Imprimir acórdão
Proc. n.º 47/03 Acórdão nº
166/03
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Por acórdão de 18 de Dezembro de 2001, o Tribunal da Relação de Lisboa negou provimento aos recursos que haviam sido interpostos por A e outro de uma decisão da 5ª Vara Criminal de Lisboa que, entre o mais, os condenara pela prática do crime de tráfico de estupefacientes (fls. 2007 e seguintes). Pode ler-se nesse acordão:
'[...] O recorrente A aponta à sentença impugnada a ausência de menção do exame crítico em relação à prova testemunhal e em relação às escutas telefónicas, quer quanto aos factos provados, quer quanto aos factos não provados.
[...] Os trechos da sentença que se transcreveram, contêm, sucintamente, como é de lei, a referência aos meios de prova que alicerçaram a decisão sobre a matéria de facto que considerou provada, indicando, entre o mais, a razão de ciência das testemunhas, a sua idoneidade e o modo convincente como depuseram, e mencionando a análise dos registos de conversações telefónicas em conjugação com outros elementos de prova resultantes da investigação. Relativamente ao factos que declarou não provados, expressou a ausência de meios probatórios e indicou os motivos por que não considerou credível o depoimento do co-arguido, no que concerne ao conteúdo da mala [...]. Pode, pois, concluir-se que: a) o tribunal ponderou, criticamente, os motivos de facto da respectiva decisão
– isto é, não agiu discricionariamente; b) a decisão tem virtualidade para convencer os interessados e os cidadãos em geral; c) o controlo da sua legalidade – nomeadamente por tribunal superior – não é prejudicado pela forma como é proferida. Não se verifica, pois, a omissão de exame crítico das provas que fundamentaram a decisão, improcedendo, assim, a arguição da nulidade a que se refere o artigo
379º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Penal, nem a violação dos princípios consignados nos artigos 205º, nº 1, e 32º, nº 1, da Constituição da República.
[...] Em suma, em função do reexame das provas requerido pelos recorrentes, o resultado não conduz a qualquer alteração da decisão relativa à matéria de facto declarada provada e não provada pelo douto acórdão impugnado. Com efeito, à luz das regras da experiência, perante os elementos de investigação documentados (intercepções telefónicas e demais elementos documentais) de que resultou apurar-se, por operações lógicas de raciocínio, a preparação de um plano e a sua execução que terminou com o transporte de uma mala contendo cocaína, envolvendo os dois recorrentes, não pode, salvo o devido respeito, considerar-se haver ausência de provas para se concluir como se fez no tribunal recorrido.
[...].'
2. Deste acórdão interpôs A recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo na motivação respectiva concluído do seguinte modo (fls. 2050 e seguintes):
'I. Nulidade do Acórdão
1. Venerando Tribunal da Relação ao omitir pronunciar-se, quer quanto a factos provados, quer não provados, entendendo genericamente que o acórdão de 1ª instância não enfermava de nulidade, violou o art. 379º nº 1-c) do C.P.P..
2. Continua o recorrente a entender que a fundamentação está desprovida de exame crítico, designadamente quanto à forma como as escutas telefónicas serviram para confirmar a acusação e não os factos alegados na contestação, quando na realidade nunca nas mesmas é referido qualquer transporte de cocaína, mas sim pedras preciosas como se refere na contestação.
[...] II. Validade das escutas
4. Meritíssimo Juiz deve tomar conhecimento das gravações efectuadas e só depois face à ponderação destas e ordenada a sua junção, deverá prorrogar o prazo de intercepção e fundamentar essa prorrogação, o que não foi o caso, conforme despachos.
5. Não houve supervisão jurisdicional das escutas realizadas a partir dos postos de escuta, na medida em que se não mostra ter sido ouvida pelo M. JIC qualquer cassete contendo elementos de prova recolhidos a partir da audição das fitas magnéticas com as conversações interceptadas.
6. Atendendo que o M. Juiz se limitou a ordenar a junção nos termos sugeridos pelos Senhores Inspectores da Polícia Judiciária unicamente obedeceu ao critério escolhido pela entidade policial, não tendo sido respeitado o nº 3 do art. 188º, nem o prazo consignado no nº 1 daquele artigo.
7. Não houve supervisão jurisdicional atempada das escutas telefónicas, constatando-se que toda a iniciativa e verificação do interesse de matéria interceptada ficou a cargo dos elementos da Polícia Judiciária, o que não se coaduna com o vertido no artº 188º nº 1-3 do C.P.P..
[...]
10. Assim sendo, considerando que toda a iniciativa e verificação do interesse da matéria interceptada ficou a cargo exclusivo dos elementos da Polícia Judiciária, as quais não foram de imediato apresentadas ao M. Juiz, entende-se que as escutas realizadas aos postos telefónicos são nulas e consequentemente nulo o valor das provas obtidas mediante o recurso às mesmas, nos termos dos artigos 34º, 32º-18 da C.R.P e 189º e 126º do C.P.P.
11. A se não entender desta forma, deve considera-se inconstitucional por violação das disposições conjugadas dos arts. 32º-8, 34º-1-4 e 18º da C.R.P., a norma constante do art. 188º nº 1 do C.P.P., na redacção à altura, quando interpretada no sentido de não impor que o auto de intercepção e gravação de conversações telefónicas, seja de imediato lavrado e, levado ao conhecimento do Juiz e que, autorizada a intercepção e gravação por certo período, seja concedida a autorização para a sua continuação, sem que o Juiz tome conhecimento do resultado anterior.
[...].'
Na sua resposta a este recurso, o representante do Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Lisboa sustentou que o mesmo não merecia provimento (fls. 2081 e seguintes), tendo formulado, entre outras, as seguintes conclusões:
'a) O acórdão que condenou o arguido recorrente na 1ª Instância e é agora criticado não padece de quaisquer vícios que o tornem nulo, tendo feito adequada, pertinente e completo exame crítico da prova produzida em julgamento; b) As escutas telefónicas realizadas foram autorizadas por autoridade judicial, não se configurando, assim, qualquer nulidade insuprível. c) Eventuais irregularidades na concretização das mencionadas escutas, que se traduzem em nulidades – art. 189 do CPPenal –, estão dependentes de arguição nos termos do art. 120, nºs 1 e 3, al. a) do CPPenal. d) Porque na audiência de julgamento do arguido foram reproduzidas e contraditadas as escutas telefónicas que haviam sido judicialmente ordenadas e autorizadas, não tendo merecido, em qualquer momento, um qualquer reparo por banda deste, a prova que corporizam é válida podendo e devendo ser levada em conta para aferir da responsabilidade do arguido. e) Nos autos nenhuma interpretação tida por inconstitucional se fez do art. 188, nº 1 do CPPenal.
[...].'
Nas alegações, o representante do Ministério Público junto do Supremo Tribunal de Justiça sustentou que o recurso merecia provimento parcial
(fls. 2120 e seguintes), tendo nomeadamente afirmado o seguinte:
'[...] Considera o recorrente que a fundamentação da matéria de facto está desprovida de exame crítico, pelo menos no que toca à forma como foram valoradas as escutas e quanto aos factos considerados não provados. Contudo, contrariamente ao que refere o recorrente, a fundamentação de facto
(fls. 1826-7) não é omissa quanto aos factos não provados, explicando (fls.
1827) que, perante duas versões contraditórias dos factos, o tribunal não considerou credível a versão do arguido, mas sim a da acusação, enunciando sinteticamente as razões dessa convicção. No entanto, omitiu efectivamente o tribunal qualquer referência ao conteúdo das escutas (fls. 1826) e consequentemente qualquer apreciação crítica do seu valor probatório, sendo certo que essas escutas tiveram papel relevante na fixação dos factos. Assim, parece verificar-se a nulidade dos arts. 374°, n° 2 e 379°, n° 1, a) do CPP, que determina apenas a invalidade da decisão, mas não do julgamento. Relativamente à nulidade das escutas, dir-se-á apenas que, mesmo a existir, ela estará sanada, por força do art. 120°, n° 3, c) do CPP, desde o encerramento do inquérito.
[...].'
O recorrente A também alegou (fls. 2130 e seguintes), tendo, entre o mais, sustentado o seguinte:
'[...] O Tribunal Constitucional, pelos acórdãos nº 407/97 e 299/01, já decidiu que seria inconstitucional uma interpretação daquele normativo [artigo 188º do Código de Processo Penal] que não impusesse que o auto de intercepção de gravação de conversações telefónicas fosse imediatamente lavrado após toda a escuta efectuada e levado ao conhecimento do Juiz.
[...] Da exposição desta situação resulta que os autos com as fitas gravadas não foram apresentados imediatamente ao JIC, como determina o artº 188º, n.º 1 do C.P.P., que as transcrições de parte das conversas escutadas constantes dos autos não foram seleccionadas pelo JIC, mas sim pela PJ. Conforme determina o art. 189º, do C.P.P., todos os requisitos e condições referidos nos arts. 187º e 188º, do C.P.P., são estabelecidos sob pena de nulidade. Resta saber se estamos perante nulidades sanáveis pela sua não arguição atempada, ou perante nulidades que podem ser conhecidas oficiosamente e a todo o tempo, por serem insanáveis. Em primeiro lugar, devemos ponderar se estamos perante um caso de utilização de um meio proibido de prova, considerando nulo e insusceptível de utilização, nos termos do art. 126º, do C.P.P., o qual transpõe para a lei ordinária o princípio estabelecido no art. 32º, nº 8, da C.R.P. – «são nulas todas as provas obtidas mediante... abusiva intromissão... nas telecomunicações». Dispõe o nº 3, do art. 126º, do C.P.P., que ressalvados os casos previstos na lei, são nulas as provas obtidas mediante intromissão nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular. Ora, um dos casos previstos na lei é precisamente a situação prevista no art.
187º, do C.P.P. – escuta autorizada por um Juiz, em investigação de um determinado tipo de crime, justificando-se essa escuta por ser um meio necessário e adequado para a obtenção de prova naquele caso – o que ocorreu neste processo. Se, na realização dessas escutas não foram cumpridos determinados formalismos exigidos pela lei processual na execução, já é uma questão que não diz respeito
à admissibilidade da escuta, mas sim a vícios ocorridos na sua execução. Nestes casos a intercepção foi efectuada numa situação em que a Lei admite que ele seja realizada, pelo que não estamos perante a utilização de um meio proibido de prova, verificaram-se foi violações das regras estabelecidas para a realização das escutas, em que estas são admissíveis, o que constitui simples nulidade de acto processual, a enquadrar nos artigos 118º e seguintes do C.P.P.
[...] Mesmo que se entenda que a falta de apresentação imediata das gravações ao JIC não cabe em nenhuma das situações previstas no art. 119 do C.P.P., pelo que deve ser considerada uma nulidade dependente de arguição atempada, nos termos do art.
120º do C.P.P., que deveria ter sido arguida até ao encerramento do debate instrutório, nos termos da alínea c), do nº 3, do art. 120º, do C.P.P. e não o foi, mostrando-se sanada. Já o mesmo se não passará quanto à selecção pela PJ, através da transcrição, das partes das gravações que continham elementos relevantes para os autos, estamos perante a prática de um acto jurisdicional por quem não está investido nesse poder, pelo que devemos considerar esse acto como juridicamente inexistente. Daqui resulta que apenas as transcrições das gravações constantes das escutas devem ser consideradas inexistentes, não podendo, pois, ser valorado o seu conteúdo, através das intercepções. Exigindo a lei que o JIC efectue uma selecção entre as gravações efectuadas dos elementos relevantes para a prova e que só esses elementos sejam valorados, procedendo-se à destruição do demais, de modo a não se verificar uma devassa desnecessária da vida privada dos escutados, não tendo sido efectuada essa selecção, não pode o Tribunal utilizar em julgamento, como meio de prova, as gravações sem terem sido previamente seleccionados pelo órgão competente sob pena de se verificar essa devassa injustificada da vida privada. A lei processual no art. 188º, do C.P.P., consignou que os resultados das intercepções telefónicas para serem valorados, como meio de prova, deveriam ser transcritos em auto, restrito apenas às conversações consideradas relevantes pelo JIC. Não o tendo sido (uma vez que a forma como o foram deve ser considerada juridicamente inexistente), não podem essas gravações ser valoradas sem que tenha sido efectuada essa selecção.
[...].'
3. Por acórdão de 9 de Outubro de 2002 (fls. 2138 e seguintes), o Supremo Tribunal de Justiça negou provimento ao recurso com os seguintes fundamentos:
'[...] Comecemos pela análise da 2ª questão: a violação, pelo acórdão recorrido, dos artºs 188º e 189º do C.P.Penal.
[...]
[...] entende o A que, em relação às escutas telefónicas, não houve supervisão jurisdicional atempada, constatando-se que toda a iniciativa e verificação do interesse na matéria interceptada ficou a cargo dos elementos da Polícia Judiciária, o que se não coaduna com o vertido no artº 188º, nº 3 do C.P.Penal. E porque o auto de intercepção e gravação de conversações telefónicas não foi lavrado de imediato e levado ao conhecimento do Juiz, daí que as escutas sejam nulas e, a fortiori, nulo o valor das provas assim obtidas. Logo não podem ser valoradas pelo tribunal. Que dizer? As escutas telefónicas realizadas foram autorizadas pelo Juiz e, por conseguinte, não se configura qualquer nulidade insuprível. Se, na realização das escutas, ocorreram incorrecções, as mesmas estão sanadas, desde o encerramento do inquérito, nos termos do artº 120º, nº 3, al. c) do C.P.Penal.
É também essa a posição do Exmº Sr. Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal. Com efeito é preciso ter em conta que as escutas telefónicas, ordenadas e autorizadas judicialmente, foram reproduzidas e contraditadas na audiência de discussão e julgamento do arguido, sem que da parte deste merecessem qualquer reparo, em qualquer momento. Por isso que a prova que elas consubstanciam tem toda a validade e pode servir de fundamento à condenação do arguido. Não há que falar, então, de interpretação inconstitucional do artº 188º do C.P.Penal. Vejamos, agora, a questão atinente à violação do art. 379º, nº 1, als. a) e c) do CPPenal. Alegou o recorrente A, quanto ao douto acórdão recorrido, que da fundamentação da matéria de facto está ausente o necessário exame crítico, tanto em relação à prova testemunhal, como em relação às escutas telefónicas, e isso quer quanto aos factos provados, quer quanto aos factos não provados. A decisão é pois nula por falta da motivação, em virtude da omissão de exame crítico das provas. Será? A este respeito expendeu a 1ª instância que serviram de base para formar a convicção do Colectivo:
[...] Por isto tudo, a Relação de Lisboa não teve dúvidas em concluir que o texto da
1ª Instância continha sucintamente a referência aos meios de prova que alicerçaram a decisão sobre a matéria de facto que considerou provada, indicando a razão de ciência das testemunhas, a sua idoneidade e o modo convincente como depuseram, e mencionando a análise dos registos de conversações telefónicas em conjugação com outros elementos de prova resultantes da investigação. Quanto aos factos não provados, de igual modo a Relação de Lisboa entendeu que a
1ª Instância expressou a ausência de meios probatórios e indicou os motivos por que não considerou credível o depoimento do co-arguido, no que concerne ao conteúdo da mala que entregou a B, para ser transportada do Brasil para Lisboa. Em suma, a Relação de Lisboa pôde concluir que a nulidade invocada, do art.
379º, nº 1, al. a) do C.P.Penal, por omissão de exame crítico das provas que fundamentaram a decisão era inexistente. Com efeito, a 5ª Vara Criminal de Lisboa ponderou criticamente os motivos de facto da respectiva decisão. Esta decisão tem virtualidade para convencer os interessados e os cidadãos em geral. E, pelo modo como ficou plasmada permite perfeitamente o contrato da sua legalidade, nomeadamente pelo tribunal superior. Pergunta-se o Recorrente: Por que razão as escutas telefónicas serviram para confirmar a tese da acusação e não a tese de defesa, se o conteúdo das mesmas nunca refere qualquer transporte de cocaína, antes referindo pedras preciosas, tal qual a versão da sua contestação?
[...]
[...] foi na sequência do teor das conversações telefónicas que foi montada a vigilância ao aeroporto de Lisboa, em 17-10-93 e se assistiu à chegada àquele do B com a mala de cocaína e, mais tarde, à chegada também do pai do Recorrente, em cuja viatura o B colocou a mesma. Por outro lado, a convicção do Tribunal sobre a matéria de facto não provada baseou-se na inexistência de prova quanto a tais factos, como assim, na oposição entre estes e os factos provados, com especial relevância para a alegação do arguido C, quando refere ter entregue ao B, no Brasil, uma mala para ser transportada para Portugal. Mala essa que, alegadamente, continha ouro, pedras preciosas e pedras semi-preciosas. Argumentação que não convenceu o tribunal, face à prova produzida em sentido contrário, nomeadamente ao conteúdo das conversações telefónicas ouvidas em audiência, à apreensão da mala, contendo cocaína, ao B e ao pai do Recorrente, nas circunstâncias relatadas na descrição fáctica. Está assim dada resposta, e, quanto a nós, de maneira cabal, à pergunta do Recorrente, não se podendo afirmar, como este fez, ter havido omissão de exame crítico ao conteúdo das escutas.
[...].'
4. Deste acórdão interpôs A recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70º, n.º 1, alíneas b) e g), da Lei do Tribunal Constitucional, nos seguintes termos (fls. 2236 e seguintes):
'[...] Quer o acórdão recorrido, quer o da 1ª instância e do Tribunal da Relação, aplicaram a norma constante do nº 2 do art. 374º do C.P.P., com o sentido que o acórdão de 2 de Dezembro de 1998, nº 680/98 entre outros, do Tribunal Constitucional – Processo nº 456/95 da 2ª Secção, julgou inconstitucional. O Acórdão desse Tribunal Constitucional julgou inconstitucional a norma do nº 2 do art. 374º do C.P.P. na interpretação segundo a qual a fundamentação das decisões em matéria de facto se basta com a simples enumeração dos meios de prova utilizados em 1ª Instância não exigindo a explicitação do processo de formação da convicção do Tribunal por violação do dever de fundamentação das decisões dos Tribunais previstos no nº 1 do art. 205º da C.R.P., bem como quando conjugada com a norma da al. b), c) do nº 2 do art. 410º. No caso concreto o Tribunal da 1ª Instância ao não ter fundamentado os «factos dados como não provado», ou «a não valoração de prova que foi produzida e caso as escutas telefónicas fossem válidas quais e porquê serviram para convencer o Tribunal, já que estas tiveram um papel relevante na fixação dos factos, fez errada interpretação das normas contidas no art. 374-2 e 410-1 e 2 al. b) e c), do C.P.P., ferindo-as de inconstitucionalidade material e violando o princípio contido no art. 32-1 e 2 da C.R.P. e 205º da C.R.P.. Também quanto à medida da pena no que se refere ao recorrente, o Tribunal «a quo» fez errada interpretação das normas contidas no art. 374º nº 2 combinadas com as normas contidas nos arts. 71°-2-al. f) e c) do C.P. por violação do dever de fundamentação das decisões em matéria de pena, não exigindo a explicitação do processo de formação da convicção do Tribunal, por violação do dever de fundamentação das decisões dos Tribunais previsto no nº 1 do art. 205º da Constituição, bem como, quando conjugada com a norma das alíneas b) e c) do nº 2 do artigo 410º do mesmo Código, por violação do direito ao recurso consagrado no nº 1 do artigo 32º, também da Constituição. Neste sentido o douto Acórdão do Tribunal Constitucional 680/98 da 2ª Secção, entre outros. Foi suscitada esta questão na motivação de recurso e nas conclusões nº 1 a 3 do S.T.J. O Tribunal «a quo» fez errada interpretação das normas contidas no art. 187º do C.P.P. quanto à não fundamentação do despacho a autorizar a intercepção dos postos telefónicos, designadamente para se aferir da necessidade ou não da intromissão nos postos telefónicos e também errada interpretação das normas contidas no art. 188º, quanto às condições previstas naquele artigo referente aos elementos recolhidos através da intercepção das postos telefónicos, em que o M. JIC, não supervisionou, nem seleccionou os elementos relevantes para a prova, nem os apreciou para aferir da necessidade de prosseguimento das escutas. Também não foi de imediato, lavrado auto e levado ao seu conhecimento, as mesmas escutas, tendo sido violados os princípios constitucionais, art. 32-8, 34-1-4 e
18-2 da C.R.P. A arguição da nulidade revista no art. 189º, por inobservância do preceituado no art. 187º, 188º, haverá de ser considerada atempada consubstanciando a proibição de prova prevista no nº 3 do art. 126º CPP, e acarretando a nulidade da prova através daquela obtida, nulidade que, de um lado, implica a impossibilidade da sua utilização e, de outro, a destruição de todo o processado posterior. A se entender que se trata de nulidade sanável o que se repudia, a norma que permite a sanação da referida nulidade é inconstitucional por violação da intimidade da vida privada e familiar em que se traduza as intercepções e gravações telefónicas, sem o consentimento do titular – art. 34º-1-4 da C.R.P.,
26º-4, 32º-8 da C.R.P.. Também o S.T.J. aplicou a norma constante do art. 188º-1 do C.P.P., da forma que já anteriormente foi julgada inconstitucional pelo próprio Tribunal Constitucional através do Acórdão 347/01-1ª Secção. Estas questões foram suscitadas na Motivação, Conclusões e respectivas alegações de Recurso.
[...].'
O recurso foi admitido por despacho de fls. 2246 e v.º.
5. Nas alegações (fls. 2298 e seguintes), concluiu A do seguinte modo:
'1. O Tribunal «a quo» fez errada interpretação das normas contidas no nº 2 do art. 374° do C.P.P., na interpretação segundo a qual a fundamentação quanto à matéria de facto provada e não provada se basta com a simples enumeração dos meios de prova utilizados, não exigindo exame critico por violação do art. 32º-1 da C.R.P. e art. 205° da C.R.P
2. Continua o recorrente a entender que a fundamentação está desprovida de exame critico, designadamente quanto à forma como as escutas telefónicas serviram para confirmar a acusação e não os factos alegados na contestação, quando na realidade nunca nas mesmas é referido qualquer transporte de cocaína, mas sim pedras preciosas como se refere na contestação.
3. Meritíssimo Juiz deve tomar conhecimento das gravações efectuadas e só depois face à ponderação destas e ordenada a sua junção, deverá prorrogar o prazo de intercepção e fundamentar essa prorrogação, o que não foi o caso, conforme despachos.
4. Não houve supervisão jurisdicional das escutas realizadas a partir dos postos de escuta, na medida em que se não mostra ter sido ouvida pelo M. JIC qualquer cassete contendo elementos de prova recolhidos a partir da audição das fitas magnéticas com as conversações interceptadas, nem consta nenhum auto de junção das fitas magnéticas para serem ouvidas, seleccionadas e ordenada a destruição do que não interessa.
5. Atendendo a que o M. Juiz se limitou a ordenar a junção nos termos sugeridos pelos Senhores Inspectores da Polícia Judiciária unicamente obedeceu ao critério escolhido pela entidade policial, não tendo sido respeitado o n° 3 do art. 188°, nem o prazo consignado no n° 1 daquele artigo.
6. Não houve supervisão jurisdicional atempada das escutas telefónicas, constatando-se que toda a iniciativa e verificação do interesse de matéria interceptada ficou a cargo dos elementos da Polícia Judiciária, o que não se coaduna com o vertido no art. 188° nº 1-3 do C.P.P..
7. Não resultaram pois as transcrições da selecção feita pelo M. JIC, mas sim pela Polícia Judiciária, pelo que se está perante acto jurisdicional levado a cabo por quem não está investido desse poder, pelo que tal acto terá de ser considerado inexistente.
8. Consequentemente não deverão as gravações dessas cassetes referentes aos registos magnéticos ser valoradas pelo Tribunal, porque as normas que consideraram válidas aqueles registos magnéticos fizeram uma errada interpretação dos princípios constitucionais violadores dos arts. 34°, 32°-8 e
205° da C.R.P.
9. Considerando que toda a iniciativa e verificação do interesse da matéria interceptada ficou a cargo exclusivo dos elementos da Polícia Judiciária, as quais não foram de imediato apresentadas ao M. Juiz, entende-se que as escutas realizadas aos postos telefónicos são nulas e consequentemente nulo o valor das provas obtidas mediante o recurso às mesmas, pelo que o Tribunal «a quo» fez errada interpretação das normas contidas no art. 189°, conjugado com o art.
126°-6 do C.P.P., violadora dos princípios constitucionais, nos termos dos artigos 34°, 32°-8 da C.R.P.
10. Deve considerar-se inconstitucional por violação das disposições conjugadas dos arts. 32°-8, 34º-1-4 e 18° da C.R.P., a norma constante do art. 188° n° 1 do C.P.P., na redacção à altura, quando interpretada no sentido de não impor que o auto de intercepção e gravação de conversações telefónicas, seja de imediato lavrado e, levado ao conhecimento do Juiz e que, autorizada a intercepção e gravação por certo período, seja concedida a autorização para a sua continuação, sem que o Juiz tome conhecimento do resultado anterior. Neste sentido Ac. do Trib. Const. 10 J/01, 1ª Secção, Proc. 299/01.
11. A arguição de nulidade prevista no art. 189º, por inobservância do preceituado no art. 187º e 188º, haverá de ser considerada atempada, consubstanciando a proibição de prova prevista no nº 3 do art. 126º, e acarretando a nulidade da prova através daquela obtida, nulidade que, de um lado, implica a impossibilidade da sua utilização e, de outro, a destruição de todo o processado posterior.
12. A se entender que se trata de nulidade sanável como o entendeu o Tribunal «a quo», o que se repudia, a norma que permite a sanação da referida nulidade é inconstitucional por violação da intimidade da vida privada e familiar em que se traduza as intercepções e gravações telefónicas, sem consentimento do titular – art. 34°-1-4 da C.R.P., art. 26°-4, art. 32-8 da C.R.P.'
Nas contra-alegações (fls. 2326 e seguintes), o representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional formulou as conclusões que seguem:
'1 – O acórdão recorrido não aplicou, no que se refere à definição do âmbito da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, o critério normativo julgado inconstitucional pelo acórdão nº 680/98.
2 – Na verdade, considerou explicitamente o aresto proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça que a fundamentação de tal decisão contém um exame crítico de provas, que excede manifestamente a simples enumeração dos meios probatórios utilizados em 1ª instância – não competindo obviamente a este Tribunal Constitucional sindicar da suficiência e concludência da concreta e específica fundamentação acolhida nas decisões das instâncias, por tal matéria ser desprovida de natureza «normativa».
3 – O arguido recorrente não suscitou, em termos procedimentalmente adequados, a questão de constitucionalidade da interpretação normativa do artigo 120º, nº 3, alínea c) do Código de Processo Penal, que integra manifestamente a «ratio decidendi» do acórdão recorrido quanto à questão da pretensa «nulidade» das escutas telefónicas.
4 – Na verdade, não incluiu tal matéria nas conclusões da sua motivação e alegações – as quais delimitam o elenco de questões a apreciar pelo tribunal «ad quem» – levando a que o Supremo se não debruçasse sobre tal questão de inconstitucionalidade, nem sequer curando de incluir tal norma no âmbito do requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, apesar de ser manifesto que foi nela que o Supremo alicerçou decisivamente a solução que deu à questão.
5 – De qualquer modo – e mesmo que assim se não entendesse – não viola nenhum preceito ou princípio constitucional a interpretação normativa que considera sanada a nulidade decorrente de eventual preterição de alguma das «formalidades das operações» de escuta, estabelecidas no artigo 188º do Código de Processo Penal – considerando, consequentemente, inaplicável o regime referente ao uso de métodos proibidos de prova, constante do artigo 126º, nº 3, do Código de Processo Penal – e aplicando à nulidade tipificada no artigo 189º o regime decorrente do artigo 120º, nº 3, alínea c) do Código de Processo Penal.
6 – O que – a conhecer-se de tal questão – sempre levaria à improcedência do recurso interposto pelo arguido.'
Notificado para se pronunciar sobre as questões prévias levantadas pelo Ministério Público, veio o recorrente dizer o seguinte (fls. 2336):
'[...] Carece de razão o Senhor Procurador quanto à invocada inconstitucionalidade da norma constante do art. 374°-2 do C.P.P,. na interpretação segundo a qual a fundamentação das decisões em sede da matéria de facto, se basta com a simples enumeração dos meios de prova, não exigindo exame critico. Foi claro o Senhor Procurador junto do Supremo Tribunal, quando exarou o seu parecer ao referir:
«omitiu efectivamente o Tribunal qualquer referência ao conteúdo das escutas
(fls. 1826) e consequentemente qualquer apreciação crítica do seu valor probatório, sendo certo que essas escutas tiveram um papel relevante na fixação dos factos». Quer o S.T.J., quer o Tribunal inferior, fizeram urna errada interpretação da norma constante do nº 2 do art. 374° do C.P.C., ferindo-a de inconstitucionalidade material. Pelo que deve o presente recurso ser apreciado e dado provimento.
[...].'
Cumpre apreciar.
II
6. No requerimento de interposição do presente recurso (supra, 4.), pretende o recorrente que o Tribunal Constitucional aprecie a conformidade constitucional da norma do n.º 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal (por si só ou em conjugação com as normas do artigo 410º, n.º s 1 e 2, alíneas b) e c), do mesmo Código e do artigo 71º, n.º 2, alíneas f) e c), do Código Penal: cfr. fls. 2237 de tal requerimento, onde também se indicam estas últimas normas), na interpretação segundo a qual a fundamentação das decisões sobre a matéria de facto se basta com a simples enumeração dos meios de prova utilizados em 1ª instância, não exigindo a explicitação do processo de formação da convicção do tribunal.
A decisão recorrida teria, segundo o recorrente, aplicado tal norma
(ou normas) nessa interpretação.
Compulsando a decisão recorrida (supra, 3.) verifica-se, todavia, que tal norma não foi aplicada nessa interpretação. Aí se diz, com toda a clareza, que a decisão da 5ª Vara Criminal de Lisboa tinha 'virtualidade para convencer os interessados e os cidadãos em geral', permitindo perfeitamente, pelo modo como ficou plasmada, 'o controlo da sua legalidade, nomeadamente pelo tribunal superior' e não se podendo afirmar 'ter havido omissão de exame crítico ao conteúdo das escutas'.
Das decisões proferidas no processo inequivocamente decorre portanto que se procedeu à explicitação do processo de formação da convicção do tribunal, e que não se considerou bastante a enumeração dos elementos de prova.
Não destrói evidentemente a conclusão a que se chegou o argumento utilizado pelo recorrente na sua resposta às contra-alegações do representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional (supra, 5.): concretamente, o de que '[o]mitiu efectivamente o Tribunal qualquer referência ao conteúdo das escutas [...] e consequentemente qualquer apreciação crítica do seu valor probatório', conforme havia sido sustentado pelo representante do Ministério Público junto do Supremo Tribunal de Justiça.
Trata-se, na verdade, de argumento irrelevante, atendendo a que o que importaria demonstrar era a efectiva aplicação, pelo tribunal recorrido, da norma do artigo 374º, n.º 2, do Código de Processo Penal, na interpretação questionada pelo recorrente, e não a existência ou inexistência dos pressupostos de facto de que partiu o tribunal recorrido.
Como a aplicação, pela decisão recorrida, da norma (ou interpretação normativa) que se submete à apreciação do Tribunal Constitucional constitui pressuposto processual do recurso previsto na alínea g) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional – aquele que, quanto à norma do n.º 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal, foi interposto pelo recorrente –, conclui-se que, no que diz respeito a esta norma, não é possível conhecer-se do objecto do recurso.
Aliás, mesmo que, quanto à norma do n.º 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal, o recorrente tivesse pretendido interpor o recurso da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional – o requerimento de interposição do recurso não é particularmente claro a este propósito (supra, 4.)
–, a conclusão seria a mesma, já que também constitui pressuposto processual desse recurso a aplicação, pela decisão recorrida, da norma cuja conformidade constitucional se pretende que o Tribunal Constitucional aprecie.
Procede, como tal, a correspondente questão prévia levantada pelo Ministério Público (supra, 5.).
7. No requerimento de interposição do recurso (supra, 4.) pretende ainda o recorrente a apreciação das normas contidas nos artigos 187º e 188º do Código de Processo Penal, numa certa interpretação.
Contudo, como refere o representante do Ministério Público nas suas contra-alegações (supra, 5.) – a esta questão prévia não tendo respondido o recorrente –, a apreciação de tais normas pelo Tribunal Constitucional carece de utilidade, atendendo a que a ratio decidendi do acórdão recorrido se relaciona exclusivamente com o preceito contido no artigo 120º, n.º 3, alínea c), do Código de Processo Penal. Diz-se efectivamente na decisão recorrida (supra, 3.):
'[...] Se, na realização das escutas, ocorreram incorrecções, as mesmas estão sanadas, desde o encerramento do inquérito, nos termos do art.º 120º, n.º 3, al. c) do C.P.P.
[...].'
Assim, mesmo que o Tribunal Constitucional concluísse no sentido da não conformidade constitucional das normas dos artigos 187º e 188º do Código de Processo Penal, na interpretação apontada pelo recorrente, tal conclusão nenhuma influência teria no sentido da decisão recorrida, pois que qualquer eventual irregularidade atinente às escutas já estaria, sob o ponto de vista do tribunal recorrido, sanada. Não pode, pois, por falta de interesse processual, conhecer-se do objecto do recurso quanto a tais normas.
8. Utilidade na apreciação do recurso só haveria, pois, e como refere o Ministério Público (supra, 5.), se o recorrente pretendesse a apreciação da norma do artigo 120º, n.º 3, alínea c), do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual permite a sanação de eventuais irregularidades resultantes do não cumprimento do disposto no artigo 187º ou 188º do Código de Processo Penal.
Todavia, o recorrente não especificou, no requerimento de interposição do presente recurso (supra, 4.), a norma do artigo 120º, n.º 3, alínea c), do Código de Processo Penal. Nem o fez, aliás, nas alegações (supra,
5.). Apenas se referiu vagamente à 'norma que permite a sanação da referida nulidade', não tendo, portanto, logrado sequer arvorá-la em objecto do presente recurso.
Ainda que se entendesse que tal referência vaga não vedaria a apreciação, pelo Tribunal Constitucional, da norma contida naquele preceito – em atenção à possibilidade de uma deficiência de tal teor ser suprida (cfr. n.º s 5 e 6 do artigo 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional) –, a verdade é que, como salienta o Ministério Público nas contra-alegações (supra, 5.), o recorrente não suscitou, podendo fazê-lo, a inconstitucionalidade da interpretação normativa do artigo 120º, n.º 3, alínea c), do Código de Processo Penal durante o processo. A esta questão prévia também não respondeu o recorrente.
Como tal, relativamente a esta interpretação normativa não se encontra preenchido um dos pressupostos processuais do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, não podendo conhecer-se do respectivo objecto.
9. Como resulta das regras gerais, o objecto do recurso não pode ser alargado, mas apenas restringido, nas alegações (artigo 684º, n.º 3, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 69º da Lei do Tribunal Constitucional). No caso dos autos, o recorrente refere-se, nas alegações apresentadas neste Tribunal (supra, 5.), à inconstitucionalidade de normas não identificadas no requerimento de interposição do recurso – é o caso da norma do artigo 126º, n.º
6, do Código de Processo Penal. Tal referência implica alargamento do objecto do recurso, pelo que não pode o Tribunal Constitucional apreciar tais normas. III
10. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide não conhecer do objecto do recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em oito unidades de conta.
Lisboa, 28 de Março de 2003 Maria Helena Brito Carlos Pamplona de Oliveira Luís Nunes de Almeida Artur Maurício José Manuel Cardoso da Costa