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Proc. nº 497/02 TC – 1ª Secção Rel.: Consº Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 – A e mulher, identificados nos autos, recorrem para este Tribunal, ao abrigo dos artigos 70º nº 1 alíneas b) e f) da LTC, do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de fls. 415 e segs., pedindo a apreciação da constitucionalidade da norma contida no artigo 1381º, alínea a) do Código Civil que, segundo os recorrentes, viola o disposto nos artigos 81º, alínea g), 93º, nº 1, alínea a) e 95º da Constituição.
Produziu alegações, nas quais formulou as seguintes conclusões úteis que se transcrevem textualmente:
'N) No artigo 81º da Constituição aparece a incumbência de
'reordenar o minifúndio'. É por isso um princípio constitucional a que há-de obedecer a Lei Ordinária.
Estatuição que entre outras encontra expressão no art. 1380º e segs, do Código Civil nas leis do emparcelamento rural.
Também assim o art. 93º, nº 1 al a) e 95º da CRP.
O) A política de construção, ou de indústria desenfreada não podem fazer lei que ateste o expressamente consignado nos diplomas legais.
P) O aliás Douto Acórdão recorrido esquece que a Lei para invocar razões de ordem político-social para justificar uma decisão com a qual parece também não concordar.
Q) Aos Tribunais cabe fazer a melhor interpretação da lei que sirva a 'ratio legis' que lhe está subjacente, e não inconformisticamente aceitar a sua derrogação pelo vandalismo, os fundamentalismos e outros 'ismos' que tais.
R) Digníssimos Conselheiros, as interpretações formuladas nos acórdãos recorridos é para um jurista uma afronta à independência de quem julga.
S) A interpretação dada aos preceitos legais está claramente em contradição com os princípios constitucionais e daí que os Acórdãos recorridos enfermam de inconstitucionalidade.
T) Assim verifica-se que o art. 1381º, al. a) do Código Civil enferma claramente de inconstitucionalidade por violação dos princípios estatuídos nos arts. 81º, 93º, nº 1, al a) e 95º da Constituição da República Portuguesa, nomeadamente o direito ao redimensionamento da propriedade agrícola, pelo que a mesma ofende os princípios constitucionais ali fixados e que são de aplicação directa.
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Em contra-alegações, a recorrida particular 'B' pugna pelo improvimento do recurso.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
2 – Como se relatou, o recurso vem interposto simultaneamente ao abrigo das alíneas b) e f) do artigo 70º nº 1 da LTC.
Mas ele só pode ser conhecido ao abrigo da primeira das alíneas citadas, uma vez que se não verificam os pressupostos exigidos pela segunda dessas alíneas – não se invoca, nem se suscitou perante o tribunal que proferiu a decisão impugnada, a ilegalidade da norma do artigo 1381º, alínea a) do Código Civil, com qualquer dos fundamentos previstos nas alíneas c), d) e e) do artigo
70º nº 1 da LTC.
3 – O presente recurso emerge de uma acção de preferência intentada pelos recorrentes, contra a ora recorrida e outros, na qualidade de proprietários de prédio rústico confinante com prédio igualmente rústico adquirido pela recorrida.
Ficou provado na acção que o referido prédio adquirido pela recorrida se destinava a construção, razão por que, com fundamento no disposto no artigo 1381º, alínea c), do Código Civil, a acção foi julgada improcedente, decisão que se manteve inalterada nas sucessivas instâncias percorridas, em recursos, pelos ora recorrentes; na última decisão – o acórdão do STJ, agora impugnado – a pronúncia limitou-se, por razões processuais que não interessam ao caso, à questão de constitucionalidade que é objecto do presente recurso.
4 – O Artigo 1381º, alínea c) do Código Civil insere-se na Secção VII do Capítulo III, Título II, Livro III daquele Código, secção que tem como epígrafe 'Fraccionamento e emparcelamento de prédios rústicos'.
O conjunto de dispositivos que integram esta secção do Código tem o seu antecedente histórico na Lei nº 2116, de 14 de Agosto de 1962, que regulou igualmente a matéria do fraccionamento e emparcelamento de prédios rústicos.
Visa este complexo normativo a finalidade económica e social de reordenamento da propriedade fundiária, com o objectivo de os terrenos aptos para cultura terem (ou não deixarem de ter) uma dimensão mínima (unidade de cultura) adequada a uma exploração economicamente viável.
Assim, do mesmo passo que se proíbe o fraccionamento dos terrenos em parcelas de área inferior à unidade de cultura fixada para cada zona do País
(artigo 1376º) concede-se aos proprietários de terrenos confinantes, de área inferior àquela unidade, reciprocamente, direito de preferência nos casos de venda, dação em cumprimento ou aforamento de qualquer dos prédios a quem não seja proprietário confinante (artigo 1380º).
A estes princípios abre o Código excepções com o mesmo sentido: enquanto o artigo 1377º, alínea a) exceptua da proibição de fraccionamento os terrenos que se destinem a algum fim que não seja a cultura, o artigo 1381º alínea a) não confere o aludido direito de preferência aos proprietários de prédios confinantes 'quando algum dos terrenos (...) se destine a algum fim que não seja a cultura'.
As excepções – e agora em particular a que nos ocupa - na lógica do sistema, tem uma óbvia justificação: se aqueles princípios visam um determinado redimensionamento dos terrenos aptos para cultura e no interesse da exploração agrícola, a sua aplicação deixa de justificar-se nos casos em que o prédio confinante se destina a outro fim, nomeadamente o da construção.
Não pode este Tribunal sindicar o acerto do decidido quanto ao se ter dado como provado que, no caso, o terreno adquirido pela recorrida se destinava a construção e quanto à interpretação (no estrito plano do direito infraconstitucional) de não ter que constar da escritura de compra e venda aquele destino, nem muito menos quanto à decisão administrativa de viabilizar – de acordo, aliás, com o respectivo PDM - a construção num prédio inscrito como rústico.
O que o Tribunal pode e deve apreciar é apenas a questão de saber se a referida norma, ao não conferir o direito de preferência ao proprietário do prédio rústico confinante quando o terreno se não destina a fins de cultura, ofende os preceitos constitucionais citados pelo recorrente.
E a essa questão o Tribunal responde, sem qualquer dúvida, negativamente.
5 – A norma infraconstitucional em causa há muito que vigorava quando a Constituição foi aprovada; e, nesta medida, ela só 'caducaria' se fosse contrária aos princípios consignados na Constituição, de acordo com o disposto no artigo 290º nº 2 da Lei Fundamental.
Ora, os preceitos constitucionais que os recorrentes consideram violados, todos inseridos na Parte II da Constituição ('Organização económica', estabelecem, o primeiro (artigo 81º, alínea g)), como incumbência prioritária do Estado 'eliminar os latifúndio e reordenar o minifúndio', o segundo (artigo 93º nº 1 alínea a)), como objectivo da política agrícola, 'aumentar a produção e a produtividade da agricultura, dotando-a das infra-estruturas e dos meios humanos, técnicos e financeiros adequados, tendentes ao reforço da competitividade e a assegurar a qualidade dos produtos, a sua eficaz comercialização, o melhor abastecimento do país e o incremento da exportação' e o último (artigo 95º) a obrigação do Estado promover 'nos termos da lei, o redimensionamento das unidades de exploração agrícola com dimensão inferior à adequada do ponto de vista dos objectivos da política agrícola, nomeadamente através de incentivos jurídicos, fiscais e creditícios à sua integração estrutural ou meramente económica, designadamente cooperativa, ou por recuso a medidas de emparcelamento'.
Se todos estes princípios conferem ao legislador uma larga margem de conformação para atingir os fins constitucionalmente visados, na dependência de conjunturas e opções políticas diversas, seguramente que eles o não vinculam, com o objectivo de aumentar ou melhorar a produção e a produtividade agrícolas e de dotar a agricultura dos meios necessários para o efeito ou de redimensionar o minifúndio, a conferir, em qualquer caso e circunstância, um direito de preferência dos proprietários de prédios rústicos confinantes quando algum dos terrenos se destine a fim que não seja o da cultura agrícola.
A norma em causa insere-se, aliás, como se disse, na regulação de fraccionamento e emparcelamento dos prédios rústicos, constituindo uma opção política do legislador, constitucionalmente admissível.
E isto, decisivamente, até porque as incumbências constitucionais do Estado se não limitam ao sector agrícola, impondo-se que ele as concilie de modo social e economicamente integrado, para obter um desenvolvimento harmónico e equilibrado de todos os sectores de actividade.
Ora, de entre as tarefas que ao Estado incumbe, não são das menores as que, para assegurar o direito à habitação, estão plasmadas no artigo 65º nº 2 da Constituição; e o desempenho dessas incumbências legitima que, de acordo com planos de ordenamento do território, se possa condicionar a aprovação de medidas que promovessem a melhoria do sector agrícola e, particularmente, o redimensionamento do minifúndio. Se aqueles planos são ou não adequados é outra questão que já nada tem a ver com a constitucionalidade da norma em causa...
Em suma, pois, não contraria os citados preceitos constitucionais a norma ínsita no artigo 1381º, alínea a) do Código Civil.
6 – Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se negar provimento ao recurso.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 15 Ucs.
Lisboa, 19 de Fevereiro de 2003 Artur Maurício Maria Helena Brito Pamplona de Oliveira Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa