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Processo n.º 742/03
2.ª Secção Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
A. intentou, no Tribunal do Trabalho de Lisboa, acção contra B., pedindo, com fundamento em rescisão com justa causa, por sua iniciativa, do contrato de trabalho que os ligava, a condenação da ré em indemnização por antiguidade e, subsidiariamente, em indemnização por danos não patrimoniais.
Por despacho de 29 de Setembro de 1999, a petição foi liminarmente indeferida, nos termos do artigo 234.º-A, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC), por ser evidente a improcedência da acção.
O autor agravou deste despacho, obtendo provimento por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 10 de Maio de 2000, que revogou o despacho recorrido e determinou a sua substituição por outro que ordenasse a notificação da ré para contestar.
Por despacho saneador-sentença de 20 de Junho de 2000, foi a acção julgada improcedente (por se ter considerado extinto, por caducidade, o direito de rescisão do contrato e por, quanto ao pedido de indemnização por danos não patrimoniais, se ter entendido que o autor contribuíra para a produção dos danos com culpa superior à da ré), mas julgada procedente a reconvenção (através da qual a ré reclamara a indemnização correspondente às remunerações do período do aviso prévio em falta); consequentemente, foi a ré absolvida do pedido e o autor condenado a pagar à ré reconvinte a quantia de 340 000$00, acrescida de juros à taxa legal desde a data da notificação da contestação.
O autor apelou desta sentença, mas, por acórdão de 31 de Janeiro de 2001, o Tribunal da Relação de Lisboa negou provimento ao recurso, confirmando a sentença apelada.
O autor interpôs recurso de revista deste acórdão, tendo o Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 25 de Setembro de 2002, concedido provimento ao recurso, revogando o acórdão recorrido, por julgar improcedente a excepção da caducidade do direito de rescisão do contrato, e ordenando a baixa dos autos à 2.ª instância para apreciação das restantes questões e eventualmente, se necessário, para ampliação da matéria de facto.
O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 5 de Fevereiro de 2003, julgou procedente a apelação e a acção e improcedente a reconvenção, condenando a ré a pagar ao autor, a título de indemnização por antiguidade, a quantia de € 57 357,76, acrescida de juros de mora, à taxa supletiva legal, a contar de 28 de Outubro de 1999 e até integral pagamento, e absolvendo o autor do pedido reconvencional.
Notificada deste acórdão por carta registada expedida em
7 de Fevereiro de 2003, a ré veio:
– em 17 de Fevereiro de 2003, arguir a preterição da formalidade essencial consistente na audição das partes, prevista no artigo
715.º, n.º 3, do CPC, aplicável por força do artigo 1.º do Código de Processo do Trabalho (CPT) de 1981, que, por susceptível de influir no exame e decisão da causa, produz nulidade (artigo 201.º, n.º 1, do CPC);
– em 20 de Fevereiro de 2003, interpor recurso de revista, contra o dito acórdão, para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo apresentado logo as respectivas alegações.
Por acórdão de 12 de Março de 2003 – notificado por cartas registadas expedidas no subsequente dia 14 –, o Tribunal da Relação de Lisboa julgou improcedente a arguida nulidade, porquanto uma vez que “todas as questões conhecidas no acórdão reclamado haviam sido conhecidas na decisão da
1.ª instância (...) não tinha esta Relação que dar cumprimento ao preceituado pelo n.º 3 do artigo 715.º do CPC”.
Por despacho da Desembargadora Relatora, de 19 de Março de 2003, foi admitido o recurso de revista.
Por requerimento apresentado em 19 de Março de 2003, desacompanhado de alegações, a ré interpôs recurso de agravo do acórdão de 12 de Março de 2003, tendo apresentado, no subsequente dia 25, novo requerimento de interposição de recurso, desta feita acompanhado de alegações.
Por despacho da Desembargadora Relatora, de 26 de Março de 2003, foi admitido o recurso de agravo, para subir com o recurso de revista.
No Supremo Tribunal de Justiça, o Conselheiro Relator, após afirmar nada obstar ao conhecimento do recurso de revista, determinou a notificação da ré recorrente para se pronunciar, querendo, sobre as questões da inadmissibilidade e extemporaneidade do recurso de agravo, suscitadas nas contra-alegações do autor agravado, e, após resposta da recorrente, proferiu, em 22 de Maio de 2003, o seguinte despacho:
“I. Por despacho do dia 3 do corrente mês (fls. 519 dos autos) foi ordenada a notificação da ré/recorrente para, querendo, se pronunciar sobre a questão suscitada pelo autor/recorrido, de rejeição liminar, por inadmissível ou extemporâneo, do agravo em 2.ª instância interposto por aquela. Em resposta, a ré/recorrente sustenta que não arguiu uma nulidade de acórdão, mas, sim, arguiu uma nulidade processual prévia, pelo facto de não ter sido dado cumprimento ao disposto no artigo 715.º, n.º 3, do CPC, pelo que a essa arguição não se aplica o disposto no artigo 77.º, n.º 2, do CPT de 1981 e, por consequência, o recurso que interpôs é admissível e tempestivo.
II. Cumpre decidir. Em 25 de Março de 2003, a ré interpôs recurso de agravo para este Tribunal do acórdão da Relação de Lisboa de 12 de Março, que julgou improcedente a alegada nulidade suscitada por aquela, por não ter sido dado cumprimento ao disposto no artigo 715.º, n.º 3, do CPC. Anteriormente, em 17 de Fevereiro, notificada do acórdão da Relação de Lisboa, a ré arguiu a nulidade pelo facto de, antes de proferir a decisão final, o Tribunal não ter ouvido as partes. Ou seja, no entendimento da ré, o Tribunal da Relação de Lisboa, antes de proferir a decisão final, deveria ter ouvido as partes: como assim não procedeu, foi cometida uma preterição que pode influir no exame ou decisão da causa, pelo que, nos termos do n.º 1 do artigo 201.º do CPC, produz nulidade. Como refere o Prof. Alberto dos Reis (Código de Processo Civil Anotado, vol. V, reimpressão, Coimbra, 1984, pág. 424): «É postulado tradicional, que o próprio Supremo tem várias vezes proclamado: dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se (...). A reclamação por nulidade tem cabimento quando as partes ou os funcionários judiciais praticam ou omitem actos que a lei não admite ou prescreve; mas se a nulidade é consequência de decisão judicial, se é o tribunal que profere despacho ou acórdão com infracção de disposição da lei, a parte prejudicada não deve reagir mediante reclamação por nulidade, mas mediante interposição de recurso. É que, na hipótese, a nulidade está coberta por uma decisão judicial e o que importa é impugnar a decisão contrária à lei; ora as decisões impugnam-se por meio de recursos (artigo 677.º) e não por meio de arguição de nulidade do processo».
Também o Prof. Manuel de Andrade escreve a este propósito (Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1993, pág. 183): «...se a nulidade está coberta por uma decisão judicial (despacho), que ordenou, autorizou ou sancionou o respectivo acto ou omissão, em tal caso o meio próprio para a arguir não é a simples reclamação, mas o recurso competente, a deduzir
(interpor) e tramitar como qualquer outro do mesmo tipo. É a doutrina tradicional, condensada na máxima: dos despachos recorre-se; contra as nulidades reclama-se». Note-se que, como também salienta o Prof. Alberto dos Reis (Comentário, II vol., pág. 510), a autorização ou sancionamento do acto ou omissão pode ser feita só de modo implícito, não é necessário que haja qualquer indicação mais ou menos concludente no sentido de o juiz ter considerado o ponto a que se refere a nulidade. Ora, no caso, admitindo a necessidade de notificação das partes (questão que, aqui e agora, não importa analisar), para os efeitos previstos no artigo 715.º, n.ºs 2 e 3, do CPC, a omissão dessa formalidade pode influir no exame e decisão da causa, pelo que configura nulidade secundária. Esta nulidade, a que se refere o artigo 202.º do CPC, em princípio só pode ser conhecida mediante reclamação a deduzir no prazo geral de dez dias estabelecido no artigo 153.º do CPC. Porém, verificando-se que o referido prazo se conta do conhecimento da nulidade
(artigo 205.º do CPC) e não se encontrando a mesma sanada quando foi proferido o acórdão de 5 de Fevereiro de 2003 (só com este a ré teve conhecimento da omissão do acto, pelo que o prazo para a sua arguição ainda não se tinha iniciado), isso significa que o mesmo acórdão acaba por lhe dar cobertura, embora de forma implícita. Aliás, tal omissão consuma-se efectivamente com a prolação do referido acórdão, por isso o meio processual a utilizar para impugnação é o recurso. E, neste entendimento, as nulidades da sentença, ou acórdão, são as do n.º 1 do artigo 668.º do CPC, mas tornam-se também vício desta e causa da sua nulidade as nulidades anteriormente ocorridas e não sanadas, a que dê cobertura. Dito de outro modo: embora o acórdão de 5 de Fevereiro de 2003, quanto à questão em causa, possa não ter, em rigor, incorrido em nenhuma das nulidades intrínsecas da decisão mencionadas no n.º 1 do artigo 668.º do CPC, a violação da lei consistente na omissão do acto é-lhe directamente imputável por ter sido proferido no momento em que ainda o não podia ser e, assim sendo, o meio processual adequado à reacção da ré é a interposição de recurso do acórdão e não a dedução de reclamação contra a eventual nulidade processual.
Assim, não tendo a recorrente interposto recurso, nessa parte, do acórdão, antes tendo arguido a nulidade processual e só após o Tribunal da Relação se pronunciar sobre esta, interposto recurso de agravo, não é de admitir o mesmo por a parte não ter usado o meio processual próprio de reagir contra a nulidade processual coberta por decisão judicial. Ademais, de acordo com a interpretação que se deixou explanada, tendo em conta a data em que a ré foi notificada da decisão final (10 de Fevereiro de 2003), a interposição do recurso em 25 de Março de 2003 é extemporânea, não vinculando este Tribunal o facto de o Tribunal recorrido ter apreciado a «questão» em sede de nulidade.
III. Face ao exposto, não se admite o recurso de agravo interposto em 25 de Março de 2003 (fls. 497 dos autos) pela ré B.”
A ré recorrente reclamou deste despacho para a conferência, nos termos do artigo 700.º, n.º 3, do CPC, sustentando que o meio processual adequado para reagir contra a aludida nulidade foi o por ela seguido, através de reclamação, sobre a qual recaiu o segundo acórdão da Relação, que a apreciou, e do qual interpôs regularmente o recurso de agravo, e concluindo:
“32.º – Em síntese, a douta decisão reclamada é ilegal, baseia-se num entendimento doutrinal restritivo (altamente formalista) e contrário aos princípios do acesso ao direito e do contraditório, não tem em conta os novos princípios de reforma do processo civil, nomeadamente o disposto nos artigos
3.º e 669.º do CPC e os princípios da adequação formal (artigo 265.º-A do CPC) e da cooperação (artigo 266.º do CPC).
33.º – Mais ainda, se a conferência vier a confirmar o douto despacho reclamado, aplicará a norma retirada da conjugação do artigo 72.º, n.º
1, do Código do Processo do Trabalho de 1981 com os artigos 201.º, 205.º, n.ºs 1 e 3, e 668.º, n.º 4, do CPC com uma interpretação contrária à Constituição, nomeadamente aos princípios do contraditório e do acesso à lei e ao direito, contidos no artigo 20.º da Constituição.”
Após resposta do recorrido, o Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 1 de Outubro de 2003, confirmou o despacho reclamado, com a seguinte fundamentação:
“A reclamação para a conferência, nos termos do artigo 700.º, n.º 3, do CPC, visa substituir a decisão singular do relator por decisão colectiva do Tribunal, não cabendo no seu âmbito o conhecimento de questões, de natureza não oficiosa, que o despacho reclamado não apreciou, nem podia apreciar.
Isto resulta claro do próprio texto do n.º 3 do citado artigo 700.º, que estatui, no que importa: «... quando a parte se considerar prejudicada por qualquer despacho do relator, que não seja de mero expediente, pode requerer que sobre a matéria do despacho recaia um acórdão ...».
Ora, no citado requerimento de fls. 533 e 540, a reclamante, para além de reclamar para a conferência, vem também apresentar alegações e invocar a violação do artigo 20.º da CRP.
Trata-se de matérias que, pelo sumariamente supra exposto, não cabem no âmbito da reclamação, pelo que delas não é de conhecer.
Quanto ao reclamado despacho, por merecer concordância, para ele se remete, nos termos dos artigos 713.º, n.º 5, e 726.º, ambos do CPC.
Sendo de referir que, no caso sub judice, o prazo para arguição de eventual omissão de audição das partes, em cumprimento do prescrito no n.º 3 do artigo 715.º do CPC, não se tinha iniciado quando foi proferido o acórdão final, que, por este modo, veio dar cobertura a tal omissão.
Ou, analisando noutra perspectiva, a eventual omissão cometida só se consumou com a pronúncia da decisão final – o acórdão que conheceu do fundo da questão –, pelo que o meio processual adequado era o recurso.
Assim, e decidindo, confirma-se o despacho reclamado de fls.
527-529.”
É deste acórdão que vem interposto, pela mesma recorrente, o presente recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro (doravante designada por LTC), visando a apreciação da inconstitucionalidade – por pretensa violação dos “princípios do contraditório e do acesso à lei e ao direito, constantes do artigo 20.º da CRP, bem como [d]o princípio constitucional da igualdade, ao suprimir um grau de jurisdição” – da “norma (...) que se retira da conjugação do n.º 1 do artigo
72.º do Código de Processo do Trabalho de 1981 com os artigos 201.º, 205.º, n.ºs
1 e 3, e 668.º, n.º 4, do Código de Processo Civil”, inconstitucionalidade que teria sido suscitada na mencionada reclamação para a conferência.
Neste Tribunal Constitucional, a recorrente apresentou alegações, no termo das quais formulou as seguintes conclusões:
“1.ª – O presente recurso foi interposto de um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, que confirmou um despacho do relator que não conheceu de um agravo interposto de um acórdão da Relação que indeferiu a arguição de uma nulidade de processo;
2.ª – Em tal acórdão adoptou-se o entendimento de que a omissão de uma formalidade alegadamente cometida pela Relação (não audição das partes nos termos do n.º 3 do artigo 715.º do CPC) estava «coberta» pelo subsequente acórdão da Relação proferido sobre o mérito de recurso;
3.ª – Em consonância com este entendimento, o Supremo Tribunal de Justiça entendeu que a impugnação dessa nulidade não devia ter sido feita autonomamente, por reclamação perante a própria Relação, mas através de arguição de nulidade de sentença, no recurso de revista;
4.ª – Ao reclamar do despacho do relator no Supremo Tribunal de Justiça, a ora recorrente suscitou uma questão de inconstitucionalidade normativa, considerando que a norma complexa resultante da conjugação do artigo
72.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho de 1981 (CPT) com o disposto nos artigos 201.º, 205.°, n.ºs 1 e 3, e 668.°, n.º 4, do Código de Processo Civil
(CPC), interpretada como o fizera o mesmo relator, estava inquinada de inconstitucionalidade, por violação, pelo menos, dos princípios de acesso ao direito e aos tribunais e da igualdade;
5.ª – A conferência recusou-se a apreciar a questão de constitucionalidade suscitada com o argumento de que era questão nova, sem ser de conhecimento oficioso;
6.ª – Estão reunidos os pressupostos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.° da Lei do Tribunal Constitucional, tendo sido suscitada a questão de constitucionalidade atempadamente e tendo a norma alegadamente inconstitucional sido aplicada pela decisão recorrida;
7.ª – Tal questão de inconstitucionalidade tem carácter normativo, visto o Supremo não ter criado qualquer norma por um processo de analogia, em preenchimento de uma alegada lacuna, antes se limitando a interpretar a referida norma complexa de forma a encontrar uma outra via de impugnação;
8.ª – Para além do carácter claramente formalista da decisão impugnada no presente recurso – desconhecendo o princípio de adequação formal e a solução geral que aflora no artigo 688.°, n.º 5, do CPC – e do seu carácter controverso face às orientações jurisprudenciais e doutrinais, a norma, tal como foi interpretada, viola princípios constitucionais;
9.ª – De facto, a norma complexa, nessa interpretação, viola o princípio do acesso à lei e aos tribunais, impedindo o funcionamento normal do contraditório e o controlo em geral, sem segundo grau de jurisdição, do acórdão da Relação que apreciou a deduzida nulidade de processo;
10.ª – A mesma norma complexa, na identificada interpretação, viola o princípio da igualdade, na medida em que veda o recurso de agravo quanto a um acórdão que reúne as condições de recorribilidade, sendo certo que discrimina a recorrente face a outros interessados na mesma posição;
11.ª – E viola ainda os princípios da confiança e da certeza ou determinabilidade da lei, na medida em que a norma complexa, na interpretação adoptada, prescinde do carácter taxativo constante do artigo 668.°, n.º 1, do CPC, eliminando a opção conferida pelo artigo 205.°, n.º 3, do CPC à própria recorrente.
12.ª – A norma complexa atrás identificada e aplicada pelo Supremo Tribunal de Justiça viola, assim, o disposto nos arts. 20.°, n.º 1, 13.°, n.º 1, e 2.° da Constituição.”
O autor, ora recorrido, contra-alegou, propugnando o não conhecimento do recurso e formulando as seguintes conclusões:
“1.ª) A recorrente reclamou do despacho do Relator do STJ para a Secção; mas não imputou violação de qualquer norma ou princípio constitucional ao mesmo despacho, limitando-se a impugná-lo por violação das regras processuais (em alegações que a lei processual não admite).
2.ª) E o que a recorrente alegou foi isto: Se a Secção mantiver o despacho, violará a Constituição.
3.ª) Ora, sendo assim, o STJ (Secção) foi chamado a conhecer a violação/inconstitucionalidade não do despacho sob reclamação mas de uma hipotética inconstitucionalidade que seria praticada pela própria Secção do STJ; a Secção não estava em condições de conhecer – poder cognitivo – da inconstitucionalidade do despacho reclamado, não identificada; nem da sua própria decisão (ainda não proferida ou mesmo que proferida).
4.ª) Falta, pois, o requisito do pré-questionamento, da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LCT; ou seja, a inconstitucionalidade suscitada durante o processo de modo a ser conhecida pelo STJ (ora recorrido)
5.ª) A recorrente ficciona a inconstitucionalidade de uma norma abstracção; e, bem vistas as coisas, o que faz é atacar a própria decisão judicial.
6.ª) O contencioso constitucional é de normas e não de decisões judiciais.”
Ouvida a recorrente sobre as questões prévias suscitadas pelo recorrido, aquela respondeu, sustentando a sua improcedência.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
2.1. A admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC depende da suscitação, pelo recorrente, da inconstitucionalidade de uma norma (ou interpretação normativa), de modo processualmente adequado, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este ficar obrigado a dela conhecer (artigo 72.º, n.º 2, da LTC), e da efectiva aplicação dessa norma, ainda que apenas de modo implícito, pela decisão recorrida, como sua ratio decidendi.
A recorrente suscitou, perante a conferência para a qual reclamara de despacho do Conselheiro Relator, a questão da inconstitucionalidade da interpretação normativa retirada da conjugação dos artigos 72.º, n.º 1, do CPT de 1981 e 201.º, 205.º, n.ºs 1 e 3, e 668.º, n.º 4, do CPC, segundo a qual a arguição da nulidade por omissão de diligência processual “coberta” ou directamente imputável a decisão judicial (no caso, consistente em ter sido proferido acórdão pela Relação apreciando, no âmbito de recurso de apelação, questões não conhecidas na sentença apelada por aí terem sido consideradas prejudicadas pela solução dada ao litígio, sem que tivessem sido ouvidas as partes, nos termos do n.º 3 do artigo 715.º do CPC) deve ser feita através de recurso dessa decisão e não através de reclamação perante o próprio tribunal. E fê-lo de modo processualmente adequado, pois alertou a formação jurisdicional competente (a conferência) para a violação da Constituição que, em seu entender, resultaria da eventual aplicação, na decisão a proferir, dessa interpretação normativa, numa fase em que o tribunal, no exercício do seu poder jurisdicional, podia e devia conhecer de tal questão. E, por outro lado, como é sabido, não pode precludir o direito ao recurso de constitucionalidade a circunstância de o acórdão recorrido ter (erradamente) entendido que não havia que apreciar a questão de inconstitucionalidade suscitada por a mesma “não ser de conhecimento oficioso”, pois o certo é que o sentido dessa decisão foi o de, ao confirmar o despacho reclamado, coonestar a interpretação normativa nele seguida e cuja conformidade constitucional vem questionada.
Improcede, assim, a questão prévia suscitada pelo recorrido.
2.2. Igualmente não constitui obstáculo ao conhecimento do recurso (por hipotética inutilidade desse conhecimento) o facto de o despacho confirmado pelo acórdão ora recorrido ter assentado a não admissão do recurso de agravo também na sua extemporaneidade. É que este fundamento de não admissão de tal recurso não é um fundamento autónomo, mas antes dependente do acolhimento do primeiro fundamento, como do próprio despacho resulta (“de acordo com a interpretação que se deixou explanada, tendo em conta a data em que a ré foi notificada da decisão final (10 de Fevereiro de 2003), a interposição do recurso em 25 de Março de 2003 é extemporânea” – sublinhado acrescentado). Na verdade, só entendendo que o meio de reacção adequado era o recurso do acórdão da Relação que decidiu a apelação (acórdão de 5 de Fevereiro de 2003) é que se pode considerar extemporâneo o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça interposto em 25 de Março de 2003. Tal já não sucederá se se entender, como sustenta a recorrente, que o meio de reacção adequado era o da reclamação para o próprio tribunal, por ela utilizado, sobre a qual decidiu, indeferindo-a, o acórdão da Relação de 12 de Março de 2003, relativamente ao qual o recurso de agravo interposto no subsequente dia 25 surge como tempestivo.
A extemporaneidade do recurso não constitui, assim, fundamento autónomo da decisão ora recorrida, pois, como se viu, o mesmo surge como directamente dependente do acolhimento da tese da impropriedade do meio de reacção utilizado, e a subsistência deste fundamento está, por seu turno, dependente do sentido da decisão a proferir no presente recurso de constitucionalidade.
Nada obsta, pois, ao conhecimento do mérito deste recurso.
2.3. A interpretação normativa questionada – diga-se desde já – nada tem de insólito, sendo corrente o seu acolhimento nas diversas ordens jurisdicionais.
Trata-se, na verdade, de hipóteses em que a violação das normas processuais é directamente imputável à decisão judicial por ter sido proferida num momento em que não estariam ainda reunidos todos os pressupostos para o efeito (no caso, a audição das partes sobre as questões de que o acórdão da Relação veio a conhecer e que não teriam sido conhecidas pela revogada sentença da 1.ª instância por esta as haver considerado prejudicadas pela solução então dada ao litígio). Em tais hipóteses, tem sido doutrinal e jurisprudencialmente sustentado que, cabendo recurso ordinário da decisão judicial em causa, é no âmbito desse recurso, e não através de reclamação perante o autor da decisão, que deve ser atacada tal violação das regras processuais. Como diz José Alberto dos Reis, no local citado pelo despacho confirmado pelo acórdão ora recorrido, “se é o tribunal que profere despacho ou acórdão com infracção de disposição da lei, a parte prejudicada não deve reagir mediante reclamação por nulidade, mas mediante interposição de recurso”. É que, como referia João de Castro Mendes (Direito Processual Civil, ed. Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1969, vol. II, pág. 315): “A inoportunidade da sentença (aspecto de forma) conduz à sua nulidade ...”.
Na jurisprudência, tem sido considerado ser o recurso o modo adequado de reacção contra decisões judiciais preferidas a destempo, como, por exemplo, a decisão de pedido de suspensão de eficácia de acto administrativo contenciosamente impugnado antes de esgotado o prazo de resposta da entidade requerida (cf. acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 30 de Abril de 1998, processo n.º 43 707, no Apêndice ao Diário da República, de 26 de Abril de 1998, pág. 2940), ou a decisão de rejeição de recurso contencioso sem prévia audição do recorrente (cf. acórdão do Pleno da 1.ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo, de 2 de Outubro de 2001, processo n.º 42 385), ou a decisão de improvimento de recurso contencioso sem concessão aos interessados da possibilidade de apresentarem alegações complementares, face à junção aos autos, após as primeiras alegações, de elementos relevantes para a decisão da causa (cf. acórdão do mesmo Pleno, de 20 de Março de 2002, processo n.º 38 441), ou ainda os numerosos recursos interpostos para o Tribunal Constitucional de decisões proferidas em recursos penais, laborais ou administrativos, sem previamente ter sido dado aos recorrentes possibilidade de responderem a pareceres do Ministério Público emitidos nesses tipos de recursos. Em todos esses casos, tem-se entendido que, embora as decisões judiciais em causa não tenham, em rigor, incorrido em nenhuma das nulidades (“intrínsecas”) de decisão elencadas no n.º 1 do artigo 668.º do CPC, o facto é que a violação da lei lhes
é directamente imputável, por terem sido proferidas em momento em que ainda não podiam ser emitidas por não estarem reunidos todos os pressupostos legalmente previstos para assegurar quer a racionalidade da decisão quer o respeito pelo contraditório e pela igualdade processual das partes. Nestas hipóteses, tem-se entendido que o meio processual adequado à reacção do interveniente lesado com a prolação intempestiva da decisão judicial é a interposição de recurso contra ela e não a dedução de reclamação contra hipotética nulidade processual.
Não compete, obviamente, ao Tribunal Constitucional pronunciar-se sobre a correcção deste entendimento na perspectiva da interpretação e aplicação do direito ordinário, mas tão-só registar que se trata de entendimento que nada tem de anómalo, insólito ou inesperado.
2.4. Entrando na apreciação da conformidade constitucional da interpretação normativa impugnada, há que registar, desde já, as oscilações da recorrente quanto à identificação dos preceitos e princípios constitucionais pretensamente violados: na reclamação para a conferência para o Supremo Tribunal de Justiça invocou violação dos “princípios do contraditório e do acesso à lei e ao direito, contidos no artigo 20.º da Constituição”; no requerimento do recurso de constitucionalidade invocou violação dos “princípios do contraditório e do acesso à lei e ao direito, constantes do artigo 20.º da CRP, bem como [d]o princípio constitucional da igualdade, ao suprimir um grau de jurisdição”; nas alegações do recurso de constitucionalidade invocou violação do “princípio do acesso à lei e aos tribunais” (conclusão 9.ª), do
“princípio da igualdade” (conclusão 10.ª) e do “princípio da confiança e da certeza ou determinabilidade da lei” (conclusão 11.ª), consagrados nos artigos
20.º, n.º 1, 13.º, n.º 1, e 2.º da CRP (conclusão 12.ª).
Quanto à violação do princípio do contraditório, há que salientar, desde logo, que não está em causa no presente recurso a questão de ser ou não devida a audiência prévia das partes antes da prolação do acórdão da Relação (que supostamente teria conhecido de questões não apreciadas pela sentença da 1.ª instância), mas tão-só a questão do meio processual adequado para reagir contra a omissão dessa audiência (arguição de nulidade do acórdão, em sede de recurso de revista, ou reclamação contra essa omissão perante a Relação e interposição de recurso de agravo contra o acórdão que veio a desatender tal reclamação). Contrariamente ao que sustenta a recorrente, qualquer um destes meios processuais permite-lhe, caso lhe venha a ser reconhecida razão quanto à necessidade de audiência prévia, obter a anulação do acórdão da Relação e a imposição da prolação de outro só após o asseguramento daquele direito de audiência.
Esta mesma razão conduz à improcedência da alegada violação do artigo 20.º, n.º 1, da CRP – que, no presente contexto, só releva enquanto consagrando o direito de acesso aos tribunais, já que não está em causa o direito de acesso ao direito entendido como direito à informação jurídica e ao patrocínio jurídico (cf. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, pág. 163). Na verdade, a interpretação normativa acolhida no acórdão recorrido assegurava à recorrente o acesso aos tribunais para discussão da questão de saber se, no caso, era ou não devido o cumprimento do disposto no artigo 715.º, n.º 3, do CPC. Ao que acresce que, como constitui reiterada jurisprudência do Tribunal Constitucional, o direito de acesso aos tribunais constitucionalmente consagrado não implica o asseguramento do direito de recurso de toda e qualquer decisão dos tribunais.
Também não procede a alegada violação do princípio da igualdade, que a recorrente faz assentar em lhe ter sido vedado “o recurso de agravo quanto a uma decisão que é indiscutivelmente recorrível, discriminando o recorrente em função de um juízo sobre uma invocada equiparação da nulidade de processo à nulidade de sentença, impedindo-lhe uma via processual que não é aplicável ao comum dos recorrentes, em situação equiparada” (sic). Na verdade, a interpretação normativa acolhida no acórdão recorrido trata igualmente todos os recorrentes que estejam na mesma situação, pelo que dela não deriva nenhum tratamento discriminatório ou arbitrário. A violação do princípio da igualdade não pode resultar – contra o que parece sustentar a recorrente – da comparação entre os resultados de uma interpretação normativa tida por incorrecta e uma interpretação normativa tida por correcta pelo interessado, mas tão-só da comparação, relativamente a cada uma dessas interpretações, do tratamento dado
às diversas categorias de destinatários, postergando diferenciações de tratamento não materialmente fundadas. No presente caso – repete-se – nenhuma discriminação infundada resulta do acolhimento da interpretação normativa sustentada pela decisão recorrida.
Finalmente, a violação dos princípios da confiança e da certeza ou determinação das leis é feita assentar pela recorrente na reafirmação da sua discordância quanto à interpretação do direito ordinário dada pelo acórdão recorrido, que, a seu ver, redundaria na vulneração do carácter taxativo das nulidades das sentenças elencadas no artigo 668.º, n.º 1, do CPC. Porém, esta divergência interpretativa é claramente inidónea a configurar uma violação daqueles princípios, tanto mais que, como se começou por salientar, a interpretação acolhida pelo acórdão recorrido nada tem de insólito, anómalo ou inesperado (ao contrário do que, por exemplo, sucedia no caso sobre que recaiu o Acórdão n.º 413/02, no Diário da República, II Série, n.º 289, de 14 de Dezembro de 2002, pág. 20 474, em que estava em causa uma interpretação absolutamente inédita e insólita, segundo a qual a reclamação para o presidente de tribunal ad quem não seria meio processual idóneo para reagir contra a decisão de não admissão de recurso quando nessa reclamação se suscitassem
“questões complexas”). Assim, cabia à recorrente, “agindo com a diligência devida e ponderando os sentidos possíveis ou plausíveis da norma, face às orientações doutrinárias e correntes jurisprudenciais” conhecidas, adoptar as cautelas processuais no caso aconselháveis (cf. Carlos Lopes do Rego, “Os princípios constitucionais da proibição da indefesa, da proporcionalidade dos
ónus e cominações e o regime da citação em processo civil”, em Estudos em Homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa, Coimbra Editora, Coimbra,
2003, pág. 847), não sendo lícito transformar a adopção, pelo tribunal recorrido, de uma interpretação normativa de que ela discorda numa violação dos princípios constitucionais da confiança e da certeza e determinabilidade do direito. Interpretação normativa que, aliás, aponta para uma via processual de reacção que não se evidencia ser de onerosidade acentuadamente acrescida se comparada com a via processual tida por correcta pela recorrente.
Improcedem, assim, na sua totalidade, as conclusões da alegação da recorrente.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Não julgar inconstitucional a norma resultante da conjugação dos artigos 72.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho de 1981 e
201.º, 205.º, n.ºs 1 e 3, e 668.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, interpretada no sentido de que o meio processual adequado para reagir contra o incumprimento do disposto no artigo 715.º, n.º 3, deste último Código é a arguição dessa ilegalidade no recurso de revista interposto do acórdão da Relação; e, consequentemente,
b) Negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida, na parte impugnada.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em
15 (quinze) unidades de conta.
Lisboa, 23 de Março de 2004.
Mário José de Araújo Torres Paulo Mota Pinto Benjamim Silva Rodrigues Maria Fernanda Palma Rui Manuel Moura Ramos