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Proc. n.º 702/02 Acórdão nº 141/03
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Do despacho que lhe indeferiu um requerimento no sentido de que, atento o apoio judiciário concedido, as guias emitidas para pagamento de custas fossem dadas sem efeito, interpôs o assistente A recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra (fls. 3 e seguintes).
Na resposta, o representante do Ministério Público junto do Tribunal Judicial da Comarca de Sabugal sustentou que o recurso deveria ser julgado improcedente (fls. 8 e seguinte).
Por seu lado, o representante do Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Coimbra suscitou a questão prévia da inadmissibilidade do recurso, atendendo a que, nos termos do artigo 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal, a motivação do recurso termina pela formulação de conclusões, e o recorrente não as havia formulado (fls. 16 e seguintes).
Notificado deste parecer, A respondeu que 'interpretar, neste caso, o disposto no art.º 412º, n.º 2, do C.P.P., em desconformidade com as disposições contidas no art.º 690º, do C.P.C., redundaria, salvo melhor opinião, em inconstitucionalidade' (fls. 20 e seguintes).
2. Por acórdão de 28 de Setembro de 2002, o Tribunal da Relação de Coimbra rejeitou o recurso, pelos seguintes fundamentos (fls. 60 e v.º):
'[...]
[...] verifica-se que tal recurso não se reporta a qualquer decisão sob o benefício de apoio judiciário, que lhe foi concedido, mas antes ao pedido de que as guias emitidas fossem dadas sem efeito, pelo que o mesmo terá de seguir a formalidade processual inerente ao processo penal. A decisão de que vem interposto o presente recurso reporta-se, como das respectivas conclusões se retira, delimitadoras do respectivo objecto, sobre um pagamento de custas. Tal não se encontra abrangido pela legislação relativa ao benefício de apoio judiciário, antes devendo ser tramitado de acordo [com] o direito penal adjectivo. Dentro deste há que verificar que deve constar de motivação e conclusões (art.
412º, nº 1 do Cod. Proc. Penal), o que o requerimento apresentado não observa minimamente. Acresce que tratando-se de questão só reportada a matéria de direito, não observa, também, o estatuído no n.º 2 do mesmo normativo, pelo que terá de ser rejeitado.
[...].'
3. Notificado deste acórdão, A interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, nos seguintes termos (fls. 67 e seguinte):
'[...] notificado do douto acórdão que rejeitou o recurso por si interposto, com fundamento no disposto no art° 412º, do C.P.P. e, não se conformando com o mesmo, sobretudo quando confrontado com o recente acórdão do Tribunal Constitucional nº 320/02, de 07.10, vem daquele interpor recurso para o Tribunal Constitucional nos termos do artº 75º-A e pelos fundamentos previstos nas alíneas g) e b) do artº 70º, ambos da Lei nº 28/82, de 15/11. No que concerne à alínea g) – fundamento principal – além do já citado acórdão nº 320/02, de 07.10 que declarou inconstitucional, com força obrigatória geral, a norma do artº 412º, nº 2, do C.P.P. quando interpretada no sentido de que a falta de indicação, nas conclusões da motivação, de qualquer das menções contidas nas alíneas a), b) e c) tem como efeito a rejeição liminar do recurso sem que seja facultada a oportunidade de suprir tal deficiência, acórdão que, refira-se, entrou em vigor antes do transito em julgado da decisão recorrida, mencionam-se, ainda, os três acórdãos-fundamento aí citados – nºs. 193/97, 43/99 e 417/99. No tocante à alínea b) – fundamento alternativo – a norma constitucional violada
é a contida no artº 32º, nº 1, da C.R.P. e o Recorrente suscitou tal questão no artº 15º do articulado deduzido nos termos do artº 417º, nº 2, do C.P.P., também usado para proceder à junção da motivação aperfeiçoada.
[...].'
O recurso foi admitido por despacho de fls. 70.
4. Nas alegações que produziu junto do Tribunal Constitucional, concluiu assim o recorrente (fls. 72 e seguintes):
'A - A decisão recorrida violou jurisprudência desse Tribunal, fixada com força obrigatória geral, mormente através dos acórdãos nºs. 320/02, de 09/7, publicado no D.R., I Série-A de 07.10.02 e 265/01, de 19/6, publicado no D.R., I Série-A, de 16.7.01, no sentido de que a falta ou deficiência de conclusões da motivação não implica a rejeição liminar do recurso, mas sim o convite ao aperfeiçoamento do mesmo, implicando, assim, a inconstitucionalidade da norma de artº 412º, nº
2, do C.P.P.. B - Tal jurisprudência, embora tendo por referência a figura do arguido e as respectivas garantias de defesa processuais, não pode deixar de aplicar-se aos demais sujeitos, em processo penal, nomeadamente o assistente, por aplicação do princípio da igualdade de armas, sob pena de violar o princípio da igualdade, assegurado pelo artº 13º da Lei Fundamental. C - De qualquer modo, a matéria em apreço reveste natureza exclusivamente civil, por respeitar apenas a uma questão de apoio judiciário pelo que, em sede de recurso, deverá prevalecer um regime jurídico unitário, conforme com o disposto no artº 690º, nº 4, do C.P.C. e que obedeça ao comando constitucional ínsito no artº 20º, nº 1, da C.R.P., sob pena de questões idênticas, atinentes a direitos fundamentais, como é a do acesso aos tribunais, serem julgadas de modo diferente. D - No recurso para o tribunal recorrido não se verificou total ausência de conclusões mas sim, uma conclusão única, sendo certo que o valor celeridade processual não é sobreponível ao das garantias de defesa processuais e que, mesmo inexistindo conclusões, deve ocorrer despacho de aperfeiçoamento para as formular. E - Ainda assim, o Recorrente, muito antes da decisão, apresentou em juízo a sua motivação aperfeiçoada, com formulação das legais conclusões pelo que o tribunal a quo, dispensando-se, já, do despacho de aperfeiçoamento, deveria tê-las acolhido. F - Termos em que, sempre com o mui douto suprimento de Vs. Exs., deverá ser provido o presente recurso e, por via dele: a) Declarar-se inconstitucional a norma do artº 412º, nº 1, do Cód. de Proc. Penal quando interpretada, no caso concreto, em desconformidade com a disposição do artº 690º, nº 4, do Cód. de Proc. Civil, ou seja, que a ausência de conclusões na motivação do recurso não implica a sua rejeição mas sim, um despacho de convite ao respectivo aperfeiçoamento. b) Declarar-se inconstitucional a norma do artº 412º, nº 2, do C.P.P., interpretada no sentido de que a falta de indicação, nas conclusões da motivação, de qualquer das menções contidas nas suas alíneas a), b) e c ) tem como efeito a rejeição liminar do recurso do assistente, sem que ao mesmo seja facultada a oportunidade de suprir tal deficiência. c) Declarar-se inconstitucional, em consequência, a norma contida na 2ª parte do nº 1, do artº 420º, do C.P.P..'
O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional, apresentou as seguintes conclusões nas contra-alegações (fls. 82 e seguintes):
'1º - Não se verificam os pressupostos de admissibilidade do recurso previsto na alínea g) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, já que a específica situação processual dos autos – em que está em causa a rejeição liminar de um recurso interposto pelo assistente – não coincide com a situação dirimida pelo Tribunal Constitucional no «acórdão-fundamento» invocado pelo recorrente.
2º - A questão de constitucionalidade suscitada pelo recorrente, como fundamento do recurso baseado na alínea b) de tal preceito, prende-se exclusivamente com a norma que consta do nº 2 do artigo 412º do Código de Processo Penal, não sendo admissível a ampliação do objecto do recurso, nas conclusões da alegação, à norma autónoma, que consta do nº 1 de tal preceito legal.
3º - Pelo que – tendo a decisão recorrida invocado como fundamento da rejeição liminar do recurso do assistente, quer a norma constante do nº 1, quer a que integra o nº 2 do referido artigo 412º – carece de utilidade a apreciação da questão de constitucionalidade de apenas esta última norma, já que a decisão sempre subsistiria com base no primeiro daqueles preceitos legais.
4º - Termos em que – pelas razões apontadas – não deverá conhecer-se dos recursos interpostos.'
5. Atenta a questão prévia de não conhecimento dos recursos, suscitada pelo Ministério Público, foi ordenada a notificação do recorrente para responder, querendo, no prazo legal (fls. 89). Na resposta, disse o recorrente, em síntese, o seguinte (fls. 90 e seguintes): a. É extemporânea a questão prévia suscitada pelo Ministério Público, atendendo a que já transitou o despacho ordenando a produção de alegações e, consequentemente, a decisão de que se deve conhecer do objecto do recurso; b. No que se refere à inconstitucionalidade fundada na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, não constitui obstáculo ao conhecimento do recurso a circunstância de a norma constitucional efectivamente violada ser diversa da invocada pelo recorrente, conforme tem entendido a jurisprudência do Tribunal Constitucional; c. A essência da questão é a que se enunciou, oportunamente, no tribunal a quo e se reiterou nas alegações de recurso; d. Sob pena de violação dos princípios da igualdade, do acesso ao direito e da tutela jurisdicional efectiva e do disposto nos artigos 18º, n.º 3, e 32º, n.º 7, da Constituição, não podem as normas do processo penal ser mais restritivas do que as consignadas no artigo 690º, n.º 4, do Código de Processo Civil; e. À questão suscitada pelo Ministério Público subjaz o entendimento de que o recurso censurado foi totalmente desprovido de conclusões, o que traria à colação a questão da inconstitucionalidade da norma do artigo 441º, n.º 1, do Código de Processo Penal – todavia, o próprio recorrente sustentou ter havido efectivamente conclusões no recurso em causa. Cumpre apreciar.
II
6. No requerimento de interposição do recurso para este Tribunal (supra,
3.), pretendeu o recorrente que se apreciasse a norma do n.º 2 do artigo 412º do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual a falta de indicação, nas conclusões da motivação, de qualquer das menções contidas nas alíneas a), b) e c) desse artigo tem como efeito a rejeição liminar do recurso, sem que seja facultada a oportunidade de suprir tal deficiência.
O recurso foi fundado, em alternativa, na alínea g) e na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
7. No que diz respeito ao primeiro fundamento do recurso, é patente que ele não se verifica, pois que, como assinala o Ministério Público nas suas contra-alegações, no caso dos autos está em causa a rejeição liminar de um recurso interposto pelo assistente, sendo que a jurisprudência do Tribunal Constitucional relativa ao preceito invocado pelo recorrente versa sobre o recurso interposto pelo arguido e, portanto, sobre questão inteiramente diversa
(supra, 4.). Não há assim jurisprudência do Tribunal Constitucional julgando inconstitucional a norma que o recorrente pretende que agora se aprecie, mas apenas jurisprudência julgando inconstitucional uma outra norma que (também) se pode extrair do artigo 412º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
Não pode, assim, conhecer-se do objecto do recurso interposto pelo recorrente ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
E nem se diga, como diz o recorrente (supra, 5., a)), que a existência de um despacho ordenando a produção de alegações preclude o conhecimento da questão prévia acabada de referir. Na verdade, determinando o artigo 69º da Lei do Tribunal Constitucional que a tramitação dos recursos para o Tribunal Constitucional é regulada pelas normas respeitantes ao recurso de apelação, há que aplicar o disposto no artigo 713º, n.º 2, do Código de Processo Civil. Este preceito, na medida em que remete para o artigo 660º, n.º 1, do mesmo Código, ordena que se apreciem, em primeiro lugar, as questões prévias. Só assim não será quando exista despacho transitado que concretamente tenha apreciado uma questão prévia (cfr. o artigo 510º, n.º 3,
1ª parte, do Código de Processo Civil), o que certamente não é o caso do despacho que manda produzir alegações. Nestas circunstâncias, pode o Tribunal Constitucional proferir acórdão não tomando conhecimento do objecto do presente recurso, por não estar preenchido um dos pressupostos processuais do recurso previsto na alínea g) do n.º 1 do artigo
70º da Lei do Tribunal Constitucional.
8. No que diz respeito ao recurso fundado na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional – e para além de, quanto a ele, também valerem as considerações acabadas de tecer –, tem o Ministério Público igualmente razão quando sustenta que, tendo o recorrente indicado, no requerimento de interposição do recurso, a norma do n.º 2 do artigo 412º do Código de Processo Penal, não pode depois, nas alegações, ampliar o objecto do recurso à norma do n.º 1 do mesmo preceito (supra, 4.). Apenas pode, naturalmente, restringi-lo, tal como se prevê no artigo 684º, n.º 3, do Código de Processo Civil. Aliás, quanto à norma do n.º 1, não suscitou o recorrente, durante o processo, a questão da sua inconstitucionalidade (supra, 1.), de nada lhe valendo, atento o rigor do disposto no artigo 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional, argumentar no sentido de que a questão a ela respeitante seria essencialmente a mesma (supra, 5. c)).
O argumento do recorrente (supra, 5., b)) segundo o qual o Tribunal Constitucional tem admitido julgar inconstitucional uma norma com fundamento na violação de norma constitucional diversa da indicada pelo recorrente – o que, aliás, decorre do disposto no artigo 79º-C da Lei do Tribunal Constitucional – em nada infirma a conclusão a que se chegou no sentido da impossibilidade de conhecimento do objecto do recurso. São realidades diversas a norma legal cuja conformidade constitucional é questionada e a norma constitucional violada, só em relação a esta valendo a apontada amplitude dos poderes de cognição do Tribunal Constitucional.
Finalmente, tem o Ministério Público razão quando se pronuncia pela inutilidade da apreciação da (única) questão de constitucionalidade que constitui o objecto do presente recurso (supra, 4.). Com efeito, tendo o tribunal recorrido entendido que o recurso então interposto pelo ora recorrente deveria ser rejeitado, quer com base no disposto no n.º 1, quer com base no disposto no n.º 2 do artigo 412º do Código de Processo Penal, mesmo que o Tribunal Constitucional se pronunciasse no sentido da inconstitucionalidade da norma que constitui o objecto do presente recurso (a do n.º 2 desse artigo), em nada se alteraria a decisão (de rejeição do recurso) do tribunal recorrido.
Não tendo utilidade a apreciação do objecto do presente recurso, não pode dele tomar-se conhecimento.
Quanto aos restantes argumentos do recorrente (supra, 5., d) e e)), sempre se dirá que o da alínea d) diz respeito à questão de fundo e não à presente questão de forma, pelo que só relevaria a sua apreciação se se pudesse conhecer de fundo, e que o da alínea e) – aliás, dificilmente perceptível – diz respeito a uma questão que o Tribunal Constitucional não tem obviamente competência para apreciar, e que é a de saber se o 'recurso censurado' padeceu ou não de total ausência de conclusões.
Por falta de utilidade não pode, pois, conhecer-se do objecto do recurso fundado na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional. III
9. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento dos recursos interpostos. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em oito unidades de conta, sem prejuízo do apoio judiciário concedido.
Lisboa, 18 de Março de 2003 Maria Helena Brito Pamplona de Oliveira Luís Nunes de Almeida Artur Maurício José Manuel Cardoso da Costa