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Processo n.º 90/04
2ª Secção Relator – Cons. Paulo Mota Pinto
acordam, em conferência, na 2ª Secção do tribunal constitucional:
I- Relatório
1.A., melhor identificado nos autos, interpôs recurso de constitucionalidade, nos termos da “alínea b) do n.º 1 do artigo 75º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro” (querendo com certeza referir-se ao artigo 70º deste diploma, pois o artigo 75º-A, n.º 1, não contém quaisquer alíneas), do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Dezembro de 2003, que decidiu condená-lo, por tráfico agravado de drogas ilícitas, na pena de nove anos de prisão. Segundo o requerimento de recurso, pretendia-se ver apreciada a “inconstitucionalidade da interpretação dada pelo Colendo Supremo Tribunal de Justiça aos artigos 127º e
129º do Código de Processo Penal porquanto, “a aceitar-se a tese daquele Colendo Supremo Tribunal, as violações do art.º 32º da CRP, que consagra o princípio do contraditório, bem como do n.º 1 do mesmo art.º 32º, que consagra o princípio de que ao arguido são asseguradas todas as garantias de defesa, teriam cobertura
‘legal’, ao arrepio do que dispõe a CRP”. Isto porque, segundo o recorrente, in casu, “o Colendo Tribunal a quo considerou ser admissível e legal a prova alicerçada no depoimento de dois co-arguidos do recorrente, conjugada com o depoimento de agentes da polícia judiciária, sendo que estes últimos tiveram por base informações prestadas pelos dois aludidos co-arguidos, e, também, em fontes de informação anónimas e da PSP, não tendo sido ouvido qualquer agente desta
última corporação relativamente aos factos referidos pelos senhores agentes da polícia judiciária”. Por despacho datado de 5 de Janeiro de 2004, o Conselheiro-relator no Supremo Tribunal de Justiça não admitiu o recurso, fundamentando a sua decisão nos seguintes termos:
«(...) Porém, ao contrário do que consta do requerimento de interposição do recurso, “o Tribunal a quo” não considerou (nem deixou de considerar) “admissível e legal a prova alicerçada no depoimento de dois co-arguidos do recorrente”. E isso, pura e simplesmente, porque o STJ “não admitiu”, no presente recurso de revista, a alegação de erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa, com fundamento dum pretenso erro notório de apreciação das provas por parte das instâncias e numa alegada – mas entretanto suprida pela Relação – deficiência do exame crítico das provas operado em 1ª instância. Pois que, tratando-se de questões (de facto ou delas instrumentais) conexas com o recurso (em matéria de facto) para a Relação (que, aliás, “refutou os apontados erros na apreciação da prova, ao corroborar – com outros elementos de prova – o
‘princípio de prova’ decorrente das declarações dos co-arguidos”), seriam “de considerar estranhas – até porque entretanto esgotadas – ao actual recurso de revista”. Assim sendo, e porque o STJ não aplicou (nem desaplicou) norma – designadamente as dos arts. 127º e 129º do CPP – cuja inconstitucionalidade houvesse sido suscitada durante o processo (cfr. o art. 70º, n.º 1, b) da LTC, que o fundamentou), o STJ – como tribunal que proferiu a decisão recorrida (art. 76º, n.º 1) – não recebe o recurso que o cidadão A. dela interpôs, em 30DEZ03, para o Tribunal Constitucional.»
2.Inconformado, o recorrente veio deduzir a presente reclamação para o Tribunal Constitucional, dizendo:
«1. O aqui reclamante interpôs recurso para o Tribunal Constitucional do douto acórdão que julgou parcialmente procedente o recurso que havia interposto de uma, igualmente douta, decisão do Venerando Tribunal da Relação do Porto.
2. No seu requerimento de recurso o aqui reclamante alegou o seguinte: Pretende-se ver apreciada a inconstitucionalidade da interpretação dada pelo Colendo Supremo Tribunal de Justiça aos art.ºs.127° e 129° do Cód. Proc. Penal, uma vez que, a aceitar-se a tese daquele Colendo Supremo Tribunal, as violações do art. 32° da C.R.P., que consagra o princípio do contraditório, bem como do n.º 1, do mesmo art. 32º, que consagra o princípio de que ao arguido são asseguradas todas as garantias de defesa, teriam cobertura ‘legal’, ao arrepio do que dispõe a C.R.P.. In casu, o Colendo Tribunal a quo, considerou ser admissível e legal a prova alicerçada no depoimento de dois co-arguidos do recorrente, conjugada com o depoimento de agentes da polícia judiciária, sendo que, estes últimos tiveram por base as informações prestadas pelos dois aludidos co-arguidos, e, também, em fontes de informação anónimas e da PSP, não tendo sido ouvido qualquer agente desta última corporação relativamente aos factos referidos pelos senhores agentes da polícia judiciária. A inconstitucionalidade atrás referida, foi suscitada nas alegações e nas conclusões do recurso interposto para o Colendo Supremo Tribunal de Justiça.
3. O Colendo Supremo Tribunal de Justiça não recebeu o recurso, alegando, em síntese, que “não aplicou (nem desaplicou)” os art.ºs127° e 129° do Cód. Proc. Penal, pelo que o recurso carece de fundamento.
4. Acontece que, salvo sempre o devido respeito por melhor opinião, o Colendo Supremo Tribunal de Justiça aplicou de facto as aludidas normas, a partir do momento em que manteve inalterada a matéria de facto dada como provada.
5. Com efeito, ao manter a matéria de facto dada como provada pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto, o Colendo Supremo Tribunal de Justiça aceitou como correcta a interpretação dada por aquele Venerando Tribunal aos art.ºs 127º e
129º do Cód. Proc. Penal.
6. E, assim sendo, permitiu que normas cuja interpretação viola o disposto na Constituição produzissem efeitos jurídicos nos presentes autos.
7. Pelo supra exposto, deve a presente reclamação ser atendida, devendo o douto despacho que não recebeu o recurso ser substituído por outro, que admita o recurso, tudo com as legais consequências.» No Tribunal Constitucional, o representante do Ministério Público pronunciou-se
(artigo 77º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional) nos seguintes termos:
«A presente reclamação é manifestamente improcedente, desde logo porque a
‘questão’ colocada pelo recorrente, em torno dos arts. 127º e 129º do CPP, não se configura como sendo uma questão de inconstitucionalidade normativa, apreciável por este Tribunal. Assim – e quanto à norma constante do art.º 127º – o que o recorrente põe em causa não é o critério normativo ali estabelecido, de livre valoração da prova pelo colectivo, mas o concreto e casuístico resultado alcançado pelo Tribunal através da aplicação de tal princípio, o que obviamente se não enquadra nos poderes cognitivos deste Tribunal. Relativamente à valoração do depoimento dos co-arguidos, a norma em que o Supremo se fundou para apreciar a questão suscitada pelo recorrente foi a que consta do art. 344º, conjugada com o art. 126º (cfr. fls. 13 v.), a qual não integra sequer o objecto do recurso. Finalmente, não foi aplicada pelo Supremo a norma constante do art. 129º do CPP, já que a decisão impugnada não assentou na relevância e valoração de qualquer
“depoimento indirecto”, limitando-se as informações prestadas por indivíduos não identificados aos agentes da PJ a servirem de base a “vigilâncias e outras diligências”, sem constituírem, deste modo, fundamento fáctico e probatório da condenação.» Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentos
3.Pode adiantar-se já que a presente reclamação não merece ser deferida, por não se verificar um pressuposto indispensável para se poder tomar conhecimento do recurso de constitucionalidade que se pretendeu interpor. Na verdade, nos termos do respectivo requerimento, o recurso vem intentado ao abrigo do disposto no artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional. Para se poder conhecer de tal recurso torna-se necessário, a mais do esgotamento dos recursos ordinários, que a inconstitucionalidade da norma impugnada tenha sido suscitada durante o processo e que esta norma tenha sido aplicada como ratio decidendi pelo tribunal recorrido. Este último requisito não se verifica no presente caso, como se passa a mostrar.
4.Nos termos do requerimento de recurso, este tinha por objecto a apreciação da constitucionalidade dos artigos 127º e 129º do Código de Processo Penal, na
“interpretação dada pelo Colendo Supremo Tribunal de Justiça” (explicitando-se, depois, como esse Tribunal teria decidido). Dispõem aqueles preceitos:
“Artigo 127º
(Livre apreciação da prova) Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
(…)
Artigo 129.º
(Depoimento indirecto)
1 – Se o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas, o juiz pode chamar estas a depor. Se o não fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas.
2 – O disposto no número anterior aplicase ao caso em que o depoimento resultar da leitura de documento de autoria de pessoa diversa da testemunha.
3 – Não pode, em caso algum, servir como meio de prova o depoimento de quem recusar ou não estiver em condições de indicar a pessoa ou a fonte através das quais tomou conhecimento dos factos.”
5.Ora, consultando a decisão de que se pretendeu recorrer, que é o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Dezembro de 2003, verifica-se que este não fez aplicação, expressa ou implícita, destas normas, porque excluiu do seu
âmbito – do recurso de revista – a apreciação de questões de facto, ou delas instrumentais. Pode ler-se, na verdade, nessa decisão:
“(...)
6. QUESTÕES DE FACTO E CONEXAS
6.1. «Pretendendo os interessados solicitar o reexame da matéria de facto fixada em 1ª instância por decisão final de tribunal colectivo, terão que o fazer directamente para a Relação e nunca per saltum para o Supremo, uma vez que este só julga de direito. É que, tendo os recorrentes ao seu dispor o Tribunal da Relação para discutir a decisão de facto do tribunal colectivo e tendo aquele tribunal mantido tal decisão, vedado lhe está pedir ao Supremo Tribunal uma reapreciação da decisão de facto tomada pelo Tribunal da Relação e, muito menos, directamente do acórdão sobre os factos do tribunal colectivo de 1ª instância.»
6.2. «A competência das relações, quanto ao conhecimento do facto, esgota os poderes de cognição dos tribunais sobre tal matéria, não podendo pretender-se colmatar o eventual mau uso do poder de fazer actuar aquela competência, reeditando-se no Supremo Tribunal de Justiça pretensões pertinentes à decisão de facto que lhe são estranhas, pois se hão-de haver como precludidas todas as razões quanto a tal decisão invocadas perante a Relação, bem como as que o poderiam ter sido».
6.3. O arguido A., no seu recurso para a Relação, suscitou, entre outras, questões laterais (impossibilidade de consulta das actas de julgamento, demora na entrega por parte do tribunal dos elementos requeridos, envio de peças processuais por via postal, justo impedimento, prazo para o recurso para a Relação e deficiente transcrição da prova) que a Relação – e bem – considerou
“ultrapassadas” («uma vez que a motivação do recurso por si interposto foi admitida sem que se tenha levantado qualquer obstáculo e a transcrição da prova produzida na audiência de julgamento acabou por ser ordenada oficiosamente pelo tribunal»).
6.4. De qualquer modo, tratando-se de questões (de facto ou delas instrumentais) conexas com o recurso (em matéria de facto) para a Relação, serão de considerar estranhas – até porque entretanto esgotadas – ao actual “recurso de revista”.
6.5. O mesmo se diga dos “erros na apreciação da prova” ora (re)invocados pelo recorrente (“o tribunal de 1ª instância deveria indicar em concreto quais as fls. donde constam as actuações que lhe permitiram concluir que era o recorrente quem liderava a associação”; “a possibilidade de alteração da matéria de facto por parte da Relação não abarca os respectivos meios de prova”; o valor das
“fontes de informação anónimas da PJ”; o grau de corroboração do “conhecimento probatório do co-arguido”, etc.).
6.6. Aliás, a Relação, no caso, não só supriu as eventuais deficiências do
“exame crítico das provas” operado em 1ª instância (ao reexaminar a prova documentada e transcrita, ao apreciar a forma como perante ela o tribunal colectivo formou a sua convicção e ao (re)apreciar os factos impugnados pelo recorrente) como refutou os apontados “erros na apreciação da prova” (ao corroborar – com outros elementos de prova – o “princípio de prova” decorrente das declarações dos co-arguidos).
6.7. De qualquer modo, o reexame/revista (pelo STJ) exige/subentende a prévia definição (pelas instâncias) dos factos provados (art. 729º, n.º 1, do CPC)
6.8. E, no caso, a Relação – avaliando a regularidade do processo de formação de convicção do tribunal colectivo a respeito dos factos (re)impugnados no recurso
– manteve-os, em definitivo, no rol dos “factos provados”.
6.9. A revista alargada ínsita no art. 410º, n.ºs 2 e 3, do CPP pressupunha (e era essa a filosofia original, quanto a recursos, do Código de Processo Penal de
1987) um único grau de recurso (do júri e do tribunal colectivo para o STJ e do tribunal singular para a Relação) e destinava-se a suavizar, quando a lei restringisse a cognição do tribunal de recurso, a matéria de direito (o recurso dos acórdãos finais do júri ou do colectivo; e o recurso, havendo renúncia ao recurso em matéria de facto, das sentenças do próprio tribunal singular), a não impugnabilidade (directa) da matéria de facto (ou dos aspectos de direito instrumentais desta, designadamente «a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não devesse considerar-se sanada»).
6.10. Essa revista alargada (do STJ) deixou, porém, de fazer sentido – no caso de prévio recurso para a Relação – quando, a partir da reforma processual de
1998 (Lei n.º 59/98), os acórdãos finais do tribunal colectivo passaram a ser susceptíveis de impugnação, «de facto e de direito», perante a Relação (arts.
427º e 428º, n.º 1).
6.11. Actualmente, com efeito, quem pretenda impugnar um acórdão final do tribunal colectivo, de duas uma: se visar exclusivamente o reexame da matéria de direito (artigo 432º, d)), dirige o recurso directamente ao Supremo Tribunal de Justiça, e, se o não visar, dirige-o, «de facto e de direito», à Relação, caso em que da decisão desta, se não for «irrecorrível nos termos do art. 400º», poderá depois recorrer para o STJ (art. 432º, b)).
6.12. Só que nesta hipótese, o recurso – agora, puramente de revista – terá que visar exclusivamente o reexame da decisão recorrida (a da Relação) em matéria de direito (com exclusão, por isso, dos eventuais «erro(s)» – das instâncias – «na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa»).
6.13. Daí que, no presente «recurso de revista», não possa nem deva admitir-se a alegação de «erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa», com fundamento num pretenso «erro notório de apreciação das provas» por parte das instâncias e de uma alegada – mas, de qualquer modo, entretanto suprida pela Relação – deficiência do «exame crítico das provas» operado em 1ª instância.
6.14. O (objecto do) recurso de revista terá assim de circunscrever-se a questões «exclusivamente» de direito. Pois que – insiste-se – as questões «de facto» (ou delas instrumentais) deverão considerar-se definitivamente decididas pela Relação.
(...)” Como se verifica por esta transcrição, e se não deixou de salientar no despacho de não admissão de recurso, ora reclamado, o acórdão de que se pretendeu recorrer para o Tribunal Constitucional não aplicou as normas dos artigos 127º e
129º do Código de Processo Penal, pois não admitiu a alegação, no recurso de revista, de erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa – tais questões, de facto ou delas instrumentais, foram consideradas, antes, estranhas ao recurso de revista, e não se tomou delas conhecimento. E, assim, também não foi aplicada a norma do artigo 127º do Código de Processo Penal, atinente à livre valoração da prova. Nem o foi a norma do artigo 129º deste Código, relativa à admissibilidade do depoimento indirecto: esta não é, nem expressa, nem implicitamente referida na decisão recorrida, a qual não assentou na relevância e valoração de qualquer “depoimento indirecto”. Logo por esta razão, o recurso não podia ser admitido, e o despacho reclamado merece ser confirmado. E isto, mesmo independentemente da questão de saber se, nesse recurso, estava em causa verdadeiramente uma questão de inconstitucionalidade normativa, e não apenas – como salienta o Ministério Público – a apreciação da valoração da prova pelo colectivo (“o concreto e casuístico resultado alcançado pelo Tribunal”) – e recorde-se que, no direito constitucional português vigente, apenas as normas são objecto de fiscalização de constitucionalidade concentrada em via de recurso (cfr., por exemplo, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 18/96, publicado no Diário da República, II Série, de 15 de Maio de 1996, e J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª ed., Almedina, Coimbra, 2003, p. 923), com exclusão das decisões judiciais em si mesmas. Não podia, pois, admitir-se o recurso de constitucionalidade, e a presente reclamação é, assim, de indeferir. III. Decisão Pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a presente reclamação e condenar o reclamante em custas, com 15 (quinze) unidades de conta de taxa de justiça. Lisboa, 18 de Fevereiro de 2004 Paulo Mota Pinto Mário José de Araújo Torres Rui Manuel Moura Ramos