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Processo n.º 64/03
2.ª Secção Relator: Cons. Mário Torres (Cons.ª Maria Fernanda Palma)
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
1.1. Na acção de divórcio litigioso instaurada por A. contra B., foi, por sentença de 31 de Julho de 2001 do Juiz do Círculo Judicial de ------------------, decretado o divórcio, sendo ambos os cônjuges declarados igualmente culpados.
A ré apelou desta sentença, propugnando que o autor fosse declarado único culpado ou, se assim se não entender, principal culpado, mas, por acórdão de 2 de Maio de 2002, o Tribunal da Relação de Évora julgou improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida, com a seguinte fundamentação:
“1. Através da presente acção pretende o autor obter a dissolução do casamento celebrado com a ré por, no seu entender, esta ter violado os deveres conjugais de respeito, de cooperação e de coabitação a que estava vinculada na constância do casamento e por causa dele.
Por sua vez, a ré também pediu a dissolução do vínculo conjugal que a une ao autor, mas por alegada violação por parte deste dos deveres conjugais de cooperação, de respeito e de coabitação, bem como a sua condenação no pagamento de uma indemnização por alegados danos de natureza não patrimonial, causados pela dissolução do casamento.
Resulta, porém, dos autos que o Tribunal a quo decretou o divórcio mas com base na culpa de ambos os cônjuges, em igual proporção.
Na sua apelação, defende a ré que existe culpa exclusiva do autor e, como tal, deve este ser considerado o principal culpado do divórcio, por violação do dever conjugal de cooperação, ao não auxiliar a ré na sua doença de depressão, doença que se provou, em Tribunal, a ré padecer.
Está, assim, em causa saber se:
1.º – O autor violou os referidos deveres conjugais, nomeadamente, o de cooperação:
2.º – E, em caso afirmativo, se resulta dos autos que o autor é o
único e principal culpado do divórcio decretado.
Apreciando.
2. No âmbito do divórcio litigioso e para que este proceda com fundamento na violação dos deveres conjugais, a que estão reciprocamente vinculados ambos os cônjuges, rege o princípio geral de que qualquer violação culposa de deveres conjugais pode servir de fundamento ao pedido de dissolução do casamento, desde que assuma relevância suficiente para esse efeito.
Ou seja, de acordo com os ditames legais preceituados no artigo
1779.º, n.º 1, do Código Civil, qualquer dos cônjuges pode requerer o divórcio se o outro violar culposamente os deveres conjugais, quando a violação, pela sua gravidade ou reiteração, comprometa a possibilidade de vida em comum.
Preceito que tem sido interpretado no sentido de que, para tal, mostra-se necessário que o referido comportamento do cônjuge, pela sua gravidade ou reiteração, possa comprometer de forma definitiva a subsistência da relação conjugal, quando objectivamente analisado e inserido no contexto da situação real em que foi praticado. Isto é, quando aferido em concreto.
Impõe-se, assim, analisar os comportamentos do autor e da ré por forma a verificar em que medida é que qualquer um deles, ou ambos, são violadores, nos termos citados, dos respectivos deveres conjugais, para se concluir em que proporção cada um deles contribuiu, culposamente, para a falência da relação matrimonial existente e foi determinante da dissolução do casamento.
Tendo presente, para esse efeito, que basta a violação apenas de um dos deveres conjugais, desde que culposa, grave ou reiterada, e o facto violador comprometa a possibilidade de vida em comum.
A) Comportamento da ré para com o autor:
1. Está provado nos autos que a ré não o deixava conviver com os amigos, insultava-o, chamando-lhe «ordinário» e «cachopo».
Resulta também da matéria de facto provada que o casal tinha discussões, inclusivamente numa delas a ré partiu diversas peças de louça do enxoval do autor, e que haviam sido dadas a este pela sua mãe.
Provou-se ainda que a ré telefonou ao autor dizendo-lhe para ir buscar as suas coisas, porque as ia colocar na rua.
Ora, tal conduta da ré não pode deixar de ser considerada como violadora do dever do respeito a que estão vinculados ambos os cônjuges, e que a ré, pelo comportamento descrito, violou, ofendendo, com actos e palavras, a sensibilidade moral, o amor próprio e a susceptibilidade pessoal do autor [Neste sentido veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17 de Dezembro de
1985, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 352, pág. 370].
Comportamento que põe em causa a manutenção do vínculo conjugal, sendo suficiente para impedir o desenvolvimento harmonioso, pacífico e de bem-estar indispensável a uma vivência sã entre os cônjuges.
2. Está também provado que a ré nunca assumiu as tarefas domésticas. Quanto a estas, entendemos que o dever de cooperação entre os cônjuges exige a execução comum das tarefas domésticas, cabendo, pois, a ambos os cônjuges a partilha das tarefas domésticas, nos mesmos termos e de acordo com o princípio de igualdade dos cônjuges.
E, como é sabido, a inexecução das mesmas por parte de qualquer dos cônjuges constitui sempre, no âmbito da vivência matrimonial, um foco de conflitos permanente com repercussões negativas no bem-estar e na harmonia quotidiana do casal [E tanto assim que, a este propósito, salientam Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, in Curso de Direito de Família, I vol., pág. 359 e seguintes, que o acordo de repartição de tarefas entre os cônjuges constitui um dos mais importantes acordos sobre a orientação da vida em comum.].
Situação que pode ser agravada em função da formação educacional dos cônjuges, do meio social em que vivem, da própria profissão que desempenham ou dos encargos profissionais de cada um deles, não sendo despiciendo considerar que, em circunstâncias em que um possua mais disponibilidades do que o outro, pode inclusivamente essa partilha ser alterada para pender mais para um cônjuge do que para o outro, sem que tal facto possa significar violação do referido princípio da igualdade ou quebra do dever de ambos partilharem tais tarefas.
In casu, a ré, sem ter a exclusiva obrigação de desempenhar tais tarefas, a verdade é que nunca assumiu, pelo menos, com a sua quota parte.
Sabendo-se, por outro lado, que o autor é motorista de profissão, que se ausenta do lar durante todo o dia, saindo bem cedo de casa e regressando habitualmente já de noite. E que a ré é funcionária de uma Escola, com horário não impeditivo da execução dessas tarefas domésticas. E que, à data, sem filhos, não estava onerada com os trabalhos e cuidados que as crianças impõem e exigem, nada a impedindo, pois, de assegurar a lida da casa nas ausências do autor, pelo menos, numa parte das tarefas domésticas.
Contudo, provou-se que a ré habitualmente não cozinhava, não lavava a louça, nem limpava a casa. Comportamento que manteve mesmo após a sua cunhada e irmã terem metido «mãos à obra» e terem tomado a iniciativa de fazer a limpeza na sua própria casa, para evitarem, desta forma, os conflitos gerados permanentemente entre a ré e o autor – cf. matéria de facto provada inserida nas alíneas j) e l) (vide também factos das alíneas c) a h)). A falta de confecção da alimentação e de limpeza do lar, a falta do tratamento e arranjo das roupas e de lavagem das louças, no quadro descrito, demonstram desinteresse total pela vida do lar. E integram inquestionavelmente violação do dever de cooperação, entendido como a contribuição devida para os encargos da vida familiar e a obrigação de entreajuda dos cônjuges nos problemas quotidianos da sociedade familiar.
3. É certo que consta dos autos que a ré, a partir de determinada altura, passou a sofrer de depressão. Doença que possibilita uma certa prostração, mas que não serve para justificar tudo. Efectivamente, o comportamento de desleixo e desinteresse da ré em relação à casa e à vida familiar, não assumindo, pelo menos, uma parte das tarefas domésticas, remonta ao início do casamento, sendo anterior à sua doença. E a depressão, só por si, não serve para justificar tais actos, tanto mais que a ré se mantinha em actividade, a trabalhar, só tendo sido afastada do emprego muito tempo depois. Por outro lado, deve ter-se também presente o ambiente social em que autor e ré se integram. Anote-se que ambos vivem numa pequena localidade, num ambiente rural, onde os valores tradicionais ainda imperam e estão bastante arreigados, pelo que o facto de a ré se demitir, reiterada e prolongadamente, do exercício das funções domésticas, não executando tarefas tão essenciais e correntes como cozinhar, lavar louça ou arrumar a casa, é suficientemente grave para comprometer de forma irremediável a vida em comum do casal. E integra inequivocamente violação do dever de cooperação por parte da ré.
4. Atento o que antecede, a conclusão que se impõe é a de que, tendo a ré violado os deveres supra citados, bem andou o Tribunal a quo quando a considerou também como culpada pelo decesso do seu casamento e, nessa medida, decretou o divórcio.
B) Comportamento do autor para com a ré:
1. Alega a ré que o autor saiu de casa violando o dever de coabitação. Saída que localiza em Maio de 1999. Porém, dos factos provados o que resulta é que a vivência conjugal estava manifestamente em crise. Recorde-se que foi a própria ré que expulsou o autor de casa e que, depois de ele sair, não mais lhe permitiu que entrasse em casa e passou inclusivamente a recusar a sua presença – cf. factos provados descritos nas alíneas p) a u). Neste contexto, não se pode valorizar tal facto, dando-lhe o sentido e alcance pretendido pela ré: o de o autor ter violado o referido dever. A saída do autor está justificada, devendo-se ao próprio comportamento da ré. Aliás, é entendimento jurisprudencial dominante que o abandono do domicílio conjugal, só por si, também não constitui fundamento de divórcio. Carece, para tal, que se prove a culpa do cônjuge que praticou o acto de saída. E o ónus da prova dessa culpa recai sobre o cônjuge abandonado, visto ela constituir elemento constitutivo do próprio direito de requerer o divórcio, com base na violação do dever de coabitação. [Neste sentido veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 28 de Fevereiro de 1991, in Actualidade Jurídica,
15.º/16.º, pág. 36]. Assim, o cônjuge que invoca como fundamento do divórcio a violação do dever de coabitação tem de provar a culpa do outro cônjuge na violação desse dever. Prova essa que a ré não logrou efectuar.
2. Invoca ainda a ré que o autor violou o dever de respeito ao difundir publicamente que aquela não arrumava a casa e era «porca». Contudo, nesta matéria apenas se provou que o autor «dava a conhecer a terceiros que a ré não arrumava a casa nem fazia a comida». Não se tendo, porém, provado em que termos o difundiu nem onde: se era em locais públicos, e nos cafés, se o comentário era feito a estranhos ou se, ao invés, o autor se limitava a referir tais factos a pessoas do seu ciclo de relações, fazendo-o a título de mero desabafo e pelo desgosto que o comportamento da ré lhe provocava. A prova produzida é escassa, mostrando-se, pois, insuficiente para assumir a gravidade exigida pela lei no artigo 1779.°, n.° 1, do Código Civil. Por outro lado, sendo a culpa um elemento constitutivo do direito ao divórcio litigioso, incumbe ao cônjuge que o requer, com base na violação desse dever, provar que a violação culposa cabe ao outro cônjuge. [Sobre o entendimento de que não basta invocar a culposa violação de um dever, mas tem a mesma que, além de ser alegada, também ser provada, veja-se o acórdão da Relação de Coimbra, de
29 de Março de 1993, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 423, pág. 604] O que não aconteceu no caso sub judice.
3. Finalmente, alega a ré que o autor violou o dever de cooperação ao não lhe prestar auxílio na sua doença. Nesta matéria, está provado nos autos que a ré passou a ter sintomas de depressão pouco tempo após o casamento e que, por tal facto, recebia tratamento médico com acompanhamento psicológico, tendo a certa altura tentado suicidar-se. Mas nada nos autos permite assacar responsabilidades ao autor pelos estados psicológicos e emocionais da ré. Sabe-se, contudo, que o autor não acompanhou a ré às consultas médicas, não obstante ser do seu conhecimento que um médico que a seguia a aconselhou a fazer-se acompanhar pelo autor, quando fosse à consulta. Porém, também não aparece relatado nos autos o circunstancialismo que rodeou a ausência do autor a essas consultas, nem estão explicitadas as razões pelas quais o autor não acompanhou a ré às mesmas, nem o contexto em que estas decorreram, nomeadamente, desconhece-se se as consultas tiveram lugar em horas e dias a que o autor não pôde estar presente, ou se foi este que pura e simplesmente se recusou a comparecer. De qualquer modo, a conduta do autor também não pode ser encarada de forma displicente, porquanto a ré atravessava um período crítico, encontrando-se mais fragilizada e carecida de apoio. O que exigia, por sua vez, da parte do autor, colaboração, apoiando-a, o que, no quadro descrito, passava pelo seu acompanhamento às referidas consultas, pelo menos numa fase inicial. Daí que se possa considerar, nesta óptica, que o autor violou o dever de cooperação para com a ré. Porém, a factualidade provada não permite que seja assacada ao autor, no contexto citado e só por tais factos, a culpa principal e total pela ruptura da vida conjugal. A realidade fáctica retratada nos autos impede que se conclua nesse sentido, tanto mais que se provou que a ré, com o seu comportamento, contribuiu de forma considerável para desmoronar e inviabilizar o seu próprio casamento. Quando muito poderá dizer-se que o autor contribuiu, também, desse modo, com a sua quota parte para o divórcio. Destarte, bem andou o Tribunal a quo quando decretou o divórcio declarando ambos os cônjuges culpados, na mesma proporção, ainda que o tivesse feito com outros fundamentos. A culpa pertence, pois, igualmente a ambos os cônjuges.”
1.2. Ainda inconformada, a ré interpôs recurso de revista deste acórdão para o Supremo Tribunal de Justiça, terminando as respectivas alegações com a formulação, entre outras, das seguintes conclusões:
“(...)
E. Constitui violação grave do dever de respeito do marido para com a sua consorte o facto provado de que o autor dava a conhecer a terceiros que a ré não arrumava a casa nem fazia a comida, pois que tal viola a integridade moral do outro cônjuge, a consideração social, o amor próprio, a susceptibilidade e a sensibilidade pessoal, agravado pela doença de que a ré padecia, sendo inconstitucional a interpretação dada pelo acórdão recorrido aos artigos 1672.° e 1779.º, n.° 1, por violação do artigo 26.°, n.° 1, da Constituição, que reconhece a todos os cidadãos o direito ao bom nome e à reserva da intimidade da vida privada que o autor ostensivamente violou, sendo certo que resulta dos factos provados não uma violação pontual, mas uma violação continuada e reiterada («dava a conhecer»), resultando também a culpa do autor, inequívoca, do conjunto dos factos provados, pelo que se deve considerar que o apelado violou de forma grave e reiterada o dever de respeito para com a apelante.
F. Constitui também violação dos artigos 13.° e 36.°, n.° 1, da Constituição a interpretação que o acórdão recorrido dá aos artigos 1671.°, n.°
1, 1674.° e 1779.º do Código Civil e 36.°, n.° 1, da Constituição, pois a mesma levará a [que] o princípio da igualdade dos cônjuges possa não ser aplicável, atendendo designadamente à circunstância de que os cônjuges «vivem numa pequena localidade, num ambiente rural, onde os valores tradicionais ainda imperam e estão bastante arreigados, pelo que o facto de a ré se demitir, reiterada e prolongadamente, do exercício das funções domésticas, não executando tarefas tão essenciais e correntes como cozinhar, lavar roupa ou arrumar a casa, é suficientemente grave para comprometer de forma irremediável a vida em comum do casal» (e isto apesar do estado clínico vivido pela apelante), sendo certo que ninguém poder ser prejudicado ou privado de qualquer direito em razão do território de origem, instrução ou situação económico-social (artigo 13.°, n.°
2, da CRP).
(...)
I) O acórdão recorrido violou os artigos 712.º do Código de Processo Civil, 1671.º, 1672.º, 1674.º, 1779.º e 1787.º, n.º 1, do Código Civil e 13.º, n.º 1, 13.º, n.º 2, 26.º, n.º 1, e 36.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, devendo ser substituído por outro que declare o apelado o único culpado do divórcio ou, caso assim se não entenda, o principal culpado.”
1.3. O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 12 de Dezembro de 2002, negou provimento à revista. Após salientar que o objecto da revista consistia em apurar “se o autor violou os deveres conjugais, nomeadamente, os de cooperação, de respeito e de assistência, e, por consequência, se é o principal ou culpado único pelo requerido divórcio, na tese defendida pela recorrente/reconvinte”, recordar as regras jurídicas pertinentes e elencar os factos provados integradores do “comportamento da ré para com o autor”, do “comportamento do autor para com a ré” e do “contexto social e local dos cônjuges”, o citado acórdão consignou o seguinte:
“3. Exposto o método, relembre-se que o objectivo em curso, tendo como critério o objecto da revista, requerida pela ré, se destina a declarar o autor culpado único ou principal culpado pelo divórcio.
É, como se sublinhou, a tese da recorrente.
Uma questão preliminar, necessária à economia da análise: Não se sabe, nem é possível saber, neste processo, qual a causa da depressão da ré, logo após o casamento.
Esta causa é, porventura, a mãe de todas as consequências, que acabam de relatar-se, e a que o tribunal não chega, nem tem meios de chegar, pois faz parte da reserva da vida privada, insondável, do sentir e do pensar de cada um.
Por outro lado, nada nos autos nos permite concluir que os estados psicológicos e emocionais da ré tivessem sido provocados pelo autor, nem tanto foi exposto pela ré, ao reconvir.
Diga-se, a este propósito, e para tranquilidade da convicção julgadora, que a depressão que afectou a ré nunca foi apresentada como causa da omissão do dever de cooperação ou assistência do autor.
A única coisa que recai sobre ele, enquanto aqui recorrido, é a de que não acompanhou a ré às consultas médicas, em especial de psiquiatria.
Mas a decisão recorrida reconhece que «não aparece relatado nos autos o circunstancialismo que rodeou a ausência do autor a essas consultas, nem estão explicitadas as razões pelas quais o autor não acompanhou a ré às mesmas, nem o contexto em que estas decorreram, nomeadamente, desconhece-se se as consultas tiveram lugar em horas e dias em que o autor não pôde estar presente (o autor é motorista), ou se foi este que, pura e simplesmente, se recusou comparecer».
Nem se sabe, até, se a ré recusaria a sua companhia, como fazia com as consultas médicas, durante a gravidez, sendo certo que, quanto a estas consultas, a ré recusava-se a ser acompanhada pelo autor (Alíneas t) e u), Parte III).
4. Não é dado consistente, através da matéria apurada (Partes A e B), que se possa concluir que o autor deu causa ao desentendimento conjugal, como não se fez prova de que a culpa recaísse sobre o autor, na conjuntura de ter de abandonar o domicílio conjugal, como assinala a decisão recorrida (fls. 192). O que, objectivamente, parece resultar apenas contra o autor (Parte B) é que, como observou o acórdão recorrido, ele não acompanhou a ré na doença, quando o seu apoio era aconselh[ado] pelo médico psiquiatra, e ela dele carecia.
É certo, ainda, que o réu, a partir de Maio de 1999, abandonou o domicílio conjugal, já a ré estava grávida. Esta razão nunca ficou bem esclarecida. Mas não é difícil de aceitar que a saída corresponda ao arrastamento da crise conjugal reiterada, em que a reconciliação não era viável, e nem tinha interesse, face à gravidade que a deteriorada situação tinha atingido, e no quadro convivial do tipo de relação que resulta da alínea C), ponto 2. Era uma crise tornada irreversível, desde as primeiras manifestações de desavenças, que começaram com a depressão assumida pela ré (Ponto 2, alíneas A) e B)).
Nem é adivinhar se dissermos que, a certa altura, por causas ou caminhos diferentes, cada qual dos cônjuges nada fez para que a comunidade de vida se reconstruísse aos poucos, antes seguindo um caminho de hostilidade, em que a ruptura da comunhão de vida se tornou incontornável, fora do alcance de ambos e de qualquer deles, e progressivamente degradada.
5. No fundo, quem falhou? – eis como a questão pode agora ser recolocada, porventura com alguma crueza de linguagem! A resposta tem que ser dada, mas cingida aos limites em que vem posta a reconvenção, e na medida em que a matéria correspondente se projecta, e é acolhida, pela revista. Resposta que é a seguinte: seguramente que a prova contra o autor, mesmo considerando o princípio da aquisição processual, releva o sentido de que os factos integrativos do seu comportamento são insuficientes para se concluir, pela via normativa, que foi ele, sozinho, ou foi principalmente ele (ou com culpa sensivelmente superior – conclusão H), que deu causa à dissolução do casal. Dizendo o mesmo por outras palavras, a resposta à enunciada pergunta é a de que não foi concretizada suficientemente a demonstração de que o autor deu lugar a um comportamento culposo, causa de divórcio, em especial violando, sozinho ou principalmente ele, um dever de cooperação, de respeito pela integridade moral ou de assistência que tinha perante a ré – dever constituído e exercido em regime de reciprocidade – como é bom lembrar! E mais não é preciso avaliar, circunscritos como estamos à matéria do pedido reconvencional, na medida projectada na revista!
6. Atenta a prova recolhida e que se referenciou, nos seus aspectos mais relevantes de análise normativa, não há qualquer violação constitucional, como é manifesto, contra o que se invoca nas conclusões E), F) e I), sem apoio ou demonstração sustentáveis, na prova mencionada.”
1.4. Contra este acórdão interpôs a ré recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70° da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro, alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro – LTC), pretendendo “ver apreciada a inconstitucionalidade dos artigos
1672.° e 1779.°, n.º 1, do Código Civil, na interpretação que lhe foi aplicada no acórdão recorrido (em que manteve a interpretação já aplicada no Tribunal da Relação), por violação do artigo 26.°, n.º 1, da Constituição, que reconhece a todos os cidadãos o direito ao bom nome e à reserva da intimidade da vida privada”, e também “a inconstitucionalidade dos artigos 1671.°, n.º 1, 1674.° e
1779.° do Código Civil, na interpretação que lhe foi aplicada no acórdão recorrido (em que manteve a interpretação já aplicada no Tribunal da Relação), por violação dos artigos 13.° e 36.°, n.º 1, da Constituição”, questões de inconstitucionalidade essas que teriam sido suscitadas “nas alegações e nas conclusões do recurso de revista apresentado no Supremo Tribunal de Justiça”.
A primitiva Relatora proferiu despacho (fls. 232 e 233), suscitando a questão prévia de não invocação, durante o processo, de qualquer questão de constitucionalidade atinente aos artigos 1672.º e 1779.º, n.º 1, do Código Civil, e ordenando a produção de alegações relativamente à questão reportada aos artigos 1671.º, n.º 1, 1674.º e 1779.º do Código Civil.
Relativamente à questão prévia suscitada, a recorrente respondeu o seguinte:
“Com o devido respeito, que muito é, no entender da recorrente, foi correctamente suscitada a questão da inconstitucionalidade dos artigos 1672.° e
1779.º do Código Civil, na interpretação que lhe foi dada pelo Tribunal da Relação e que o Supremo Tribunal de Justiça manteve. Na realidade, a recorrente alegou:
«De resto, “a todos são reconhecidos os direitos (...) ao bom nome e reputação,
à imagem e à reserva da intimidade da vida privada e familiar” (artigo 26.°, n.°
1, da CRP). A interpretação que a Relação fez dos artigos 1672.° e 1779.º, n.°
1, ao considerar que o facto de que o autor “dava a conhecer a terceiros que a ré não arrumava a casa nem fazia a comida”, não se subsume no artigo 1779.° do Código Civil, viola aquele dispositivo constitucional, dada a importância que a própria Constituição dá ao bom nome, reputação e reserva da vida privada e familiar.»
No modesto entender da recorrente e com o devido respeito, entende-se que há uma dimensão normativa, ainda que não explícita, na decisão da Relação ao considerar mostrar-se a prova produzida «insuficiente para assumir a gravidade exigida pela lei no artigo 1779.º, n.° 1, do Código Civil». Ao fazer isto o Tribunal da Relação interpretou a norma em causa de um modo que exclui do seu âmbito de aplicação certas violações do dever de respeito e interpreta o conceito de gravidade do artigo 1779.º, n.° 1, do Código Civil de uma determinada forma (restrita), que a recorrente entende violar o artigo 26.° da Constituição.”
As alegações produzidas pela recorrente terminam com a formulação das seguintes conclusões:
“I – As decisões do Tribunal da Relação de Évora e do Supremo Tribunal de Justiça interpretaram o artigo 1674.° do Código Civil no sentido de as tarefas domésticas respeitarem sobretudo à cônjuge-mulher e pelo menos ser mais grave a violação de tal direito quando praticada pela cônjuge-mulher do que quando praticada pelo cônjuge marido.
II – Tal interpretação viola os artigos 13.° e 36.°, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
III – As decisões do Tribunal da Relação de Évora e do Supremo Tribunal de Justiça interpretaram os artigos 1674.° e 1779.°, n.º 1, do Código Civil, no sentido de que os mesmos factos consubstanciadores de violação do dever de cooperação tenham uma gravidade maior quando praticadas em meio rural do que quando praticada em meio urbano.
IV – Tal diferenciação não é legítima face à Constituição, tendo em conta o modo de vida hoje predominante nos meios ditos rurais pelo que tal interpretação viola os artigos 13.° e 36.°, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
V – As decisões do Tribunal da Relação de Évora e do Supremo Tribunal de Justiça interpretaram os artigos 1672.º e 1779.°, n.º 1, do Código Civil, no sentido de que para que haja uma violação culposa do dever de respeito com gravidade suficiente face ao artigo 1779.°, n.º 1, do Código Civil, não basta que um cônjuge ofenda outro na sua dignidade ou consideração, sendo ainda necessário provar-se o «quando» e o «como» da violação.
VI – Tal interpretação é restritiva dos direitos consagrados no artigo 26.°, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, sendo, por isso inconstitucional.”
O recorrido, por seu turno, contra-alegou, concluindo do seguinte modo:
“Os Acórdãos do Tribunal da Relação de Évora e do Supremo Tribunal de Justiça não interpretaram o artigo 1674.° do Código Civil no sentido de as tarefas domésticas respeitarem sobretudo à cônjuge-mulher ou de ser mais grave o incumprimento destas tarefas se praticado por esta ou se praticado pelo cônjuge-marido; Do mesmo modo, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Évora e do Supremo Tribunal de Justiça não interpretaram os artigos 1674.° e 1679.°, n.º 1, do Código Civil no sentido de terem maior gravidade os factos consubstanciadores de violação do dever de cooperação quando praticados em meio rural do que quando praticados em meio urbano; Os Acórdãos do Tribunal da Relação de Évora e do Supremo Tribunal de Justiça interpretaram correctamente aquelas disposições legais, com plena observância do princípio da igualdade dos cidadãos em geral e dos cônjuges em particular;
À luz do princípio constitucional da igualdade, a aplicação daqueles dispositivos legais aos factos provados em apreciação nos autos não poderia ter levado a decisão diversa da que foi proferida; Não houve qualquer violação de princípios constitucionais, designadamente os que se contêm nos artigos 13.°, 26.° ou 36.° da Constituição da República Portuguesa, na interpretação das normas jurídicas aplicadas ao caso em apreço nas decisões proferidas no Tribunal da Relação de Évora ou no Supremo Tribunal de Justiça.”
1.5. Na sequência da apreciação do projecto de acórdão apresentado pela primitiva Relatora, que não obteve vencimento, com consequente mudança de relator, determinou-se a notificação das partes para se pronunciarem, querendo, sobre a eventualidade de se vir a entender não se poder conhecer da questão de constitucionalidade suscitada a propósito das normas dos artigos
1671.º, n.º 1, 1674.º e 1779.º do Código Civil, por se considerar que a decisão recorrida não fez aplicação, como ratio decidendi, da concreta dimensão normativa cuja conformidade constitucional a recorrente pretende ver apreciada e/ou que esse conhecimento se revela inútil, por o hipotético provimento do recurso ser insusceptível de alterar o desfecho da acção em causa.
Apenas a recorrente respondeu, sustentando que o acórdão recorrido interpretou o artigo 1779.º do Código Civil “no sentido de que em meios rurais a violação de deveres conjugais ter uma gravidade ou dimensão diferente da mesma violação em meios urbanos” e interpretou os artigos 1671.º, n.º 1, 1674.º e 1779.º do mesmo Código “no sentido de que as tarefas correntes como cozinhar, lavar roupa ou arrumar a casa respeitarem exclusiva ou fundamentalmente à cônjuge mulher”, conduzindo tal interpretação a que se extraísse dos factos provados a “violação [do dever] de cooperação por parte da ré, mas não por parte do autor”, o que “não é compatível com um Estado de Direito Democrático, nem com o princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei, nem ainda com o princípio da igualdade dos cônjuges no casamento”, constituindo tal interpretação inconstitucional a ratio decidendi da decisão,
“no sentido de lhe estar subjacente a ideia de que é desigual o estatuto de marido e mulher no casamento, no que toca às tarefas domésticas”.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
2.1. Relativamente à questão prévia, levantada pela primitiva Relatora, de, a propósito dos artigos 1672.º e 1779.º, n.º 1, do Código Civil, não ter sido suscitada durante o processo uma questão de constitucionalidade normativa, dir-se-á o seguinte, reproduzindo, nesta parte, a formulação do primitivo projecto de acórdão:
A recorrente veio sustentar que, nas alegações de recurso perante o Supremo Tribunal de Justiça, suscitou uma questão de constitucionalidade normativa. Contudo, apenas transcreve a parte das alegações
(cf. transcrição da resposta à questão prévia realizada supra) que foi ponderada no despacho de fls. 232 e 233 e acerca da qual se afirmou então o seguinte:
“A recorrente, no que respeita às normas dos artigos 1672.º e 1779.º, n.º 1, somente impugna o enquadramento dos factos nas disposições legais aplicáveis. Com efeito, a recorrente insurge-se contra o não enquadramento na noção de violação culposa dos deveres conjugais do facto de o marido dar «a conhecer a terceiros que a ré não arrumava a casa nem fazia comida». Em momento algum é identificada com rigor uma qualquer dimensão normativa, apenas se assacando, nessa medida, a violação dos princípios constitucionais à própria decisão recorrida e não a uma norma jurídica. Por outro lado, o Tribunal da Relação de Évora, no acórdão confirmado pela decisão ora recorrida, considerou que a prova produzida quanto a tal matéria «é escassa, mostrando-se, pois, insuficiente para assumir a gravidade exigida pela lei no artigo 1779.º, n.º 1, do Código Civil», não enunciando, assim, qualquer dimensão normativa que pudesse coincidir com a questão concreta suscitada pela recorrente.”
A recorrente afirma agora que o Tribunal da Relação de
Évora interpretou a norma em causa de um modo “que exclui do seu âmbito de aplicação certas violações” do dever conjugal de respeito, interpretando o conceito de gravidade “de uma determinada forma (restrita)”.
Deve sublinhar-se que a resposta à questão prévia suscitada sempre constituiria momento processualmente inadequado para indicar pela primeira vez a questão de constitucionalidade que se pretende ver apreciada.
No entanto, e decisivamente, a verdade é que mais uma vez a recorrente não identifica qualquer critério normativo resultante da interpretação dos preceitos indicados que considere inconstitucional, apenas procedendo à invocação de uma “determinada” forma de interpretação sem explicitar qual e acabando, nessa medida, por se reportar somente e de novo à decisão recorrida.
Não se tomará, desse modo, conhecimento da questão relativa aos artigos 1672.º e 1779.º do Código Civil.
2.2. Relativamente à questão da conformidade constitucional da interpretação que teria sido dada às normas dos artigos
1671.º, n.º 1 (“O casamento baseia-se na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges”), 1674.º (“O dever de cooperação importa para os cônjuges a obrigação de socorro e auxílio mútuos e a de assumirem em conjunto as responsabilidades inerentes à vida da família que fundaram”) e 1779.º (“1 – Qualquer dos cônjuges pode requerer o divórcio se o outro violar culposamente os deveres conjugais, quando a violação, pela sua gravidade ou reiteração, comprometa a possibilidade da vida em comum. 2 – Na apreciação da gravidade dos factos invocados, deve o tribunal tomar em conta, nomeadamente, a culpa que possa ser imputada ao requerente e o grau de educação e sensibilidade moral dos cônjuges.”) do Código Civil, entende-se que, de facto, as instâncias não perfilharam a interpretação que a recorrente apoda de inconstitucional.
No julgamento das acções de divórcio impõe-se ao tribunal a formulação de três juízos sucessivos: 1.º – apreciar se os factos imputados a cada um dos cônjuges e considerados provados integram violação de algum dos deveres conjugais elencados no artigo 1672.º do Código Civil
(respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência); 2.º – em caso afirmativo, apreciar se tal violação, pela sua gravidade ou reiteração, compromete a possibilidade de vida em comum; e 3.º – em caso afirmativo, se a culpa pela ruptura da relação conjugal é imputável a apenas um dos cônjuges ou a ambos, e, nesta hipótese, se se reparte igualmente entre eles ou se um ou outro
é de reputar como principal culpado.
No presente caso, o autor imputou à ré violação dos deveres de respeito, de cooperação (nas tarefas domésticas) e de coabitação, e a ré reconvinte imputou ao autor violação dos deveres de respeito, de cooperação
(por não acompanhamento às consultas de psiquiatria) e de coabitação.
O Tribunal da Relação deu por não provada a violação, por qualquer das partes, do dever de coabitação e, por parte do autor, do dever de respeito, e deu por provada a violação dos deveres de respeito e de cooperação (nas tarefas domésticas) por parte da ré e do dever de cooperação (no acompanhamento da mulher às consultas de psiquiatria) por parte do autor.
A violação, pela ré, do dever de respeito (extraída dos factos de impedir o autor de conviver com os amigos, lhe chamar “ordinário” e
“cachopo”, ter partido diversas peças de louça do enxoval do autor, que lhe haviam sido dadas pela mãe, e ter telefonado ao autor a dizer para ir buscar as suas coisas, porque as ia colocar na rua – assim ofendendo, com actos e palavras, a sensibilidade moral, o amor próprio e a susceptibilidade pessoal do autor) foi considerada pela Relação como, por si só, suficientemente grave para comprometer a manutenção do vínculo conjugal.
Quanto à violação do dever de cooperação (nas tarefas domésticas) por parte da ré, a Relação não perfilha a interpretação arguida de inconstitucional pela recorrente, antes explicitamente a repudia. A Relação afirma peremptoriamente que “o dever de cooperação entre os cônjuges exige a execução comum das tarefas domésticas, cabendo, pois, a ambos os cônjuges a partilha das tarefas domésticas, nos mesmos termos e de acordo com o princípio da igualdade dos cônjuges”. Porém, entendeu que essa partilha pode “ser alterada para pender mais para um cônjuge do que para o outro” quando, designadamente,
“um possua mais disponibilidades do que o outro”, “sem que tal facto possa significar violação do referido princípio da igualdade ou quebra do dever de ambos partilharem tais tarefas”. Era o que sucedia no presente caso, em que o autor, sendo motorista de profissão, saía bem cedo de casa e regressava habitualmente já de noite, dispondo a ré, funcionária de uma escola e, à data, sem filhos, de horário não impeditivo da execução de, pelo menos, uma parte dessas tarefas domésticas. Ora, segundo a Relação, a verdade é que a ré – “sem ter a exclusiva obrigação de desempenhar tais tarefas” – “nunca assumiu, pelo menos, a sua quota parte”, e por isso, deu por verificada a violação do dever de cooperação, “entendido como a contribuição devida para os encargos da vida familiar e a obrigação de entreajuda dos cônjuges nos problemas quotidianos da sociedade familiar”. Daqui resulta inequivocamente que, contrariamente ao que sustenta a recorrente, a Relação – em sede de apreciação da violação dos deveres conjugais – não perfilhou nenhuma interpretação normativa conducente a uma diferenciação de estatuto de marido e mulher no casamento, no que toca às tarefas domésticas, fundada em critérios de sexo ou de ambiente social. A Relação nunca afirmou que essas tarefas cabiam exclusivamente à recorrente, tendo-se limitado a admitir que pendessem mais sobre ela, não por ser mulher ou por viver em meio rural, mas unicamente por ter maior disponibilidade de tempo para o efeito, em confronto com o marido, camionista de profissão, que habitualmente saía de casa de manhã cedo e regressava já de noite. Aliás, anote-se que nunca a ré, ao longo do processo, imputou ao autor violação do seu dever de cooperação na execução das tarefas domésticas.
A posterior referência, no acórdão da Relação, ao ambiente rural surge já não em sede de apreciação da existência de violação dos deveres conjugais, nem sequer em sede de repartição de culpas, mas antes na constatação das consequências objectivas que o incumprimento reiterado e prolongado por parte da ré da sua quota parte das tarefas domésticas teve no comprometimento da relação conjugal.
No recurso de revista, onde viria a ser proferido o acórdão ora recorrido, a questão colocada pela ré ao Supremo Tribunal de Justiça centrou-se, por um lado, na alegada atenuação da gravidade da violação, por sua parte, do dever de cooperação nas tarefas domésticas, atendendo à depressão de que, a partir de certa altura, passou a sofrer, e, fundamentalmente, na afirmação de que o autor, para além da violação do dever de cooperação (por não acompanhar a ré às consultas de psiquiatria), também violou os deveres de respeito (por comentar com terceiros o comportamento da ré) e de coabitação, derivando destas plúrimas violações a consequência de o mesmo dever ser declarado único ou, pelo menos, principal culpado. O Supremo Tribunal de Justiça não deu por verificadas as violações destes dois últimos deveres e, por isso, considerou comprometida a pretensão da recorrente de ver o autor declarado único ou principal culpado. Sendo esse o objecto da revista, em consonância com o pedido reconvencional, o Supremo Tribunal de Justiça nem sequer se pronunciou, no acórdão recorrido, sobre a questão de constitucionalidade agora em apreciação.
Porém, mesmo que se entenda que implicitamente manteve os juízos a esse respeito emitidos pela Relação, continuará a impor-se a conclusão de que não foi aplicada, como ratio decidendi, a interpretação normativa arguida de inconstitucional pela recorrente: nunca – repete-se – foi perfilhada a tese de um estatuto diferenciado entre homem e mulher quanto à repartição do dever de cooperação na execução das tarefas domésticas, fundado no sexo ou no meio social, mas antes e exclusivamente com base na maior disponibilidade de um dos cônjuges para o efeito. E, noutra perspectiva, mesmo que se considerasse incorrecta a referência feita aos valores dominantes no meio rural para efeitos de avaliação das consequências objectivas da violação, pela ré, do dever de cooperação nas tarefas domésticas na ruptura da sociedade conjugal, tal consideração nenhuma consequência poderia ter no sentido da decisão final da causa, assente, por um lado, que bastava a violação do dever de respeito, imputada à ré, para comprometer o casamento, e, por outro lado, que o não reconhecimento, pelo acórdão recorrido, em segmento insusceptível de ser afectado pelo presente recurso de constitucionalidade, da violação pelo autor dos deveres de respeito e de coabitação teve como efeito a impossibilidade de o mesmo vir a ser considerado único ou sequer principal culpado pelo divórcio.
Por estas razões, também não há que conhecer do recurso na parte relativa aos artigos 1671.º, n.º 1, 1674.º e 1779.º do Código Civil.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em não conhecer do recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em
10 (dez) unidades de conta.
Lisboa, 17 de Março de 2004.
Mário José de Araújo Torres Paulo Mota Pinto Benjamim Silva Rodrigues Maria Fernanda Palma (Vencida nos termos da declaração de voto junta) Rui Manuel Moura Ramos
Declaração de voto Tendo sido a primitiva relatora deste Acórdão, voto vencida pelas razões que me levaram a propor uma decisão de inconstitucionalidade e, também, a rejeitar a questão prévia que justificou o não conhecimento (constante de voto de vencida no Acórdão que mandou ouvir o recorrente quanto à questão prévia). Sobre tal questão prévia entendi que o acórdão recorrido – e neste ponto terá de ser considerado o acórdão da Relação – utilizava como fundamento cumulativo a dimensão normativa questionada pela recorrente, já que a questão que tinha a decidir se reportava à gravidade da culpa do recorrente, sendo, por isso, relevantes para a decisão os critérios normativos que o Acórdão do Tribunal Constitucional decidiu não conhecer. Quanto ao fundo, entendo o seguinte:
1. O Tribunal da Relação de Évora, no acórdão de 2 de Maio de 2002
(posteriormente confirmado pelo acórdão ora recorrido – acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Dezembro de 2002), interpretou estes preceitos legais no sentido de o dever de cooperação dever ser interpretado diferenciadamente em função do “ambiente social” em que os cônjuges se integrem, nomeadamente, em função da ruralidade e da aceitação de “valores tradicionais” pela respectiva comunidade local, extraindo, daí, conclusões sobre a violação de tal dever. Assim, a primeira questão de constitucionalidade que o presente recurso suscita
é a de saber se o princípio da igualdade consagrado permite que a aferição da gravidade da violação dos deveres conjugais ou até a violação de tais deveres
(nomeadamente do dever de cooperação) varie em função das características mais ou menos conservadoras e tradicionais das comunidades em que os cônjuges se inserem. A segunda questão suscitada pela recorrente, cuja apreciação vai implicada na apreciação da primeira, prende-se com a admissibilidade constitucional de os preceitos impugnados imporem ao cônjuge mulher o desempenho na economia conjugal de determinadas tarefas, tais como lavar a louça, limpar a casa ou tratar da roupa, de molde a, se tais tarefas não forem realizadas, o incumprimento ser imputável à mulher.
2. O princípio da igualdade, constitucionalmente consagrado no artigo 13º da Constituição, impede diferenciações entre pessoas, nomeadamente no que se refere aos seus direitos e deveres, que não se legitimem em fundamentos aceitáveis numa perspectiva racional e objectiva e que sejam arbitrárias. Ora, é verdade que as concepções de vida e de organização social sofrem processos de alteração histórica que modificam necessariamente as perspectivas do legislador e, igualmente, interferem nos critérios de validade normativa de certas soluções jurídicas. Sobre as relações entre as perspectivas sociais em evolução e o Direito existem no pensamento jurídico diferentes perspectivas, desde a pura sociologia jurídica até às concepções que concebem o primado absoluto dos valores ante a realidade. Tais concepções reflectir-se-ão, inevitavelmente, no modo de relacionar a Constituição com a realidade social. O problema que aqui se suscita, naturalmente, é o de saber se haverá concepções comuns ou dominantes persistentes da realidade social e dos comportamentos das pessoas que justificam diferenciações na aplicação de critérios jurídicos atinentes aos deveres no casamento ou se diferentemente tais critérios jurídicos não se legitimam nessas concepções mas antes numa lógica de valores.
3. Porém, independentemente de alguma variação metodológica na abordagem destas questões, sempre se terá de reconhecer que haverá práticas e concepções da realidade que não atingem razoabilidade suficiente à luz dos valores constitucionais para poderem ser a fonte de diferenciações legítimas das pessoas num Estado de direito democrático. Assim, afigura-se incontroverso que o Estado de direito democrático obsta à consideração como diferenciações razoáveis daquelas que possam colocar os cidadãos na dependência de esteriótipos ou de convicções tradicionais que afectem o conteúdo essencial do princípio da igualdade – por exemplo, no seu corolário da proibição de discriminação em razão do sexo, expressamente enunciado no artigo 13º, nº 2, da Constituição. Se é certo que o sentido, o significado, o conteúdo e até mesmo o tipo de deveres emergentes da sociedade conjugal evoluíram historicamente e variam nas diversas comunidades, em Portugal, por força da Constituição de 1976, operou-se uma reforma profunda no Direito da Família e, em particular, quanto ao casamento. Assim, o Direito, fazendo eco da própria evolução dos comportamentos sociais assumiu uma ruptura com modelos anteriores, nomeadamente no que respeita
à posição de mulher no casamento e na família Com efeito, um dos aspectos que a reforma do Direito da Família de 1977, aprovado na sequência da entrada em vigor da Constituição de 1976, pretendeu alterar foi o papel da mulher na comunidade conjugal. Nessa nova perspectiva, em sintonia com a Constituição de 1976, não se pode concluir que lavar a louça ou limpar a casa, por exemplo, são incumbências exclusivas da mulher, como expressão dos deveres de coabitação e assistência que sobre ela impendem. A não realização das referidas tarefas pela mulher não pode, por conseguinte, assumir a natureza de grave infracção dos deveres conjugais, sem outras considerações relacionadas com o modo como ambos os cônjuges acordam entre si gerir a sua autonomia no casamento. Ora, a perspectiva acolhida pelo tribunal a quo admite autonomamente a relevância de pretensos “valores tradicionais” que relegam a mulher para um papel de responsável (juridicamente responsável, sublinhe-se) pelas tarefas domésticas no âmbito da comunidade conjugal. O tribunal recorrido aceita tal concepção invocando o meio rural em que os cônjuges estão inseridos. Todavia, o meio social e as concepções tradicionais que lhe estão associadas não constituem fundamento legítimo para impor deveres jurídicos relacionados com a posição relativa dos cônjuges que possam condicionar a respectiva autonomia e ponham em causa a própria igualdade no
âmbito do casamento. Viola o princípio da igualdade a interpretação dada pelo acórdão sub judicio às normas dos artigos 1671º, nº 1, 1674º e 1779º do Código Civil. O presente recurso deveria ser, portanto, procedente quanto a tal questão.
Maria Fernanda Palma