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Processo n.º 472/03
2.ª Secção Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – O relatório
1. A., identificado com os sinais dos autos, recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, al. b), da Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro (LTC), pretendendo ver apreciada a inconstitucionalidade da norma resultante da interpretação conjugada dos artigos
66.º, n.º 4, e 411.º, n.º1, do Código de Processo Penal, no sentido de que o prazo de interposição do recurso se conta ininterruptamente a partir da data do depósito da sentença na Secretaria, mesmo no caso de recusa de interposição do recurso por parte do defensor oficioso nomeado, cuja substituição foi requerida.
2. O arguido-recorrente foi condenado por decisão do Tribunal Judicial de Tondela, pela prática de oito crimes de denúncia caluniosa, na pena de sete meses de prisão por cada um deles, tendo-se efectuado o cúmulo dessas penas com as aplicadas noutros processos, sendo o arguido condenado na pena
única de cinco anos e seis meses de prisão.
O arguido, assistido por defensor oficioso, requereu, dentro do prazo de interposição do recurso da sentença condenatória, que lhe fosse nomeado novo defensor, uma vez que pretendia impugnar a decisão condenatória e a defensora nomeada, por concordar com a decisão supra referida, recusou-se a interpor tal recurso.
Após nomeação de novo defensor, foi interposto recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, que, por Acórdão de 17 de Outubro de 2002, considerou competente para apreciar o recurso o Tribunal da Relação de Coimbra, tendo determinado a remessa dos autos a esse Tribunal.
O Ministério Público suscitou questão prévia relativamente à intempestividade do recurso, sustentando que o respectivo prazo de interposição se conta a partir do depósito da sentença na Secretaria e não da data da nomeação da nova defensora, tendo o arguido, nos termos do artigo 417.º, n.º2, do Código de Processo Penal, respondido com a seguinte argumentação:
«1. Em primeiro lugar à data do depósito do acórdão na secretaria do Tribunal Judicial da Comarca de Tondela – em 21/03/2002 – o ora recorrente encontrava-se detido no Estabelecimento Prisional de --------(...).
2. Ainda assim, mesmo coarctado da liberdade e mobilidade necessárias a diligenciar estes e outros assuntos, o recorrente teve o cuidado de em prazo endereçar ao Tribunal uma exposição na qual invocava justa causa para a substituição da defensora que lhe fora nomeada.
3. Fê-lo por requerimento/carta entrado no Tribunal em 28/03/2002, no qual desde logo manifestava a sua vontade de recorrer do acórdão.
4. E invocava como justa causa para a substituição da defensora o facto de esta “não querer recorrer”.
5. Contudo só em 24/04/2002 tal requerimento do arguido foi objecto de decisão (despacho de fls. 401).
6. Vindo a signatária a ser nomeada defensora por despacho de
13/05/2002, que lhe foi notificado em 16/05/2002 – uma Quinta-feira –, o recurso foi interposto com motivação no dia 23/05/2002 (a Quinta-feira seguinte).
7. O recurso foi admitido pelo Tribunal a quo, que fundamentou a decisão da sua tempestividade e legalidade na salvaguarda do direito constitucional plasmado no n.º 1 do artigo 32.º (da C.R.P.).
8. Mais indicando que o prazo para a interposição do recurso se deveria contar da notificação da substituição de defensor à signatária.
9. Estamos cientes do disposto no n.º 3 do artigo 414.º do C.P.P..
10. Bem como da disposição do n.º 4 do artigo 66.º do C.P.P..
11. Mas haverá que conjugar-se o disposto neste último preceito com outras disposições legais, incluindo as constitucionais.
12. E o artigo 67.º do C.P.P. prevê que se interrompa e mesmo se adie a realização de um acto por falta de defensor se a assistência ao arguido for necessária.
13. A Lei 30-E/2000 de 20 de Dezembro também prevê nas disposições especiais sobre processo penal, que se estiver em causa no pedido de escusa a salvaguarda do segredo profissional (artigo 45.º, n.º 3) se aplique o disposto no artigo 35.º - ou seja que se interrompa o prazo que estiver em curso.
14. No caso concreto o arguido não podia pelos seus próprios meios interpor o recurso.
15. Carecia de pessoa habilitada para o representar.
16. Prejudicada que estava a relação de confiança entre o recorrente e a anterior defensora, chegando mesmo o arguido a invocar a sua recusa na interposição do recurso, só após a substituição de defensor seria possível a interposição do recurso, especialmente porque a Lei impõe que seja acompanhado de motivação.
17. Não se admitindo o presente recurso viola-se a disposição constitucional que consagra se assegurem todas as garantias de defesa em processo criminal (n.º 1 do artigo 32.º da Constituição).
18. Invoca o Digno Senhor Procurador da República na Resposta: a) o princípio da estabilidade que emana do n.º 2 do artigo 45.º da Lei do Apoio Judiciário; b) conexionado com o n.º 4 do artigo 66.º do C.P.P.; c) que nesse “contexto o direito de recorrer do arguido estava assegurado e podia ter sido exercido no prazo legal”.
19. Mas como atrás vimos, o princípio da estabilidade do n.º 2 é afastado na hipótese do n.º 3 do mesmo artigo 45.º da citada Lei n.º 30E/2000.
20. E esse artigo 45.º respeita a caso diverso do dos autos:
- é o defensor nomeado que pede dispensa do patrocínio.
21. Neste caso, compreende-se que se mantenha em funções até ser substituído.
22. Mas no caso dos autos foi o ora recorrente que requereu a substituição.
23. O que afasta o aludido princípio da estabilidade imposto pelo relevo da função da defesa.
24. De facto, o ora recorrente estava desamparado e sem defesa.
25. Razão pela qual em obediência ao citado preceito constitucional haveria de se lhe assegurar essa defesa que faltava. Termos em que, com o devido suprimento, deve admitir-se o presente recurso sob pena de inconstitucionalidade por violação do n.º 1 do artigo 32.º da C.R.P., mantendo-se o demais peticionado (...)».
3. O Tribunal da Relação de Coimbra, por Acórdão de 8 de Janeiro de 2003, negou provimento ao recurso com base na sua intempestividade, tendo, para tal, aduzido a seguinte argumentação:
«(...) Intempestividade do recurso:
A nomeação da primeira defensora foi notificada ao arguido. Nada disse ou requereu. A defensora nomeada, nunca tendo pedido dispensa do patrocínio, esteve presente no julgamento e na audiência em que se procedeu à leitura do acórdão. Entendeu, segundo disse (fls. 398) quando foi notificada da carta do arguido, que:
1 – Efectivamente a defensora não contactou o arguido na prisão, dado ter decorrido pouco tempo entre a nomeação e o julgamento e não dispor de nenhum dia para se deslocar a -----------.
2 – É verdade que os guardas prisionais impediram a defensora de falar com o arguido, alegando estarem a cumprir ordens. Todavia, a defensora esteve com ele, a sós, durante algum tempo, na sala de audiências, facto que é do conhecimento do funcionário Sr. B.. Tentei delinear com ele uma estratégia de defesa, mas em vão. Ele não me quis ouvir.
3 – A defensora recusou-se a interpor recurso, pelo seguinte: Quer os depoimentos das testemunhas de acusação, quer os fundamentos do acórdão, foram suficientemente convincentes, de modo a nada ter que alegar em sede de recurso. Apesar disso, o arguido veio, como se disse já, sete dias depois da leitura e depósito do acórdão, pedir a nomeação de um advogado para contestar a sentença... em virtude de a Sra. Dra. C. não querer recorrer e não só não teve a coragem suficiente para me defender. O Tribunal pode sempre substituir o defensor nomeado e a requerimento do arguido, por causa justa (art.º 66º, n.º 3, do C. P. Penal). O tribunal entendeu substituir a defensora, certamente por entender que havia justa causa. Mal ou bem, não há que o criticar.
Só que, mesmo entendendo haver tal justa causa de substituição, nos termos do n.º 4, do mesmo artigo 66.º, enquanto não for substituído, defensor nomeado para um acto mantém-se para os actos subsequentes do processo. Não vemos, assim, porque se há-de contar o prazo de recurso só a partir da nomeação do novo defensor.
E a única razão invocada para se considerar em tempo a interposição do recurso e, consequentemente, para o admitir. Duas situações há que poderiam, no caso, justificar o alargamento do prazo:
- uma, por interrupção, nos termos do art.º 67.º do C. P. Penal.
- outra, a que resulta do disposto no art.º 107.º, n.º 2, do C.P.Penal, segundo a qual: os actos processuais só podem ser praticados fora dos prazos estabelecidos por lei, por despacho da autoridade referida no número anterior, a requerimento do interessado e ouvidos os outros sujeitos processuais, a quem o caso respeitar, desde que se prove justo impedimento. Mas quanto à primeira, não se verifica qualquer das situações a que alude o n.º
1 do referido artigo 67.º, nem foram invocadas. Quanto à segunda, mesmo que o tribunal entendesse haver justo impedimento (e não o haveria – mesmo havendo justa causa para a substituição – uma vez que a defensora substituída continuava em plena capacidade de exercício das suas funções) nem ele foi invocado nem sequer requerido, nem tão pouco nele se fundamentou a admissão do recurso. Que o recurso é um direito constitucionalmente assegurado, ninguém contesta. Só que uma coisa é o direito de recorrer (que não foi, nem é, negado nem impedido) outra é o direito de recorrer para além do prazo legalmente estabelecido. Isto é, além de não haver, nem ser referido, qualquer fundamento legal para se considerar o alargamento do prazo, não há qualquer despacho que, tendo de se considerar transitado, pudesse justificar tal alargamento e, consequentemente, a admissão do recurso fora do prazo. E tal admissão, nos termos do art.º 414, n.º 3, do C. P. Penal, não vincula este Tribunal. Tudo isto independentemente de qualquer eventual falta de diligência no exercício das funções da defensora nomeada.
(...)».
4. Não se conformando com tal decisão, o recorrente interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, tendo apresentado o seguinte requerimento de interposição:
«1. O presente Recurso é facultado pelo disposto na alínea b) do n.º
1 do artigo 70.º da citada Lei;
2. A norma cuja interpretação em conformidade com a Constituição se pretende, no caso concreto, seja apreciada e na qual se estribou o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra é o n.º 4 do artigo 66.º do Código de Processo Penal pois,
Na particularidade em questão, após condenação por decisão em primeira instancia, do Tribunal Colectivo de Tondela, dela pretendendo recorrer para o Tribunal da Relação de Coimbra, veio o arguido ora recorrente, sete dias após o depósito do Acórdão na secretaria, dar a conhecer àquele a sua vontade
(de recorrer) aos autos e invocar que a defensora oficiosa que o patrocinava se recusava a recorrer, solicitando a substituição da defensora.
Ouvida a ilustre defensora corroborou o alegado, chegando ao ponto de justificar porque razão se recusara a recorrer, em conformidade com o que se transcreveu no Acórdão recorrido.
Em consequência, foi a então ilustre defensora substituída por justa causa, como também refere o douto Acórdão da Relação de Coimbra.
Nomeada a signatária como defensora do arguido, teve o cuidado de utilizar somente o restante prazo para interpor o recurso, isto é, contou o prazo que decorrera entre o depósito do Acórdão na Secretaria e o requerimento do arguido, e só utilizou os dias que faltavam para perfazer o prazo de 15 dias da interposição de recurso.
O Tribunal a quo (…) recebeu o recurso conforme douto despacho de fls. 437, entendendo até que, no caso concreto, se deveria contar o prazo de recurso a partir da notificação da defensora oficiosa (signatária), pois só assim se salvaguardaria o direito de recorrer do arguido que merece protecção constitucional (artigo 32.º n.º 1 da C.R.P.).
O recurso à data interposto foi-o para o Supremo Tribunal de Justiça, mas por questões de forma invocadas pelo Exmo. Senhor Procurador, acabou por se entender que era competente para dele conhecer o Tribunal da Relação de Coimbra – ainda que tal decisão merecesse voto de vencido do Mui ilustre Senhor Conselheiro D..
No Tribunal da Relação o recurso foi rejeitado porque, em síntese, se interpretou o disposto no artigo 66.º n.º 4 do C.P.P. no sentido de que:
“(…) mesmo entendendo haver justa causa de substituição, nos termos do n.º 4 do artigo 66.º, enquanto não for substituído, o defensor nomeado mantém-se para os actos subsequentes do processo”.
Não se conforma o recorrente com este entendimento, uma vez que aquela interpretação olvida, por um lado, que o recurso em processo penal tem de ser motivado, o que por si só impõe que seja redigido por defensor ou mandatário, obstaculando à sua interposição a recusa da defensora, pessoa não livremente escolhida pelo arguido e cuja relação de patrocínio perpassa sempre para efeitos de nomeação ou de substituição pelas entidades reguladoras do Apoio Judiciário; e, por outro lado, olvida também as garantias de defesa em processo crime plasmadas no artigo 32.º n.º 1 da Constituição e o princípio constitucional do acesso ao direito e aos Tribunais informador dessa norma, vertido no artigo 20.º da C.R.P., “no postulado da defesa sem lacunas e do exercício efectivo desse direito” (de defesa) no âmbito do apoio judiciário.
O arguido por si só não podia nem sabia recorrer e até lhe ser nomeado novo defensor estava desamparado e sem defesa efectiva.
3. A norma constitucional que o recorrente entende ter sido violada
é a do n.º 1 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, bem como o citado princípio de acesso ao direito e aos Tribunais.
4. A questão da inconstitucionalidade foi suscitada perante o Tribunal da Relação de Coimbra na peça processual da Resposta oferecida em cumprimento do n.º 2 do artigo 417.º do Código de Processo Penal.».
5. Após despacho de não admissão do recurso (fls. 534), o arguido reclamou, nos termos dos artigos 76.º e 77.º da Lei do Tribunal Constitucional, para este Tribunal, que, pelo Acórdão n.º 220/2003, deferiu tal reclamação, ordenando a reforma do mencionado despacho.
O recurso foi, então, admitido por despacho prolatado a fls. 544.
6. Recebido o recurso, o recorrente concluiu o seu arrazoado discursivo afirmando que:
«1. Subscrevem-se as palavras da Mui Ilustre Senhora Dra. Juíza Conselheira Relatora do Acórdão proferido nos Autos de Reclamação n.º 160/03 que cursaram por este Alto Tribunal, quando referiu que este recurso de constitucionalidade “...tem por objecto uma dada dimensão normativa do artigo
66.º, n.º 4, do Código de Processo Penal.
A questão da constitucionalidade em causa relaciona-se com a contagem do prazo a que se refere o artigo 411.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, mais precisamente com o termo a quo desse prazo, devido ao facto de a defensora nomeada que assistiu o arguido no julgamento não ter querido interpor recurso da decisão condenatória....”.
2. O ora recorrente foi condenado em processo crime pelo Tribunal Colectivo da comarca de Tondela em pena privativa da liberdade (Acórdão depositado em 21/03/2002) e de sua livre vontade optou por recorrer dessa decisão.
3. Porque a ilustre defensora oficiosa lhe fez saber que recusava interpor o competente recurso, o ora recorrente, apesar de detido em estabelecimento prisional, fez chegar aos autos pelos seus próprios meios no dia
28/03/2002 e escrito pelo seu punho um requerimento/carta inequívoco de que pretendia recorrer da decisão.
4. Ou seja, dentro do prazo de interposição do recurso manifestou o recorrente no processo a sua intenção de recorrer, importando recordar que referiu expressamente “para contestar a sentença”.
5. Cumpridos os trâmites legais de substituição de defensor por justa causa (artigo 66.º, n.º 3, do C.P.P.), no dia 16/05/2002 foi nomeada a signatária para prosseguir com a defesa do recorrente.
6. O recurso com motivação foi registado na Secretaria do Tribunal de Tondela no dia 23/05/2002,
7. A decisão recorrida entendeu que o prazo de 15 dias consignado no n.º 1 do artigo 411.º do C.P.P. já se esgotara quando deu entrada na Secretaria Judicial o requerimento (acompanhado da motivação) do recurso ordinário, porque a defesa estava assegurada pela defensora primitivamente nomeada ao arguido, cujo cargo manteve até ser substituída, como dispõe o n.º 4 do artigo 66.º do C.P.P.
8. A recusa do defensor nomeado em interpor o recurso é causa manifesta da falta de assistência que a Lei prescreve e sinónimo de desamparo ou quebra de defesa do arguido.
9. In casu, o arguido deixou de estar assistido por defensor no exacto momento em que este recusou executar a vontade daquele.
10. Não se contando o prazo a quo de interposição do recurso (n.º 1 do artigo 411.º do C.P.P.) por apelo à interpretação de que aquela recusa da primitiva defensora nomeada o susta imediatamente e que o mesmo prazo se reinicia com a substituição da defensora, há violação do disposto no n.º 1 do artigo 32.º da Lei Fundamental.
11. Em caso de abandono da defesa – ou de forma menos dolorosa, de justa causa de substituição de defensor – por recusa em interpor um recurso, não pode considerar-se assegurado o direito fundamental mantendo-se esse defensor.
12. Porque só após a “constituição” de novo defensor (...) é que o arguido (...) está em condições de poder exercer o direito, concretamente, recorrer, o prazo sustado há-de reiniciar-se com aquela “constituição”.
13. Também não repugna que o prazo se suspenda.
14. Porque as normas constitucionais têm aplicação directa, o recurso devia ter sido admitido com fundamento no facto de o recorrente não estar assistido por defensor, já que sem advogado/defensor que redija e subscreva o requerimento e motivação do recurso qualquer arguido fica impedido de recorrer.
15. A pretensão do arguido estava dependente de terceiros – o sistema de justiça/Estado, toda uma teia de actos de nomeações de defensores oficiosos – ou seja, do próprio garante dos princípios constitucionais.
Termos em que,
com o alto e douto suprimento que reconhecemos ser imprescindível, se requer seja dado provimento ao presente recurso, declarando-se inconstitucional a interpretação que a decisão recorrida fez das normas infraconstitucionais vertidas nos artigos 66.º, n.º 4 e 411.º, n.º 1, ambas do Código de Processo Penal, por violação do disposto no artigo 32.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, revogando-se tal decisão por inconstitucional e assim se fazendo a acostumada JUSTIÇA.».
7. Por sua vez, o representante do Ministério concluiu as suas contra-alegações sustentando que:
«1° - É inconstitucional, por violação do artigo 32°, n.º 1 da Lei Fundamental, a interpretação acolhida na decisão recorrida das normas contidas nos artigos
66°, n.º 4 e 411°, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal, segundo a qual o prazo de interposição do recurso se conta a partir da data do depósito de sentença na secretaria, mesmo quando haja recusa de interposição por parte do defensor nomeado, cuja substituição foi requerida e veio a ser aceite, por existência de justa causa.
2° - Termos em que deverá proceder o presente recurso.».
Corridos os devidos vistos, cumpre agora decidir.
B – A fundamentação
8. A questão decidenda é a de saber se a norma resultante da interpretação conjugada dos artigos 66.º, n.º 4, e 411.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, segundo a qual o prazo para interposição do recurso, de 15 dias, se conta ininterruptamente a partir da data do depósito da decisão na Secretaria, mesmo no caso de recusa de interposição do recurso por parte do defensor oficioso nomeado, cuja substituição foi requerida, é inconstitucional por violação do disposto nos artigos 20.º, n.º 1, 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
De per se, as normas invocadas têm a seguinte redacção:
“Artigo 66.º (Defensor nomeado)
[...]
4. Enquanto não for substituído, o defensor nomeado para um acto mantém-se para os actos subsequentes do processo.
[...]”
“Artigo 411.º (Interposição e notificação do recurso)
1. O prazo para interposição do recurso é de quinze dias e conta-se a partir da notificação da decisão ou, tratando-se de sentença, do respectivo depósito na secretaria. No caso de decisão oral reproduzida em acta, o prazo conta-se a partir da data em que tiver sido proferida, se o interessado estiver ou dever considerar-se presente.
[...]”
Por sua vez, o artigo 20.º, n.º 1, da Constituição dispõe que: “A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos”; prescrevendo o artigo 32.º, n.º 1, que:
“O processo criminal assegurará todas as garantias de defesa, incluindo o recurso”.
9. Delimitada a questão de constitucionalidade, importa atentar, tendo em conta a sua relevância no âmbito do mérito do problema decidendo, no despacho do juiz do Tribunal de Tondela que admitiu o recurso interposto pelo arguido:
“Contado desde a data do depósito do acórdão na secretaria (21-03-2002 fls.
391), o prazo de interposição do recurso já se encontrava totalmente decorrido no momento da entrada em juízo do requerimento de fls. 431 e ss. 23-05-2002) - cfr. ainda o art. 411°, n.° 1, do C.P.P. Todavia, importa sublinhar que o arguido solicitou, no dia 28-03-2002 (ou seja, no decurso do referido prazo de interposição do recurso), a substituição do defensor que lhe havia sido oficiosamente nomeado, por forma a impugnar o acórdão que o condenou, afirmando que a então defensora oficiosa se recusava a satisfazer a sua pretensão (de recorrer) - cfr. fls. 393. Deferindo-se tal requerimento do arguido, veio a ser-lhe nomeada nova defensora oficiosa, por despacho de fls. 411, notificado a esta (incluindo o acórdão proferido) no dia 16-05-2002- cfr. fls. 413 e o disposto no art. 113°, nº 2, do C.P.P. Ora, não obstante o teor do art. 66°, n.° 4, do C.P.P., afigura-se-nos que, in casu, e atentos os motivos invocados pelo arguido como fundamento do seu requerimento de substituição de defensor oficioso, se deverá contar o prazo de interposição do recurso a partir da notificação da defensora oficiosa operada no dia 16-05-2002. Só assim se salvaguardará, na nossa opinião, o direito de recorrer do arguido, o qual merece protecção constitucional (art. 32°, n.° 1, da C.R.P.). Por conseguinte, e salvo o devido respeito por opinião diversa, o recurso apresentado a fls. 431 e ss. é tempestivo e legal.
(...)”.
Tal argumentação foi contrariada pelo Tribunal da Relação de Coimbra, que, com base no artigo 66.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, entendeu que o prazo para recorrer devia contar-se ininterruptamente a partir do depósito da decisão na secretaria do tribunal recorrido. Importa, pois, começar por apurar se tal interpretação é compatível com o direito fundamental, constitucionalmente consagrado, de recorrer de decisões penais condenatórias – artigo 32.º, n.º 1, da Constituição.
10. O âmbito material de protecção recortado pelo preceito constitucional circunstancialmente em causa tem sido, por variadíssimas ocasiões, concretizado ao nível da jurisprudência deste Tribunal. Como se considerou no Acórdão deste Tribunal n.º 109/99 (publicado no Diário da República II Série, de 15 de Junho de 1999):
«(...) Este Tribunal tem sublinhado, em múltiplas ocasiões, que o processo penal de um Estado de Direito tem que ser um processo equitativo e leal (a due process of law, a fair process, a fair trial), no qual o Estado, quando faz valer o seu ius puniendi, actue com respeito pela pessoa do arguido (maxime, do seu direito de defesa), de molde, designadamente, a evitarem-se condenações injustas. A absolvição de um criminoso é preferível à condenação de um inocente. Tal como se escreveu no Acórdão n.º 434/87 (publicado no Diário da República II Série, de 23 de Janeiro de 1988), o processo penal, para além de assegurar ao Estado “a possibilidade de realizar o seu ius puniendi”, tem que oferecer aos cidadãos “as garantias necessárias para os proteger contra abusos que possam cometer-se no exercício desse poder punitivo, designadamente contra a possibilidade de uma sentença injusta”. O processo penal, para – como hoje exige, expressis verbis, a Constituição (cf. artigo 20º, n.º 4) – ser um processo equitativo, tem que assegurar todas as garantias de defesa, incluindo o recurso (cf. o artigo 32º, n.º 1, da Lei Fundamental). No Acórdão n.º 61/88 (publicado no Diário da República II Série, de 20 de Agosto de 1988) – depois de se acentuar que, no artigo 32º, n.º 1, da Constituição, “se proclama o próprio princípio da defesa” e, portanto, apela-se, inevitavelmente, para “um núcleo essencial deste” – escreveu-se, na verdade, o seguinte: A ideia geral que pode formular-se a este respeito – a ideia geral, em suma, por onde terão de aferir-se outras possíveis concretizações (judiciais) do princípio da defesa, para além das consignadas no n.º 2 do artigo 32º – será a de que o processo criminal há-de configurar-se como um due process of law, devendo considerar-se ilegítimas, por consequência, quer eventuais normas processuais, quer procedimentos aplicativos delas, que impliquem um encurtamento inadmissível das possibilidades de defesa do arguido.
(Cf. também o Acórdão n.º 207/88, publicado no Diário da República II Série, de
3 de Janeiro de 1989).
Assim, pois, como se sublinhou no Acórdão n.º 135/88 (publicado no Diário da República II série, de 8 de Setembro de 1988), se o processo deixa de ser um due process of law, um fair process, viola-se o princípio das garantias de defesa. O princípio das garantias de defesa é violado toda a vez que ao arguido se não assegura, de modo efectivo, a possibilidade de organizar a sua defesa (...). Ora, quando, designadamente, se trata de decidir se deve recorrer-se de uma sentença condenatória, sobremaneira se a pena aplicada foi de prisão, o arguido e o seu defensor têm que ponderar muito bem os prós e os contras da decisão que tomarem. E isso exige o conhecimento do teor exacto da sentença. E reclama, bem assim, um tempo suficiente para poderem reflectir e decidir, pois seria inadmissível que se vissem forçados a fazê-lo precipitadamente.
Porque isto é assim, é que este Tribunal, logo no seu Acórdão n.º 40/84
(publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 3º volume, páginas 241 e seguintes), julgou inconstitucional – justamente por violação do artigo 32º, n.º
1, da Constituição – a norma constante dos artigos 561º e 651º, § único, do Código de Processo Penal de 1929, e do artigo 20º do Decreto-Lei n.º 605/75, de
3 de Novembro, e do assento do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/79, de 28 de Junho, segundo a qual, em processo sumário, o recurso restrito à matéria de direito tinha que ser interposto logo depois da leitura da sentença (cf., no mesmo sentido, os Acórdãos nºs 17/86, 104/86, 123/86, 202/86, 210/86 e 265/86, publicados no Diário da República II Série, de 24 de Abril, 4 de Agosto, 6 de Agosto, 24 de Agosto, 5 de Novembro e 29 de Novembro, de 1986, respectivamente).»
Concretizando o mesmo quadro axiológico, em referência específica ao problema dos prazos de recurso em processo penal, afirmou-se no Acórdão n.º 41/96
(publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 33º vol.., 1996, págs.
235-245):
«O processo penal de um Estado de Direito há-de 'assegurar ao Estado a possibilidade de realizar o seu ius puniendi'; mas há-de também 'oferecer aos cidadãos as garantias necessárias para os proteger contra abusos que possam cometer-se no exercício desse poder punitivo, designadamente contra a possibilidade de uma sentença injusta' (cf. acórdão nº 434/87, publicado no Diário da República II Série, de 23 de Janeiro de 1988 e no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 371, página 160).
Tal processo há-de ser, assim, um due process of law, no sentido de que, nele, há-de o arguido poder sempre defender-se. Este, o núcleo essencial do princípio da defesa, que, no artigo 32º, nº 1, da Constituição, se proclama.
(...)
Esta cláusula constitucional - que se apresenta com um cunho reassuntivo e residual (relativamente às concretizações que já recebe nos números seguintes do artigo 32º) e que, na sua abertura, acaba por revestir-se de um carácter acentuadamente programático - contém, ao cabo e ao resto, 'um eminente conteúdo normativo imediato a que se pode recorrer directamente, em casos limite, para inconstitucionalizar certos preceitos da lei ordinária (cf. FIGUEIREDO DIAS, in A Revisão Constitucional, o Processo Penal e os Tribunais, p. 51). E contém esse conteúdo normativo imediato, justamente, porque aí se proclama o próprio princípio da defesa e, portanto, inevitavelmente, se faz apelo para o seu núcleo essencial, cuja ideia geral é a de que o processo criminal tem de assegurar sempre ao arguido a possibilidade de ele se defender (cf também o Acórdão nº
186/92, publicado no Diário da República II Série, de 18 de Setembro de 1992). O princípio das garantias de defesa - afirmou-se no já citado acórdão nº 434/87
- será violado 'toda a vez que ao arguido se não assegure, de modo efectivo, a possibilidade de organizar a sua defesa'; ou seja: sempre que se lhe não dê oportunidade real de apresentar as suas próprias razões e de valorar a sua conduta (cf. Acórdão nº 315/85, publicado no Diário da República II Série, de 12 de Abril de 1986)».
E, recentemente, no Acórdão n.º 87/03 (publicado no Diário da República II Série, de 23 de Maio de 2003), onde se retomou jurisprudência anterior:
«Como se destacou no Acórdão deste Tribunal, nº 148/2001, publicado no Diário da República II Série, de 9 de Maio de 2001, o direito ao recurso implica, naturalmente, que o recorrente tenha a possibilidade de analisar e avaliar os fundamentos da decisão recorrida, com vista ao exercício consciente, fundado e eficaz desse seu direito. E, se é verdade, consoante já tem sido várias vezes afirmado na jurisprudência constitucional (v.g., no Acórdão nº 266/93, in Diário citado, II Série, de 10 de Agosto de 1993) gozar o legislador ordinário de ampla liberdade de conformação na fixação dos prazos relativos aos recursos nos diversos ramos processuais, também é certo que se tem considerado necessário que o regime decorrente dessa liberdade conformadora não signifique a imposição de ónus de tal forma injustificados ou desproporcionados que acabem por provocar lesão da garantia de acesso à justiça e aos tribunais mediante um processo equitativo (nºs 1 e 4 do artigo 20º da CR) ou, mais especificamente, no que toca ao processo penal, das garantias de defesa afirmadas no nº 1 do artigo 32º da Constituição (assim, o recente Acórdão nº 260/2002, publicado no mesmo jornal oficial, II Série, de 24 de Julho de 2002, reiterando, aliás, a ponderação levada a efeito naquele aresto de 1993). Nesse Acórdão nº 260/2002, ao considerar-se uma interpretação normativa do nº 3 do artigo 411º citado, no sentido de rejeição do recurso sempre que a motivação não acompanhe o requerimento do recurso, ainda que a sua falta decorra de lapso objectivamente desculpável e seja sanada antes de decorrido o prazo abstractamente fixado para recorrer, previamente à subida ao tribunal de recurso, entendeu-se que semelhante interpretação não se mostra compatível nem com a regra geral de proporcionalidade, decorrente do princípio do Estado de direito consagrado no artigo 2º da Constituição, nem com a garantia constitucional do direito de defesa do arguido, constante do nº 1 do artigo 32º do mesmo texto. Ou seja, as exigências formais e procedimentais que integram a mecânica própria dos recursos hão-de compatibilizar-se, nomeadamente em sede processual criminal, com as coordenadas constitucionais que a essa matriz respeitam, não sendo de sufragar – como se escreveu no Acórdão nº 66/2001, ainda inédito – uma interpretação normativa assente em rigidez formal que, desrazoavelmente, postergue o direito de acesso à justiça e aos tribunais e as garantias constitucionais consagradas para o processo criminal.
(...) Não compete ao Tribunal Constitucional, como é evidente, sindicar a decisão recorrida em parâmetros que não sejam os resultantes da subsunção ao concreto caso de norma aplicada ou interpretada de modo constitucionalmente não conforme. Mas, nesta leitura – única que se integra no seu poder cognoscitivo, insiste-se
– sobressai uma vertente que não se compadece com os parâmetros constitucionais exigidos pelo princípio das garantias de defesa que configuram o processo criminal como um due process of law. Na verdade, e como observa, nas suas alegações, o Ministério Público, nem o recorrente nem o seu defensor tinham sequer conhecimento da data de realização da conferência, que não lhes foi comunicada. E, se pode objectar-se que sobre eles impendia o ónus de admitir a possibilidade legal de o recurso ser julgado nessa sede, já não lhes é exigível o controlo cego do hipotético dia da tomada de decisão por parte do Tribunal da Relação. Uma interpretação como a acolhida na decisão recorrida, da norma do nº 1 do artigo 411º do CPP, para além da imprevisibilidade que representa – e assim se dá resposta afirmativa à ainda pendente questão de tempestividade da suscitação – integra violação da garantia de acesso à justiça e aos tribunais e do princípio das garantias de defesa do processo criminal, com desrespeito pelo disposto nos nºs. 1 e 4 do artigo 20º e do nº 1 do artigo 32º, ambos da Constituição.».
11. Ora, apesar de a questão de constitucionalidade subjacente ao caso sub judicio não ser sobreponível às que constituíram objecto dos recursos apreciados pela jurisprudência mencionada, não se duvida de que as considerações aí tecidas sobre o direito ao recurso em processo penal, consagrado no n.º 1 do artigo 32.º da Constituição, assumem relevo manifesto para a resolução do problema decidendo.
Assim e na esteira do já sustentado por este Tribunal, a solução do presente problema passa por decidir se a norma aplicada como ratio decidendi pela decisão recorrida importa um encurtamento substancial das possibilidades de defesa do arguido, implicando, nesses termos a postergação do seu direito ao recurso e, consequentemente, a sua inconstitucionalidade material.
E, no caso sub judicio, verifica-se precisamente um tal encurtamento, ou, recte, uma preterição das garantias de defesa afectas ao recurso penal. Vejamos. A interposição de recurso depende obrigatoriamente, nos termos da legislação processual penal, da assistência de um defensor legalmente habilitado para subscrever, em nome do arguido, o requerimento de interposição e a respectiva motivação de recurso (artigo 64.º, n.º 1, al. d), do Código de Processo Penal), daí decorrendo, pois, no caso presente, uma impossibilidade de auto-representação que permitisse ao arguido agir processualmente como
“advogado” em causa própria, dispensando a intervenção de um defensor – cf., sobre a “impossibilidade de auto-representação”, o Acórdão n.º 578/01 (publicado no Diário da República II Série, de 28 de Fevereiro de 2002).
Como a então defensora do arguido se tivesse recusado a interpor recurso, o tribunal, a requerimento do arguido (entregue no decurso do prazo estabelecido no artigo 411.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, para a interposição do recurso), considerou existir justa causa para a substituição do defensor e diligenciou no sentido de ser nomeado um outro defensor que assistisse o arguido nos actos processuais subsequentes.
Perante tal quadro, subsistindo a situação de recusa de interposição do recurso, consubstanciada comprovadamente numa posição assumida pela primeira defensora, fica o arguido impossibilitado de defender-se perante um tribunal superior enquanto não contar com a assistência de um novo defensor. Daí que a contagem do prazo para recorrer não pode ser alheia – como bem se considerou no despacho de admissão de recurso – a tal vicissitude, sob pena de, como resulta da interpretação efectuada pelo Tribunal da Relação – contando-se ininterruptamente o prazo desde o depósito da decisão na secretaria –, a intervenção da nova defensora – necessária em face da factualidade referida que se espelha na razão de ser da sua nomeação para a interposição do recurso –, sempre ficar prejudicada por extemporaneidade, e, com isso, frustrada a interposição do recurso clamado pelo arguido.
É certo que o artigo 66.º, n.º 4 do Código de Processo Penal afirma que “enquanto não for substituído, o defensor nomeado para um acto mantém-se para os actos subsequentes do processo”, e, nesse linha, dir-se-á que “a defensora substituída continuava em plena capacidade de exercício das suas funções”. Contudo, se tal norma não impede que um recurso seja interposto pelo defensor a substituir, já uma sua interpretação que implique a continuidade do defensor apenas num plano estritamente formal[ista], que – irrelevando a recusa de interposição de recurso (que constituiu, no fundo, a causa justa para a substituição judicialmente outorgada) e o facto de o arguido estar/continuar a ser assistido por um defensor que não pratica o acto (relativamente ao qual o arguido apenas pode intervir pela interposta pessoa do defensor) que acabou por estar na origem do seu afastamento – não atenda à especificidade da situação concretamente em causa no que tange à efectiva possibilidade conferida ao arguido para recorrer da decisão condenatória, redundará num sacrifício das garantias de defesa que a Lei Fundamental reconhece aos arguidos em processo crime. Assim, e reconhecendo-se que a ratio ou a intentio normativa desse preceito tem um cunho marcadamente garantístico – evitar uma situação de “vazio” na assistência ao arguido –, afigura-se assaz problemático lançar mão de uma interpretação normativa que, assentando no cumprimento literal do preceito, desconsidere o facto de o arguido estar efectivamente – ou, recte, na realidade
– sem defesa e impedido de recorrer, e determine a contagem ininterrupta do prazo para a interposição de recurso em termos de, quando a decisão é notificada ao novo defensor – nomeado, volte a dizer-se, porque o anterior se recusou a recorrer – já não haver possibilidade de sindicar o decidido pela 1.ª instância.
Uma visão apegada estreitamente a uma exegese da lei – e, por isso, desconsideradora da sua particular teleo[nomo]logia, maxime, no que tange com a matriz axiológica inerente às disposições constitucionais pertinentes –, em matéria de rejeição do recurso por extemporaneidade – e cuja referência se justifica atendendo ao paralelismo retórico-argumentativo que sustentou a decisão recorrida em confronto com o artigo 32.º, n.º 1, da Constituição – foi recentemente sindicada por este Tribunal (Acórdão n.º 39/04, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt/jurisprudencia.htm) que, num caso algo tangencial com o presente, apreciou a “a interpretação da norma do n.º 1 do artigo 420º do Código de Processo Penal, segundo a qual é extemporâneo o recurso interposto pelo novo defensor do arguido dentro do prazo reiniciado a partir da sua nomeação, depois de ter sido proferido em 1ª instância despacho a declarar interrompido o anterior prazo de interposição de recurso, devido ao pedido de escusa do anterior patrono, deduzido na sua pendência”.
Considerou-se nesse aresto, sindicando a decisão que entendeu não existir fundamento para a interrupção do prazo em decurso e assim revogou o despacho que a determinou, fundamentado com base na substituição do defensor a requerimento deste, que:
«(...) num processo em que a interrupção do prazo do recurso, declarada por decisão do tribunal a quo, seja considerada inválida pelo tribunal ad quem, mesmo quando os restantes intervenientes processuais se conformaram com tal interpretação, nenhum deles reagindo contra esse despacho, o direito de recurso antes reconhecido por decisão judicial em certos termos – num certo prazo que restava – vem a ser praticamente inutilizado pelo tribunal ad quem, sendo frustrada a confiança legítima depositada pelo recorrente na anterior decisão do tribunal a quo, contra a qual nenhum outro sujeito processual reagiu. Na verdade, no presente caso, como salienta o Ministério Público nas contra-alegações produzidas no Tribunal Constitucional, a decisão da 1ª instância veio determinar a “concessão ao arguido de uma verdadeira prorrogação ou extensão do prazo para exercer o direito de recurso da decisão condenatória contra si proferida – assentando, naturalmente, toda a sua estratégia processual subsequente na consolidação de tal situação processual, decorrente de ‘a parte contrária’ se ter conformado com tal decisão. Ora, como é manifesto, a oficiosa revogação de tal despacho – apesar da autonomia do incidente em que o mesmo se inseriu – afecta a segurança e confiança no fluir da causa e põe em crise o exercício do direito ao recurso, ínsito no princípio constitucional das garantias de defesa”. Considerando a projecção da decisão recorrida, com este teor revogatório, no iter processual e na posição do arguido/recorrente, tem de reconhecer-se, na verdade, que um processo assim configurado, em que a garantia do recurso é deste modo postergada, contra a confiança legitimamente fundada em decisão anterior não impugnada que determinara a prorrogação do prazo, não pode ser considerado um due process of law, e não se conforma com as garantias de defesa que a Constituição assegura em processo penal – designadamente, com o reconhecimento, entre estas, do direito ao recurso. Assim, no contexto de aplicação dessa norma ao caso dos autos, o que se tem de concluir é que a interpretação do artigo 420º, n.º 1, do Código de Processo Penal em apreciação, ao levar a considerar como intempestivo o recurso interposto dentro do prazo fixado por despacho do tribunal a quo, apesar de este não ter sido impugnado, afronta directamente o n.º 1 do artigo 32º da Constituição da República, ofende os princípios da segurança e certeza jurídicas, e retira ao processo aqui em causa as características de um due process of law (e, dir-se-á ainda, viola também, indirectamente, o n.º 3 deste artigo 32º, na medida em que, por essa via de interrupção do prazo e revogação da interrupção, se evita que o arguido seja efectivamente assistido por um defensor em todos os actos do processo – questão que, porém, se pode deixar aqui em aberto, tendo-se alcançado a conclusão de que a norma é inconstitucional por violação do artigo 32º, n.º 1, da Constituição). A norma em questão, ao possibilitar a revogação oficiosa de uma decisão judicial, não impugnada, que havia tido como efeito a extensão do prazo para o arguido exercer o direito de recurso da decisão condenatória, afecta, aliás, também, de forma intolerável, os princípios da segurança e da confiança jurídica, ínsitos no princípio do Estado de Direito consagrado no artigo 2º da Constituição da República. Tal dimensão normativa é, pois, inconstitucional (...)».
12. Contra os argumentos já expendidos não pode afirmar-se que a decisão de interpor recurso é, relativamente ao arguido, res inter alios acta. Pois, como se afirma no recente Acórdão n.º 36/04 (disponível em
www.tribunalconstitucional.pt/jurisprudencia.htm), “mesmo a circunstância de a decisão de interpor recurso poder depender mais do defensor constituído do que de uma ponderação pessoal do arguido não é, pois, obstáculo a que este, ao qual
é comunicada a sentença, decida, conjuntamente com aquele, se deve ser interposto o respectivo recurso, em inteira liberdade, sem precipitações e sem estar pressionado por qualquer urgência” – decisão que, em absoluto, não depende exclusivamente da voluntas do defensor, como, de resto, se infere do artigo
63.º, n.º 2, do Código de Processo Penal: “o arguido pode retirar eficácia ao acto realizado em seu nome pelo defensor, desde que o faça por declaração expressa anterior a decisão relativa àquele acto” – recorde-se igualmente o que se sustentou no referido Acórdão n.º 109/99: “(...) tendo em conta que a decisão sobre a eventual utilidade ou conveniência de interpor recurso, em regra, depende mais do conselho do defensor do que, propriamente, de uma ponderação pessoal do arguido, há que concluir que este pode decidir se deve ou não defender-se, interpondo, se quiser, (...) o respectivo recurso. E pode tomar essa decisão com inteira liberdade, sem precipitações e sem estar pressionado por qualquer urgência”. Ora, havendo recusa de um (concreto) defensor em interpor recurso de uma decisão
– e não esquecendo que “o defensor exerce os direitos que a lei reconhece ao arguido” (artigo 63.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), não se vê por que deixar o arguido à mercê de tal posição – que, inclusivé, poderá configurar-se completamente infundamentada. Em tal circunstância e sindicada a existência de justa causa, a tutela constitucional das efectivas garantias de defesa dos arguidos não só deve abranger a possibilidade de o arguido ser assistido por um novo defensor, como também permitir que este possa, ainda em tempo, praticar, em concreto, o acto – interposição do recurso – que deu causa à justa substituição.
13. Pelo que, a norma resultante da interpretação conjugada dos artigos 66.º, n.º 4, e 411.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, segundo a qual o prazo para interposição do recurso, de 15 dias, se conta ininterruptamente a partir da data do depósito da decisão na Secretaria, mesmo no caso de recusa de interposição do recurso por parte do defensor oficioso nomeado, cuja substituição foi requerida,
é inconstitucional por violação do disposto no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
14. No que concerne especificamente ao direito de acesso ao direito e aos tribunais – artigo 20.º, n.º 1, da Constituição –, parâmetro constitucional igualmente invocado no requerimento de interposição do recurso para este Tribunal, é de concluir que a norma aplicada pelo Tribunal da Relação de Coimbra enferma igualmente de inconstitucionalidade, na medida em que, como supra se referiu, desconsiderando a recusa por parte da defensora substituída de interpor recurso e carecendo o arguido de defensor para o interpor, determina a contagem ininterrupta do prazo, impossibilitando o recurso ao Tribunal da Relação como via de sindicância da decisão condenatória proferida em 1.ª instância.
C – A decisão
15. Pelo exposto, os juízes do Tribunal Constitucional, acordam em: a) Julgar inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 20.º, n.º
1 e 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, a norma resultante da interpretação conjugada dos artigos 66.º, n.º 4, e 411.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, segundo a qual o prazo para interposição do recurso, de 15 dias, se conta ininterruptamente a partir da data do depósito da decisão na Secretaria, mesmo no caso de recusa de interposição do recurso por parte do defensor oficioso nomeado, cuja substituição foi requerida, o que foi deferido por o tribunal a quo considerar existir justa causa para essa substituição; b) E, em consequência, ordenar a reforma da decisão recorrida em acordo com o decidido sobre a presente questão de constitucionalidade.
Sem custas, por não serem devidas.
Lisboa, 17 de Março de 2004
Benjamim Rodrigues Maria Fernanda Palma Paulo Mota Pinto Mário José de Araújo Torres Rui Manuel Moura Ramos