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Proc. nº 645/01
3ª Secção Relator: Cons. Gil Galvão
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. Por decisão do Tribunal do Círculo Judicial de Aveiro (Comarca de Vagos), de
13 de Junho de 2000, foi o ora recorrente, A., condenado, como autor material: a) de um crime de homicídio simples, previsto e punido pelo artigo 131º do Código Penal, na pena de 9 anos de prisão; b) de um crime de homicídio tentado, previsto e punido pelos artigos 131º, 22º,
23º e 73º do Código Penal, na pena de três anos de prisão.
Em cúmulo jurídico foi condenado na pena única de 10 anos de prisão, bem como ao pagamento de uma indemnização no valor global de 3.950.000$00.
2. Inconformado com esta decisão o arguido recorreu para o Tribunal da Relação de Coimbra que, por acórdão de 4 de Março de 2001, negou provimento ao recurso, mantendo, nos precisos termos, o acórdão recorrido.
3. Novamente inconformado o arguido recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça. Nas alegações que apresentou, e para o que agora importa, formulou as seguintes conclusões:
“I) Reconhecendo embora que a documentação é OBRIGATÓRIA, nos termos do artigo
363º do Código de Processo Penal (C.P.P.), o douto acórdão recorrido entendeu que tal irregularidade ficou sanada, nos termos do art. 123º desse diploma. Porém, II) O mesmo deveria ter interpretado tais preceitos no sentido de que ela é insanável, por constituir uma formalidade essencial à defesa dos arguidos, de que o Recorrente não renunciou expressamente, nem aceitou expressamente os seus efeitos, nem se prevaleceu da faculdade a cujo exercício o acto anulável se dirigia, como impunha o artigo 121º do C.P.P. III) De resto, o sentido da interpretação desses preceitos perfilhado no douto acórdão recorrido sempre seria inconstitucional, nos termos da Constituição da República Portuguesa, designadamente do seu artigo 32º, n.º 1. É que, IV) A documentação da prova teria facilitado a sua apreciação pelo Colendo Tribunal Colectivo, num julgamento que se estendeu ao longo do tempo, e o seu controlo pela Veneranda Relação.
[...]”.
4. O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 26 de Setembro de 2001, julgou o recurso improcedente. Sobre a questão de saber se a falta de documentação da prova no julgamento realizado perante o tribunal colectivo constitui ou não uma nulidade insanável, ponderou aquele Supremo Tribunal - depois de distinguir, em abstracto, “nulidades absolutas”, “nulidades relativas” e “meras irregularidades” -:
“[...] Para a situação que nos cumpre aqui ajuizar o problema consistirá em saber se a falta de documentação da prova que se acusa no recurso constitui ou não uma nulidade insanável.
É óbvio que não. Na verdade, o actual legislador processual penal construiu o sistema de vícios dos actos processuais atribuindo o carácter absoluto ou insanável a casos que enumera de forma taxativa. Isto significa que as situações que não se encaixem na lista que o legislador concebeu deixam de ser nulidades com essa natureza. Ora é bem de ver que a falta de documentação da prova não constitui, de forma alguma, uma nulidade absoluta, já que não vem como tal referida na lei. Assim, só pode aspirar ao estatuto de uma nulidade relativa ou de uma irregularidade. Seria nulidade relativa se estivesse elencada na lista, também taxativamente desenhada pelo art. 120º citado. Como não está, tal vício só como mera irregularidade pode ser aceite e, assim sendo, caberia ao arguido interessado argui-la na própria audiência, o que não fez, pelo que o acto se consolidou na ordem jurídica. Improcede, assim, pois, a primeira questão suscitada pelo recorrente.
[...]”.
5. É desta decisão que vem interposto, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do art.
70º da LTC, o presente recurso, para apreciação da constitucionalidade das normas dos artigos 363º e 123º do Código de Processo Penal, “com a interpretação de que, embora reconhecendo que a documentação da prova é obrigatória (artigo
363º), a sua não observância constitui mera irregularidade, sanável nos termos do artigo 123º, pois não foi suscitada na audiência”, por alegada violação do disposto no artigo 32º, n.º 1, da Constituição.
6. Já neste Tribunal foi o recorrente notificado para alegar, o que fez, tendo concluído da seguinte forma:
“I) – Procedeu-se ao julgamento por Tribunal Colectivo SEM A DOCUMENTAÇÃO DA PROVA desde 31 de Março a 13 de Junho de 2000, contra a disposição imperativa do art. 262º do Código de Processo Penal, sendo que o arguido ora Recorrente, invocava ali a sua inocência. II) – O Venerando Tribunal da Relação confirmou a decisão condenatória da Primeira Instância, pelo que, inconformado, o ora Recorrente interpôs recurso para o Venerando Supremo Tribunal de Justiça, e na respectiva motivação (artigos
2 a 6), suscitou a inconstitucionalidade, que é material, das normas dos artigos
363º e 123º do Código de Processo Penal, com a interpretação, feita em segunda instância, de que, embora reconhecendo que a documentação da prova é obrigatória, nos termos do art. 363º, a sua não observância constitui mera irregularidade, sanável apenas nos termos daquele artigo 123º, o que não se verificou, pois não foi suscitada na audiência de julgamento. Porém, III) – O Venerando Supremo Tribunal de Justiça manteve a interpretação da Veneranda Relação a páginas 11 a 14 do seu douto acórdão, confirmativo da condenação nas instâncias, com o argumento fundamental de que as nulidades, absolutas ou relativas, têm que estar elencadas na lei, nos termos, respectivamente, dos artigos 119º e 120º do mesmo diploma, o que não seria o caso. IV) – Tal interpretação ofende as garantias fundamentais de defesa consignadas na Constituição da República, designadamente no n.º 1 do seu artigo 32º. Com efeito, V) – Como resulta dos citados artigos 119º e 120º, tal enumeração não é taxativa, remetendo, genericamente, para outras disposições legais. Ora, VI) – O tom imperativo do art. 363º e a ausência da ressalva consignada no artigo 364º quanto ao julgamento em Tribunal Singular leva a concluir que estamos perante uma NULIDADE ABSOLUTA, que nem com o acordo unânime dos representantes das partes pode ser sanada, pois o Tribunal Colectivo julga crimes muito mais graves que o Singular. De resto, VII) – Comparada a gravidade dessa omissão com as nulidades absolutas elencadas no art. 119º não choca inclui-la entre estas e nas relativas enumeradas no art.
120º. VIII) – Por outro lado, a única forma de conceder utilidade efectiva ao recurso sobre a matéria de facto, consignado no art. 399º e seguintes do C.P.P., é a documentação da prova, pois só nessa hipótese o Tribunal Superior terá à sua disposição todos os elementos para verificar a justeza da decisão da 1ª instância e, consequentemente, também só assim se preservam as garantias fundamentais de defesa consignadas na Constituição da República, designadamente no n.º 1 do seu artigo 32º, muito em especial depois das alterações introduzidas pela Lei n.º 1/97, de 20 de Setembro, que passou a referir expressamente o recurso. IX) – Aliás o mesmo acontecerá se se entender que estamos perante uma NULIDADE RELATIVA, nos termos do art. 121º do C.P.P., mas que não foi sanada, pois o arguido, ora Recorrente, não teve qualquer dos comportamentos aí previstos para o afastamento dessa nulidade. O que nunca pode é entender-se que estamos perante uma simples IRREGULARIDADE, sanável nos termos do art. 121º do C.P.P. De resto, X) – Até para o próprio Tribunal Colectivo a documentação da prova permitia a sua melhor análise, até porque o julgamento se prolongou durante vários meses. XI) – Por tudo o que se disse, a interpretação dada pelos Venerandos Tribunal da Relação de Coimbra e Supremo Tribunal de Justiça das citadas disposições é inconstitucional.
7. Notificado para responder, querendo, às alegações dos recorrentes, disse o Ministério Público a concluir:
“1º - Não constitui solução desproporcionada, no plano das garantias de defesa, a que se traduz em impor ao arguido e ao seu defensor (que necessariamente o patrocina no processo) o ónus de invocarem, até ao encerramento da audiência final, os vícios procedimentais nela verificados a propósito da produção ou registo da prova, incluindo a indevida omissão de documentação da audiência realizada perante o colectivo.
2º - Na verdade, o arguido e seu defensor tiveram plena oportunidade processual para invocar tal vício, perante o tribunal colectivo, sendo certo que dele não puderam deixar de se aperceber se, agindo no processo com a devida diligência, consideravam tal registo relevante para uma futura e ulterior impugnação da decisão do colectivo acerca da matéria de facto.
3º - Não constituindo, deste modo, solução desproporcionada a imposição ao arguido do ónus de invocar os vícios ocorridos a propósito da produção da prova perante o tribunal colectivo até ao encerramento da audiência final, não podendo fazê-lo apenas, pela primeira vez, em ulterior fase do processo penal (a do recurso).
4º - Termos em que deverá improceder o presente recurso”.
8. Por parte dos recorridos particulares não foi apresentada qualquer alegação.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
9. É o seguinte o teor dos artigos do Código de Processo Penal em que se insere a norma cuja constitucionalidade o recorrente pretende ver apreciada por este Tribunal:
Artigo 363º
(Documentação de declarações orais – Princípio geral)
As declarações prestadas oralmente na audiência são documentadas na acta quando o tribunal puder dispor dos meios estenotípicos, ou estenográficos, ou de outros meios técnicos idóneos a assegurar a reprodução integral daquelas, bem como nos casos em que a lei expressamente o impuser.
Artigo 123º
(Irregularidades)
1. Qualquer irregularidade do processo só determina a invalidade do acto a que se refere e dos termos subsequentes que possa afectar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio acto ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em acto nele praticado.
2. Pode ordenar-se oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade, no momento em da mesma se tomar conhecimento, quando ela puder afectar o valor do acto praticado.
Entende o recorrente que a omissão de documentação das declarações orais prestadas em audiência perante o tribunal colectivo (a que se refere o artigo
363º do C.P.P.) só pode constituir nulidade (insanável ou sanável, nos termos, respectivamente, do artigo 119º ou 120º do C.P.P.), mas nunca mera irregularidade, que deva ser arguida até ao final da audiência.
Entendeu a decisão recorrida, diferentemente, que aquela omissão constitui mera irregularidade, por não estar referida entre as causas – elencadas taxativamente, na perspectiva daquela decisão – de nulidade processual. Consequentemente, concluiu a decisão recorrida que essa irregularidade deveria ter sido invocada até ao final da audiência em primeira instância.
Antes de mais importa começar por evidenciar que não cumpre ao Tribunal Constitucional, como é sabido, tomar posição nesta querela, optando por uma das interpretações dos preceitos em análise. Ao Tribunal Constitucional cumpre apenas decidir se a norma que se extrai desses preceitos, na interpretação por que efectivamente optou a decisão recorrida, está ou não de acordo com a Constituição, nomeadamente com o seu artigo 32º, n.º 1, invocado pelo recorrente.
Isto dito, pode então formular-se nos seguintes termos a questão de constitucionalidade que vem colocada à consideração do Tribunal: é materialmente inconstitucional, designadamente por violação do princípio das garantias de defesa, consagrado no artigo 32º, n.º 1, da Constituição, a interpretação normativa dos artigos 123º e 363º do Código de Processo Penal, que se traduz em considerar que a omissão de documentação das declarações orais prestadas em audiência perante o tribunal colectivo constitui mera irregularidade, que deve ser arguida até ao final da audiência?
10. A esta questão há que responder negativamente, sendo evidente que aquela interpretação normativa não colide com o disposto no artigo 32º, n.º 1, da Constituição.
O artigo 32º, nº1, da Constituição, dispõe, actualmente, que “O processo criminal assegurará todas as garantias de defesa, incluindo o recurso”.
Ponderando sobre o sentido e alcance do n.º 1 do artigo 32º da Constituição escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 2ª ed., I vol., pp. 214-215, anotação II):
“A fórmula do n.º 1 é, sobretudo, uma expressão condensada de todas as normas restantes deste artigo, que todas elas são, em última análise, garantias de defesa. Todavia, este preceito introdutório serve também de cláusula geral englobadora de todas as garantias que, embora não explicitadas nos números seguintes, hajam de decorrer do princípio da protecção global e completa dos direitos de defesa do arguido em processo criminal. «Todas as garantias de defesa» engloba indubitavelmente todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação. [...]”.
(sublinhado nosso).
Também o Tribunal Constitucional se tem pronunciado, por várias vezes, sobre o
âmbito deste preceito. Logo no Acórdão n.º 61/88 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11º vol., pp. 611 e ss.), e com interesse para os presentes autos, ponderou o Tribunal:
“[...] A ideia geral que pode formular-se a este respeito - a ideia geral, em suma, por onde terão de aferir-se outras possíveis concretizações (judiciais) do princípio da defesa, para além das consignadas nos n.ºs 2 e seguintes do artigo
32º - será a de que o processo criminal há-de configurar-se como um due process of law, devendo considerar-se ilegítimas, por consequência, quer eventuais normas processuais, quer procedimentos aplicativos delas, que impliquem um encurtamento inadmissível, um prejuízo insuportável e injustificável das possibilidades de defesa do arguido (assim, basicamente, cfr. Acórdão n.º
337/86, deste Tribunal, Diário da República, I Série, de 30 de Dezembro de
1986)”. (Sublinhado nosso).
Do que antecede decorre que a resposta à questão de constitucionalidade que agora vem colocada depende da questão de saber se a imposição ao arguido de que suscitasse, durante a audiência perante o tribunal colectivo, o vício procedimental nela verificado e traduzido na omissão de documentação das declarações orais nela prestadas, traduz ou não uma “diminuição inadmissível, um prejuízo insuportável e injustificável” (para usar as palavras do citado Acórdão n.º 61/88), das suas garantias de defesa.
Julgamos, efectivamente, que não.
Desde logo haverá que referir que a solução se justifica, manifestamente, por evidentes razões de celeridade e economia processuais. Na realidade, não se perceberia que, agindo o arguido ou o seu defensor com a devida diligência e boa fé e tendo detectado o vício procedimental, ou tendo obrigação de o detectar, nessa fase processual, pudessem deixar que a audiência continuasse a decorrer como se nada de irregular se passasse, para só mais tarde, já em fase de recurso, o virem então invocar.
Acresce - como, bem, evidencia o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto na sua alegação
- que a imposição ao arguido, necessariamente assistido no processo por um defensor, do ónus de invocar no decurso da audiência - que, no caso dos presentes autos, até se prolongou por vários meses - um vício procedimental que nela está precisamente a acontecer - e, que, portanto, não deveria passar despercebido a um acompanhamento diligente dessa fase processual - manifestamente não implica um cerceamento inadmissível ou insuportável das suas possibilidades de defesa que se tenha de considerar desproporcionado ou intolerável, em termos de consubstanciar solução constitucionalmente censurável, na perspectiva do artigo 32º, n.º 1, da Constituição.
Não poderá, por isso, sequer afirmar-se que aqueles objectivos de celeridade e economia processuais sejam, neste caso, alcançados à custa de uma intolerável diminuição das garantias de defesa do arguido.
III. Decisão
Por tudo o exposto, decide-se negar provimento ao recurso. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta.
Lisboa, 28 de Abril de 2003- Gil Galvão Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Alberto Tavares da Costa Bravo Serra Luís Nunes de Almeida