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Proc. n.º 851/03
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Por decisão sumária de fls. 332 e seguintes, não se tomou conhecimento do objecto do recurso interposto para este Tribunal por A. e outra, pelos seguintes fundamentos:
“[...]
6. O presente recurso foi interposto ao abrigo das alíneas b) e i) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (supra, 5.). Não estão, porém, no presente caso, preenchidos os pressupostos processuais de qualquer dos recursos previstos nessas alíneas. Relativamente ao recurso previsto na alínea b), é patente que as recorrentes não suscitaram, durante o processo, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa (cfr., ainda, o disposto no artigo 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional). Na verdade, e contrariamente ao que sustentam no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, nem nas alegações produzidas junto do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, nem nas alegações referentes ao recurso para o Supremo Tribunal Administrativo, foi suscitada a questão da inconstitucionalidade de uma norma ou interpretação normativa. Nas primeiras (supra, 1.), limitaram-se as recorrentes a suscitar uma vaga
«inconstitucionalidade resultante de uma interpretação contrária», sem concretizar minimamente tal interpretação inconstitucional nem referir a norma a que tal interpretação respeitava. Não pode, assim, afirmar-se que as recorrentes tenham suscitado uma qualquer questão de inconstitucionalidade normativa (ou seja, questão de inconstitucionalidade de uma norma ou de uma interpretação normativa). Nas alegações produzidas perante o Supremo Tribunal Administrativo (supra, 3.) – a peça processual que aqui interessaria considerar face ao disposto no artigo
72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional –, limitaram-se as recorrentes a suscitar a inconstitucionalidade da decisão então recorrida, bem como do
«comportamento» ou da «actuação» da ré recorrida. Mais uma vez, não foi suscitada qualquer questão de inconstitucionalidade normativa (ou seja, de uma norma ou de uma interpretação normativa). Sublinhe-se aliás que as recorrentes não chegaram a identificar no requerimento de interposição do presente recurso qualquer norma que pretendam submeter ao julgamento do Tribunal Constitucional. Não tendo as recorrentes suscitado, durante o processo, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, conclui-se – sem necessidade de aferir da verificação de outros pressupostos processuais – que não é possível conhecer do objecto do presente recurso, na parte em que se refere à alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
7. Relativamente ao recurso previsto na alínea i) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, é também patente que os respectivos pressupostos processuais não estão preenchidos. É que, percorrendo o texto da decisão recorrida (supra, 4.), verifica-se que nela não se recusou a aplicação de norma constante de acto legislativo, com fundamento na sua contrariedade com uma convenção internacional, nem nela se aplicou norma constante de acto legislativo, em desconformidade com o anteriormente decidido sobre a questão pelo Tribunal Constitucional [cfr. a mencionada alínea i)]. Não se compreende, aliás, que no requerimento de interposição do recurso (supra,
5.), as recorrentes invoquem decisões da Comissão Europeia dos Direitos do Homem e do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, para os efeitos do disposto no n.º
4 do artigo 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional: na verdade, a interposição de um recurso ao abrigo da alínea i) do n.º 1 do artigo 70º da mesma Lei não pressupõe desconformidade com decisões dessa natureza, mas, diversamente (quando o recurso se funde na última parte desta alínea), com o anteriormente decidido pelo Tribunal Constitucional. Conclui-se, assim, que também não é possível conhecer do objecto do presente recurso, na parte em que se refere à alínea i) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
[...].”
2. Notificadas desta decisão sumária, A. e outra dela vêm agora reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no artigo 78º-A, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, dizendo, em síntese, o seguinte (fls. 364 e seguintes):
a) “[A] reclamante ao longo de todo o processo evidenciou que a interpretação vertida nas decisões recorridas no que respeita ao regime previsto no DL 468/71 de 05-11 que define o regime a aplicar em matéria de licenças e concessões é claramente violador” dos princípios constitucionais que norteiam a administração pública e do direito de propriedade, pelo que não é possível concordar com a decisão reclamada que, “de forma sumária, decide não tomar conhecimento do objecto do recurso fundamentando-se no não preenchimento dos pressupostos das alíneas b) e i) do n.º 1 do art. 70º da LTC”; b) Discorda-se da decisão reclamada no que se refere à “questão de inconstitucionalidade normativa”, pois “a tarefa de delimitação desses conceitos cabe (...) a todos os aplicadores da Constituição, e, em última instância, aos juízes, delimitação que, aliás, em face do texto da norma, tanto pode saldar-se numa interpretação enunciativa, como numa interpretação restritiva ou mesmo numa interpretação ampliativa” e trata-se, “fundamentalmente no recurso para este Alto Tribunal, da interpretação do art. 69º da LEPTA e dos arts. 18º e 28º do DL
468/71 de 05-11”; c) A decisão sumária só é admissível quando a questão a decidir é simples, nomeadamente por a mesma já ter sido objecto de decisão anterior do Tribunal Constitucional ou por ser manifestamente infundada, sendo que a decisão reclamada se fundou na ausência dos pressupostos que presidem à aplicação das alíneas b) e i) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
A recorrida não respondeu (fls. 368).
Cumpre apreciar.
II
3. Nos termos do artigo 78º-A, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional, o relator profere decisão sumária se entender que não pode conhecer-se do objecto do recurso ou que a questão a decidir é simples.
As causas que determinam a impossibilidade de conhecimento do objecto do recurso não vêm elencadas no referido artigo 78º-A, n.º 1 – contrariamente ao que sucede com as causas que determinam a simplicidade da questão a decidir –, certamente porque o legislador entendeu que o intérprete, manuseando as regras gerais do processo, facilmente as identificaria: essas causas coincidem com a falta dos pressupostos processuais do recurso interposto pelo recorrente.
Tão óbvio se afigura que a impossibilidade de conhecimento do objecto do recurso só pode decorrer do não preenchimento dos respectivos pressupostos processuais, que dificilmente se alcança o sentido do terceiro argumento das recorrentes [supra, 2., c)]. A falta dos pressupostos (de qualquer dos pressupostos) de qualquer dos recursos previstos nas várias alíneas do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional determina, como não pode deixar de ser, a impossibilidade de conhecimento do respectivo objecto e, concomitantemente, o preenchimento da previsão do artigo 78º-A, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional.
Dito de outro modo, é evidente que se pode proferir decisão sumária, quando não esteja preenchido um pressuposto processual do recurso interposto para o Tribunal Constitucional.
Improcede assim totalmente o terceiro argumento das recorrentes.
O segundo argumento [supra, 2., b)] carece igualmente de qualquer fundamento válido. Se bem se compreende o seu sentido, as recorrentes insurgem-se contra o conceito de “inconstitucionalidade normativa” perfilhado na decisão sumária reclamada.
Todavia, não se alcança qual o conceito alternativo que propõem, o que esvazia a hipotética incidência da crítica.
Duas coisas são porém certas: uma, que a identificação (na própria reclamação para a conferência) dos artigos 69º da LPTA e dos artigos 18º e 28º do Decreto-Lei n.º 468/71, de 5 de Novembro, não supre o não cumprimento do ónus a que aludem os artigos 70º, n.º 1, alínea b) e 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional; outra, que não se suscita uma questão de inconstitucionalidade normativa quando – como, durante o processo, fizeram as recorrentes – se invoca a “inconstitucionalidade resultante de uma interpretação contrária”, a inconstitucionalidade de uma “decisão”, a inconstitucionalidade de um
“comportamento” ou a inconstitucionalidade de uma “actuação”. Improcede assim também completamente o segundo argumento das recorrentes.
O primeiro argumento das recorrentes [supra, 2., a)] padece dos vícios acabados de apontar. O ónus a que se referem os artigos 70º, n.º 1, alínea b), e 72º, n.º
2, da Lei do Tribunal Constitucional não é evidentemente cumprido quando a parte se limita a “evidenciar que a interpretação vertida nas decisões recorridas no que respeita ao regime previsto no DL 468/71 de 05-11 que define o regime a aplicar em matéria de licenças e concessões” é claramente violador de certos princípios constitucionais e direitos fundamentais. É necessário que a parte submeta ao tribunal recorrido uma qualquer norma ou uma interpretação de uma norma, cuja conformidade constitucional tal tribunal possa (e deva) sindicar.
Tal exigência não é um pesado ou inútil constrangimento de ordem processual no acesso ao Tribunal Constitucional, como a certo momento da sua reclamação lamentam as recorrentes. É que o Tribunal Constitucional só cumpre a sua função de tribunal de recurso quando o tribunal que proferiu a decisão recorrida teve a oportunidade de se pronunciar sobre a questão de inconstitucionalidade normativa que constitui o objecto do recurso: oportunidade que seguramente não surge quando perante o tribunal recorrido se não colocou qualquer questão dessa natureza.
Improcede assim igualmente o primeiro argumento das recorrentes.
E, não havendo qualquer outro motivo para revogar a decisão sumária reclamada, impõe-se mantê-la.
III
4. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação, confirmando a decisão sumária reclamada, que não tomou conhecimento do objecto do recurso.
Custas pelas recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta, por cada uma.
Lisboa, 18 de Fevereiro de 2004
Maria Helena Brito Carlos Pamplona de Oliveira Rui Manuel Moura Ramos