de reforma da Administração, introduzem-se princípios genéricos uniformizadores do estatuto remuneratório dos funcionários e agentes, visando objectivos de moralização da função pública pela correcção de desigualdades sectoriais [...]
[...]
De acordo com os anunciados objectivos de moralização, adoptam-se dispositivos inovadores em matéria de limites remuneratórios, acumulações, remunerações acessórias e remunerações por trabalho extraordinário, nocturno e em dias de descanso.
Aparentemente, tanto bastaria para que se pudesse concluir pela inconstitucionalidade orgânica desta norma, uma vez que foi efectivamente emitida pelo Governo, desprovido de qualquer autorização legislativa para o efeito.
Todavia, o relator do presente processo neste Tribunal, entendendo que importava levar mais longe esta análise e apurar se a norma em causa continha matéria realmente inovatória ou se, pelo contrário, apenas reproduzia matérias já tratadas na legislação anterior, lavrou exposição em que se pronunciou pelo não conhecimento do recurso, mandando notificá-la aos recorrentes, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil.
10. Escreveu-se nessa exposição:
É que, e tal como tem sido entendido por este Tribunal, o eventual juízo de inconstitucionalidade tem por consequência a repristinação das normas anteriores, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 282º da Constituição - o qual, embora referido aos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, não deixa de ser aplicável aos processos de fiscalização concreta da constitucionalidade, como no caso presente (cfr., entre outros, Acórdão n.º
103/87, cit., e Acórdão n.º 490/89, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 14º vol., pág. 197 e segs.) .
Ora, o que se verifica é que a norma em causa não é inovatória, antes se limita a reproduzir o que a norma anterior – ou seja, a norma a repristinar - já dispunha na matéria.
Antes de mais, a norma a repristinar, no caso de um eventual juízo de inconstitucionalidade relativamente à mencionada norma constante do artigo 8º do Decreto-Lei n.º 110-A/81, seria a constante do n.º 1 do artigo 4º do Decreto-Lei n.º 204-A/79, de 3 de Julho, que foi expressamente mantida em vigor pelo artigo
10º do Decreto-Lei n.º 200-A/80, de 24 de Julho.
Essa norma dispunha expressamente:
É proibida a criação, aumento ou extensão de remunerações acessórias, nomeadamente ao pessoal dos serviços e unidades orgânicas que sejam criadas ou integradas, mantendo quadros de pessoal diferenciados e hierarquia própria, em departamentos em cujo âmbito as mesmas venham sendo praticadas.
Ou seja, esta última norma possui exactamente o mesmo teor da norma objecto do presente recurso.
De resto, norma do mesmo teor constava já do artigo 5º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 106/78, de 24 de Maio, norma imediatamente anterior àquela
última. Todas estas normas se inserem em diplomas anualmente emitidos, e que efectuavam a revisão anual do regime remuneratório da função pública. E comprova-se que, de facto, essa normação tem vindo a ser sucessivamente reproduzida ao longo dos anos.
Com efeito, remontando a 1974, o Decreto-Lei n.º 372/74, de 20 de Agosto, que, ao rever as remunerações do funcionalismo público, instituiu, com carácter de obrigatoriedade geral, o 13º mês (subsídio de Natal) e criou o subsídio de férias, considerou no seu preâmbulo que o «regime das horas extraordinárias e das remunerações acessórias do vencimento têm sido dois factores de perturbação do funcionalismo, pela desigualdade de tratamento que acarretavam» e que tal «situação não pode ser consentida num regime que procura a justiça e a eficiência», pelo que «as remunerações acessórias continuarão a ser consentidas enquanto não forem alcançados nas diversas categorias níveis de remuneração mais satisfatórios, mas, congelando-as nos seus níveis actuais, procura-se evitar que se criem ou agravem disparidades ou situações de injustiça». Este diploma continha, assim, diversas normas «moralizadoras» e
«correctoras» dessas situações de injustiça, regulamentando a remuneração do trabalho extraordinário, nocturno, atribuição e cálculo dos subsídios de Natal e de férias, pagamento de pensões, remunerações acessórias, diuturnidades, enfim, regulamentou de forma global a matéria de remunerações da função pública. O seu artigo 12º, n.º 1, determinou a estabilização «ao nível médio do 1º semestre de
1974 ou ao nível do mês de Julho do mesmo ano, conforme o que for mais elevado, o quantitativo de quaisquer proventos e abonos acessórios não acidentais recebidos para além da remuneração principal».
Já no ano seguinte, o Decreto-Lei n.º 294/75, de 16 de Junho, ainda antes da entrada em vigor da Constituição, veio rever a remuneração mínima para a função pública e regular outras providências relativas a esses trabalhadores, determinando no seu artigo 6º: «São deduzidas do valor correspondente ao aumento de vencimento fixado nos termos do presente diploma para a respectiva categoria as remunerações acessórias, em dinheiro ou em espécie, percebidas com carácter de regularidade, ainda que de valor variável». Continuou patente o intuito governamental de restringir as remunerações acessórias, que se manifestou claramente no Decreto-Lei n.º 362/75, de 10 de Julho, em cujo preâmbulo se assumiu expressamente a prioridade de «impedir que, por qualquer forma, se acentuem os desnivelamentos e as injustiças relativos que afectam os trabalhadores da função pública», entendendo o Governo «ser necessária e urgente a realização de uma análise comparativa das remunerações», e que proibiu, no seu artigo 5º, «a alteração ou a fixação de quaiquer remunerações acessórias, em dinheiro ou em espécie», até decisão governamental sobre a matéria, e enquanto decorressem os trabalhos da comissão criada pelo mesmo diploma para inventariar as situações de desigualdade mais relevantes em matéria de remuneraçãoes da função pública.
Subsequentemente, o Decreto-Lei n.º 923/76, de 31 de Dezembro, que veio estabelecer os novos vencimentos dos trabalhadores da função pública para esse ano, manteve em vigor, no seu artigo 2º, aquela proibição constante do artigo 5º do Decreto-Lei n.º 362/75, entendendo-a reportada: «a) à criação de novas remunerações acessórias; b) à alteração das existentes, excepto quando se tratar de redução do seu quantitativo; c) à extensão de remunerações acessórias a outros trabalhadores, ainda que da mesma categoria e serviço, que delas ainda não beneficiem».
E é esta proibição que foi sendo mantida até à norma ora em causa, ou seja, a constante do artigo 8º do Decreto-Lei n.º 110-A/81, cujo teor é em tudo idêntico àquelas normas anteriores.
[...] Conclui-se, assim, que a norma em apreciação limitou-se a reproduzir as normas anteriores, mantendo um propósito e um objectivo pré-constitucional (pelo menos desde 1975), de regularização das remunerações da função pública, não traduzindo qualquer inovação ou alteração ao respectivo regime, antes pelo contrário, trata-se da simples manutenção ou validação daqueles objectivos.
Sobre situações semelhantes se debruçou já este Tribunal, desde os tempos da Comissão Constitucional, tendo-se afirmado no Parecer n.º 2/79, dessa Comissão (Pareceres da Comissão Constitucional, 7º vol., pág. 189 e segs.), que
«a norma já existia, não nasceu com o novo acto legislativo que apenas a manteve em vigor», pelo que, «no que a ela se refere não se verifica, pois, a existência de uma vontade nova do legislador; o Governo limitou-se a reproduzi-la [...] sem que tenha procedido a qualquer criação normativa». Entendeu-se aí que se não verificava qualquer inconstitucionalidade orgânica de normas que se limitassem a reproduzir normas anteriores, nomeadamente tratando-se de normas de direito ordinário pré-constitucional. Este entendimento foi prosseguido pelo Parecer n.º 17/82 da Comissão Constitucional (Pareceres da Comissão Constitucional, 19º vol., pág.253 e segs.), no qual, estando em apreciação matéria relativa ao ensino, no âmbito dos direitos, liberdades e garantias, se concluiu pela forma seguinte: De facto, naqueles domínos, e desde que o Governo não crie uma outra normatividade e se limite a repetir no essencial o que já consta de textos legais anteriores, emanados do órgão de soberania competente, é de entender que, em tais casos, não há intromissão no sector de reserva legislativa do Parlamento. É que esta reserva é de ordem substancial; não de ordem formal. O Governo, ainda em zona de reserva, é livre, e desde que não toque no fundo, para dar novas vestes à legislação vigente e organicamente não viciada, coligindo-a, sistematizando-a ou simplesmente reproduzindo-a. Por outro lado, e embora só à Assembleia da República caiba cobrir legislativamente a área de direitos, liberdades e garantias, dispondo sobre as suas bases gerais e sobre os seus aspectos regulamentativos essenciais, não lhe pertence já, e em monopólio, dispor sobre os mais ínfimos pormenores do tema que, por natureza, não constituirão nunca desvios ou inflexões às grandes linhas traçadas e à consequente regulamentação basilar.
Esta orientação tem sido prosseguida por este Tribunal, podendo ler-se no Acórdão n.º 1/84 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 2º vol., págs.
173 e segs.) que no caso de «pura reprodução de um normativo organicamente constitucional tem sido entendido que não há fundamento bastante para que nelas se detecte uma inconstitucionalidade orgânica», entendimento professado também pelo Acórdão n.º 212/86 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 7º vol., tomo I, págs. 7 e segs.) e pelo Acórdão n.º 423/87 (Acórdãos do Tribunal Constitucional,
10º vol., págs. 77 e segs.), no qual se afirmou:
Simplesmente, como foi entendimento da Comissão Constitucional e continua sendo deste Tribunal, o facto de o Governo aprovar actos normativos respeitantes a matérias inscritas no âmbito da competência parlamentar não determina, por si só e automaticamente, a verificação de inconstitucionalidade orgânica.
Com efeito, desde que tais normas não criem um ordenamento diverso do já existente, limitando-se a retomar e reproduzir substancialmente o que já constava de textos legais anteriores emanados do órgão de soberania competente,
é de entender, em tais circunstâncias, não existir invasão daquela esfera de competência reservada.
Para além disso, importa sublinhar que no âmbito da reserva legislativa não devem incluir-se os temas que, por definição, não respeitam ao teor essencial das matérias ali integradas, isto é, aqueles aspectos que, pelo seu carácter adjectivo e neutral, em nada influenciam a sua dimensão e intensidade reguladora.
Esta orientação manteve-se, tendo-se, no Acórdão n.º 407/89 (Diário da República, II Série, de 14 de Setembro de 1989) e no Acórdão n.º 373/91
(Acórdãos doTribunal Constitucional, 20º vol., págs. 111 e segs.) passado a entender que o carácter não inovatório das normas deveria ter em conta não exclusivamente a norma em si, mas antes a globalidade do regime ou do diploma em que a norma se insere. Pode-se ler a este respeito no Acórdão n.º 373/91, cit.:
A finalizar esta aproximação à questão nuclear observe-se poder afirmar-se que se uma nova norma em nada afectar a reserva de lei parlamentar tudo se passa como se esta permaneça intacta.
Indo mais longe, já se admitiu ser o Governo livre para dar novas vestes à legislação em vigor, não obstante se movimentar em área de reserva, desde que «não toque no fundo», limitando-se a reproduzir a anterior normação, a coligi-la ou a sistematizá-la.
Seja como for, já assim não sucederá, por certo, se a alteração de um anterior regime provocar implicações de enquadramento global de dado sector, actualizando-o em relação de modificações de ordem extrínseca, por exemplo, com suficiente relevo para susceptibilizar a reequacionação da defesa in casu dos direitos fundamentais (ou equiparados).
Uma coisa é, de facto, verificar que a nova norma em nada afecta a reserva de competência da AR, tudo se passando como se o legislador se tivesse mantido inactivo [...] outra coisa significará uma intervenção em que o legislador governamental penetre na reserva parlamentar [...].
O critério mais «benevolente» começou por ter a anuência da Comissão Constitucional que defendeu a tese, ainda na vigência da versão originária da actual CR, da não existência de intromissão do sector de reserva legislativa parlamentar «desde que o Governo não crie uma outra normatividade e se limite a repetir no essencial o que já consta de textos legais anteriores, emanados do
órgão de soberania competente» (cfr. o Parecer n.º 17/82, de 20 de Maiode 1982, publicado no 19º vol. dos Pareceres da Comissão Constitucional, p. 256, no seguimento do Parecer n.º 2/79, de 19 de Janeiro de 1979, na mesma publicação,
7º vol., p. 193). Reiterada esta posição no Parecer n.º 31/79, de 6 de Dezembro de 1977 (Pareceres, cits., 10º vol., pp. 59 e segs.), mereceu já a discordância de Jorge Miranda, então membro daquela Comissão, e sofreu inflexão posterior, tendo em conta a globalidade do regime ou do diploma em que se situa a nova norma (cfr. Acórdão n.º 407/89, de 31 de Maio de 1989, in Diário da República, II Série, de 14 de Setembro de 1989).
[...] Ora, no presente recurso, a norma em causa, constante do n.º 1 do artigo 8º do Decreto-Lei n.º 110-A/81, de 14 de Maio, porque não inovadora, e meramente repetitiva de normas anteriores, pareceria estar abrangida por esta orientação.
De todo o modo, conforme este Tribunal tem repetidamente afirmado
(cfr., entre outros, o Acórdão n.º 337/94, Diário da República, II Série, de 4 de Novembro de 1994, o Acórdão n.º 283/97, o Acórdão n.º 556/98, o Acórdão n.º
490/99, todos inéditos, ou, mais recentemente, o Acórdão n.º 3/2000, Diário da República, II Série, de 8 de Março de 2000), o recurso de constitucionalidade desempenha uma função instrumental, o que significa que «só pode admitir-se quando o eventual julgamento de inconstitucionalidade possa, de algum modo, projectar-se no caso concreto, alterando ou modificando a solução jurídica – ou parte dela – que se obteve para a questão que esteve na origem do recurso».
(Acórdão nº 490/99, cit.). E como se afirmou também no Acórdão nº 556/98, cit.,«o recurso de constitucionalidade é um recurso instrumental, só fazendo sentido dele conhecer quando a decisão que o resolve se pode projectar com utilidade sobre a causa», cocluindo-se assim «que dele se não deva conhecer quando se não verifique qualquer efeito útil do mesmo sobre ela».
Por outro lado, os poderes de cognição do Tribunal Constitucional encontram-se limitados pelo pedido, apenas podendo apreciar a inconstitucionalidade das normas indicadas pelos recorrentes, ou seja, cuja apreciação tenha sido requerida, realizando-se tal fixação do objecto no requerimento de interposição do recurso. Ora, uma vez que aí não foi suscitada qualquer questão de inconstitucionalidade em relação às normas a repristinar no caso de um julgamento de inconstitucionalidade relativo às normas efectivamente em causa, a consequência prática de qualquer juízo de inconstitucionalidade no caso concreto em nada alteraria a decisão dada pelo tribunal a quo, tendo em conta a identidade de conteúdos entre o direito aplicado e o direito a repristinar.
Ou seja, o resultado prático do presente recurso, qualquer que seja o juízo a formular relativamente à questão de inconstitucionalidade suscitada, não produzirá quaisquer efeitos úteis na decisão recorrida, não possuindo assim quaisquer consequências práticas para os recorrentes.
Tanto basta para que o Tribunal Constitucional não deva conhecer do respectivo objecto, por inutilidade de qualquer juízo que viesse a emitir sobre a questão de inconstitucionalidade suscitada, relativamente à norma constante do artigo 8º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 110-A/81.
[...] O mesmo se dirá em relação às normas constantes do artigo 6º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 110-A/81, de 14 de Maio e do artigo 9º do Decreto-Lei n.º 57-C/84, que procedem, a primeira a um «congelamento» da actualização das gratificações a atribuir, e a outra à redução das remunerações acessórias existentes no quantitativo de 30% do aumento dos vencimentos fixados no mesmo diploma para esse ano.
Quanto à primeira norma, constante do n.º 3 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 110-A/81, que impede a actualização de gratificações por despacho antes de decorrido um ano sobre a última fixação, e proíbe que o aumento respectivo exceda a média ponderada do aumento anual de vencimentos, já o n.º 3 do artigo 3º do Decreto-Lei n.º 204-A/79 (também expressamente mantido em vigor pelo Decreto-Lei n.º 200-A/80), continha norma de teor substancialmente idêntico, pelo que também em relação a esta norma se verifica a inutilidade do presente recurso, uma vez que também aqui não foi suscitada a questão de inconstitucionalidade daquela norma anterior.
Também aquela outra norma constante do artigo 9º do Decreto-Lei nº
57-C/84 não se mostra inovatória, sendo antes reprodução do já disposto na legislação anterior: assim, encontrava-se já prevista no artigo 4º do Decreto-Lei n.º 200-A/80, no artigo 6º do Decreto-Lei n.º 204-/79 e no n.º 4 do artigo 5º do Decreto-Lei n.º 106/78, pelo que, independentemente do que se entendesse relativamente a uma eventual invasão daquele âmbito de matéria reservada da Assembleia, sempre se formularia em relação à mesma o mesmo juízo de inutilidade do presente recurso, porquanto não foi suscitada a respectiva inconstitucionalidade.
[...] Finalmente, o processo no âmbito do qual foi proferida a decisão recorrida é um processo para julgamento de responsabilidade financeira, nos termos do disposto no artigo 58º da Lei n.º 98/97, de 26 de Agosto (Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas), cujo n.º 3 explicita que «o processo de julgamento da responsabilidade financeira visa tornar efectivas as responsabilidades financeiras emergentes de factos evidenciados em relatórios de auditoria elaborados fora do processo de verificação externa de contas». Mais concretamente, no caso, tratava-se da denominada responsabilidade financeira reintegratória, prevista no artigo 59º da mesma Lei, que se reporta aos «casos de alcance, desvio de dinheiros ou valores públicos e ainda de pagamentos indevidos», sendo estes últimos nos termos do n.º 2 do mesmo artigo, «para o efeito de reposição os pagamentos ilegais que causarem dano para o Estado ou entidade pública por não terem contraprestação efectiva».
Estas responsabilidades nascem, pois, do incumprimento das disposições legais vigentes por banda dos agentes administrativos em causa. E o processo destina-se, então, a apurar esse comportamento dos mesmos, por forma a concluir – ou não – pela respectiva ilicitude; ou seja, apurar se era lícito aos agentes efectuar os pagamentos em causa, face à legislação vigente. Não se procura determinar se tais comportamentos – na forma dos pagamentos indevidamente efectuados - configuravam in casu uma situação de justiça material ou de correcção de qualquer desigualdade. Ou seja, não está em causa no presente processo – nem poderia estar, atenta a sua especial natureza – saber se os trabalhadores tinham ou não direito a receber uma determinada remuneração ou suplemento remuneratório, ou se essas remunerações acessórias tinham uma natureza correctiva de «desigualdades» ou «injustiças» materiais. Nem poderia ser esse o objecto deste especial tipo de processo de apuramento de responsabilidades financeiras.
É que, se se enveredasse por tal caminho, estar-se-ia então a atribuir aos agentes da Administração uma função, como diz o Ministério Público nas suas alegações, «correctiva» ou fiscalizadora da própria constitucionalidade das normas que lhe compete aplicar.
Uma tal decisão relativa à inconstitucionalidade material, por violação daquele artigo 59º da CRP, apenas poderia aproveitar aos trabalhadores em causa, em processo próprio por eles intentado. No presente processo, tal juízo seria de todo irrelevante para os recorrentes, que são os agentes da Administração, pois que em relação a eles não se coloca a questão de saber se tais pagamentos evidenciavam uma reposição da justiça ou igualdade material, mas apenas a questão de saber se podiam os mesmos actuar da forma que o fizeram, perante os preceitos legais em causa.
[...] O que leva à conclusão já formulada a propósito da inconstitucionalidade orgânica, que é a da inutilidade do presente recurso, dada a insusceptibilidade de a decisão a proferir no mesmo produzir qualquer efeito
útil na decisão recorrida, alterando-a ou modificando-a.
O que tanto basta para que se não deva conhecer do presente recurso, também nesta parte.
11. Em resposta à exposição do relator, vieram os recorrentes dizer quanto à questão da inconstitucionalidade orgânica:
Como a propósito da questão da inconstitucionalidade material também se dirá, o douto acórdão recorrido do Tribunal de Contas, em julgamento de responsabilidade financeira por actos praticados enquanto membros da Câmara Municipal de Évora, condenou os recorrentes na reposição de quantias pagas a trabalhadores e que os recorrentes consideravam devidas face ao sistema constitucional vigente, apesar de, em certos casos, a lei estabelecer de forma diferente.
Assim, a decisão a proferir, se for no sentido da inconstitucionalidade orgânica das normas em causa, acarretará a reformulação da decisão recorrida.
E, quanto à questão da inconstitucionalidade material, afirmaram:
A aplicabilidade directa dos preceitos constitucionais nos termos do nº 1 do art. 18º da CRP levanta problemas vários e complexos. Entre eles não é o mais simples o de saber qual a atitude a tomar pelos órgãos administrativos face a normas que reputem de inconstitucionais. Em tal caso, os órgãos administrativos podem ver-se nomeadamente confrontados com a compatibilização do respeito do 'princípio da constitucionalidade' com o do 'princípio constitucional da legalidade da Administração'. Uma boa síntese sobre esta questão, pode ver-se em J. C. VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 2ª Edição, maxime, a págs. 206-211, lição que aqui se dá por reproduzida. Os recorrentes (e muito menos o signatário, em nome das mesmos) não conseguem aprofundar e debater melhor a questão. Permitem-se, porém, referir que lhes parece que é no mínimo redutor dizer-se ou pensar-se que a Administração deve aplicar a lei, sem mais, ainda que a mesma lhe pareça claramente inconstitucional.
3. Por outro lado e salvo o devido e muito respeito, os recorrentes também não são alheios ao que sobre tal questão o Tribunal venha a decidir. É que não está em questão um pedido formulado por alguns dos trabalhadores em causa. Na base do presente recurso está uma condenação em responsabilidade financeira de cidadãos que dedicaram uma parte da sua vida ao exercício de funções no Poder Local e, nesse exercício, se viram confrontados com a necessidade de gerir situações em que o respectivo quadro legal, no seu entender, afrontava a Constituição. Tal entendimento, qualquer que seja a sua bondade (e pensa-se que é muita), não é, em qualquer caso, claramente descabido e muito menos temerário. E, por isso mesmo, ao decidir (como se espera) o Tribunal Constitucional a inconstitucionalidade em causa, o acórdão condenatório do Tribunal de Contas será reformulado.
12. Independentemente da questão de saber se este Tribunal poderia ou deveria não tomar conhecimento do recurso com base na circunstância de a inconstitucionalidade das normas impugnadas consequenciar a repristinação de normas do mesmo teor não impugnadas pelos recorrentes, a verdade é que o facto de os presentes autos se reportarem a um processo destinado a apurar a ocorrência de uma actuação ilegítima, por parte dos mesmos recorrentes, conduz necessariamente, como se sustentou na exposição do relator, ao não conhecimento do presente recurso.
É que, com efeito, não cabia aos recorrentes, enquanto agentes ou titulares de órgãos da Administração Pública, proceder à desaplicação de normas com fundamento na sua inconstitucionalidade, para mais quando se não tratava de uma inconstitucionalidade evidente, pelo que o eventual julgamento de inconstitucionalidade das normas impugnadas não poderia consequenciar o afastamento da respectiva responsabilidade financeira.
Assinale-se, aliás, que se aos ora recorrentes não seria lícito desaplicar as normas em causa com base na sua inconstitucionalidade material, ainda menos seria que o fizessem com base na sua inconstitucionalidade orgânica. E, assim sendo, a irrelevância do julgamento da questão de inconstitucionalidade tanto vale para a inconstitucionalidade material como para a inconstitucionalidade orgânica.
Nesta conformidade, o conhecimento do presente recurso sempre careceria de utilidade.
13. Nestes termos, decide-se não tomar conhecimento do recurso.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 15 UC’s, por cada um deles. Lisboa, 18 de Março de 2003 Luís Nunes de Almeida Artur Maurício Maria Helena Brito Carlos Pamplona de Oliveira José Manuel Cardoso da Costa