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Proc. nº 660/2000
2ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam em Conferência no Tribunal Constitucional
1. F requereu, junto do Tribunal Administrativo do Círculo do Porto, a intimação do Presidente da Câmara Municipal do Porto para emitir o alvará de licença de construção de uma moradia, uma vez que o respectivo pedido de licença de construção foi tacitamente deferido, no dia 23 de Setembro de
1999, e que, depois de ter sido requerida a emissão, o alvará não foi emitido.
O Tribunal Administrativo do Círculo do Porto, por decisão de 20 de Janeiro de 2000, considerou que o pedido de intimação formulado 'deixou de ter qualquer suporte factual ou jurídico, já que, o acto tácito de deferimento que o suportava deixou de vigorar na ordem jurídica', em virtude do proferimento do acto expresso de indeferimento, de 21 de Dezembro de 1999, com fundamento em violação das disposições legais reguladoras da edificação urbana. O tribunal entendeu que o acto expresso de indeferimento, proferido a 21 de Dezembro de
1999, revogou o deferimento tácito, formado em 23 de Setembro de 1999, nos termos dos artigos 141º, nºs 1 e 2, do Código do Procedimento Administrativo, e
28º, nº 1, alínea d), e 47º, da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos. Em consequência, a instância foi julgada extinta por impossibilidade superveniente, nos termos do artigo 287º, alínea e), do Código de Processo Civil.
2. F interpôs recurso da decisão de 20 de Janeiro de 2000 para a Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo. Nas respectivas alegações, insurgindo-se contra a eficácia revogatória atribuída ao acto expresso de indeferimento, de 21 de Dezembro de 1999, e contra a decisão que concluiu pela impossibilidade superveniente da lide, o recorrente sustentou que o referido acto expresso, uma vez que não foi notificado, não seria eficaz, dado os artigos 268º, nº 3, da Constituição, e
66º e 132º do Código do Procedimento Administrativo exigirem a notificação como condição integrativa da eficácia dos actos administrativos extintivos de direitos. O recorrente afirmou também que o tribunal violou o princípio do contraditório, ao extinguir a instância, sem dar oportunidade ao recorrente de se pronunciar sobre o fundamento de tal decisão. Por último, o recorrente concluiu que o tribunal violou vários preceitos infraconstitucionais e o artigo 268º, nº 3, da Constituição.
O Supremo Tribunal Administrativo, por acórdão de 4 de Maio de 2000, considerou que o acto expresso de indeferimento do pedido de licenciamento de construção da moradia, datado de 21 de Dezembro de 1999, não poderia ter fundamentado a impossibilidade superveniente da instância onde havia sido requerida a intimação para passagem do alvará. Nessa medida, concedeu provimento ao recurso, na parte em que impugnava a decisão que julgou extinta a instância.
Contudo, e porque se tratava de processo urgente, o Supremo Tribunal Administrativo decidiu apreciar o mérito do pedido de intimação, pois os autos forneciam todos os elementos necessários para o efeito. Assim, o Supremo Tribunal Administrativo entendeu que o acto expresso de 21 de Dezembro de 1999 revogou o acto tácito formado em 23 de Setembro de 1999, não podendo tal acto
'deixar de ser valorado em sede de apreciação da providência requerida pelo recorrente (cf. o artigo 663º do Código de Processo Civil)'. Consequentemente, o tribunal concluiu pelo indeferimento do pedido de intimação, uma vez que a situação do particular se encontra definida pelo acto de 21 de Dezembro de 1999 que indeferiu o pedido do licenciamento de construção.
3. F pediu a reforma do acórdão de 4 de Maio de 2000. No respectivo requerimento, o reclamante insurgiu-se contra a revogação do acto tácito, sustentando a inconstitucionalidade do artigo 106º do Código do Procedimento Administrativo. O reclamante sustentou, também, a inconstitucio-nalidade dos artigos 62º, nº 1, e 21º, nº 1, do Decreto-Lei nº 445/91, de 20 de Novembro, quando interpretados no sentido de a mera invocação da revogação implícita de deferimento tácito de um pedido de licenciamento de obras provar a improcedência do pedido de intimação, por violação do artigo 20º, nº 4, da Constituição. O reclamante sustentou, por último, que 'ao admitir que uma pretensa revogação implícita não notificada é susceptível de distorcer os direitos constituídos por um deferimento tácito anterior, o tribunal reclamado atribui ao artigo 132º, nº
1, do Código do Procedimento Administrativo um sentido normativo desconforme ao preceituado no artigo 268º, nº 3, da Constituição'.
O Supremo Tribunal Administrativo, por acórdão de 4 de Outubro de
2000, considerou que a decisão reclamada não fez aplicação das normas dos artigos 106º do Código do Procedimento Administrativo e 62º, nº 1, e 21º, nº 1, do Decreto-Lei nº 445/91, de 20 de Novembro. Por outro lado, o tribunal entendeu que a inconstitucionalidade do artigo 132º do Código do Procedimento Administrativo não foi tempestivamente suscitada durante o processo. Consequentemente, o Supremo Tribunal Administrativo não tomou conhecimento das questões de constitucionalidade invocadas.
4. F interpôs recurso para o Tribunal Constitucional , ao abrigo dos artigos 280º, nº 1, alínea b), da Constituição, e 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade à Constituição dos artigos 62º, nº 1, e 21º, nº 1, do Decreto-Lei nº 445/91, de 20 de Novembro, e 132º do Código do Procedimento Administrativo.
O recorrente sustentou, sem, porém, precisar com rigor a dimensão normativa impugnada, que tais preceitos foram aplicados implicitamente 'com base numa interpretação que lhe atribui um significado normativo contrário, respectivamente, ao princípio segundo o qual a decisão judicial deve resultar de um processo equitativo, consagrado no artigo 20º, nº 4, in fine, e ao estabelecido no artigo 268º, nº 3, ambos da Constituição'.
A Relatora proferiu decisão sumária, ao abrigo do artigo 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional, no sentido do não conhecimento do objecto do recurso, em virtude de o recorrente não ter suscitado de modo adequado durante o processo as questões de constitucionalidade normativa que pretende ver apreciadas pelo Tribunal Constitucional.
5. F reclamou para a Conferência da decisão sumária, ao abrigo do artigo 78º-A, nº 3, da Lei do Tribunal Constitucional, sustentando, em síntese, que a reclamação a que se refere o artigo 669º, nº 2, do Código de Processo Civil ainda consubstancia um momento processualmente adequado para suscitar, pela primeira vez, a questão de constitucionalidade normativa; e que não teve oportunidade processual de suscitar a questão de constitucionalidade normativa nas alegações de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo, uma vez que então apenas estava em causa a impugnação de uma 'decisão meramente processual', que fez aplicação do artigo 287º, alínea e), do Código de Processo Civil.
6. Cumpre decidir.
7. Os preceitos impugnados têm a seguinte redacção: Artigo 132º Eficácia dos actos constitutivos de deveres ou encargos
1 - Os actos que constituam deveres ou encargos para os particulares e não estão sujeitos a publicação começam a produzir efeitos a partir da sua notificação aos destinatários, ou de outra forma de conhecimento oficial pelos mesmos, ou do começo de execução do acto.
(...) Artigo 21º Alvará de licença de construção
(...)
4 - A recusa de emissão do alvará só pode basear-se na inexistência ou na caducidade da licença ou no incumprimento das formalidades previstas nos números anteriores.
(...)
Artigo 62º Intimação judicial para um comportamento
1 - Nos casos de deferimento, expresso ou tácito, de pedidos de licenciamento, perante recusa injustificada ou falta de emissão do alvará respectivo, pode o interessado pedir ao tribunal administrativo do círculo a intimação da autoridade competente para proceder à referida emissão.
(...)
8. O reclamante sustenta que o requerimento de reforma do acórdão a que se refere o artigo 669º, nº 2, alínea a), do Código de Processo Civil, constitui momento processualmente adequado para suscitar pela primeira vez a questão de constitucionalidade normativa que pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional.
O artigo 669º, nº 2, alínea a), do Código de Processo Civil, prevê a possibilidade de reforma da sentença quando tenha ocorrido manifesto lapso do juiz na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos.
O reclamante sustenta que nesse momento ainda não se esgotou o poder judicial do juiz.
Como se referiu no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 171/2000, de 22 de Março, 'a alínea a) do nº 2 do artigo 669 do Código de Processo Civil prevê a reforma da sentença nas situações de erro manifesto de julgamento de questões de direito, erro esse que terá, portanto, de ser evidente, patente e virtualmente incontrovertível, para que possa fundamentar um pedido de reforma'
(cf., também, Carlos Francisco Oliveira Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, 1999, p. 444).
O reclamante, no momento em que requereu a reforma do acórdão de 4 de Maio de 2000, pretendeu que o Supremo Tribunal Administrativo apreciasse questões de constitucionalidade normativa relativas a normas que constituem o fundamento do acórdão então impugnado. Não estando em causa nessa reclamação a apreciação da conformidade à Constituição do próprio artigo 669º, nº 2, do Código de Processo Civil, mas sim normas relativas à questão de fundo já decidida pelo acórdão reclamado, verifica-se que no momento em que as questões de constitucionalidade normativa foram suscitadas isso já não seria possível por não se tratar, no caso, de uma situação particularmente evidente de lapso ou erro (como se considerou, em situação idêntica, no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 171/2000), nos termos do artigo 666º, nº 1, do Código de Processo Civil.
Na verdade, o reclamante pretendeu, com o pedido de reforma, uma reapreciação da questão de fundo, agora à luz de novos argumentos ainda não apresentados (argumentos de constitucionalidade). Porém, não é essa a finalidade do pedido de reforma a que se refere o artigo 669º, nº 2, alínea a) do Código de Processo Civil. Isso mesmo, de resto, considerou o Supremo Tribunal Administrativo, no acórdão de 4 de Outubro de 2000, quando concluiu, após a respectiva demonstração, que 'não nos encontramos, assim, perante a situação tipificada na alínea a) do nº 2 do artigo 669º do Código de Processo Civil'.
Há pois que concluir agora que no momento em que o reclamante suscitou pela primeira vez as questões de constitucionalidade normativa que pretende ver apreciadas já se havia esgotado o poder jurisdicional do tribunal a quo, pelo que improcede a presente reclamação nesta parte.
9. O reclamante sustenta, no entanto, que antes da prolação do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 4 de Maio de 2000, não teve oportunidade processual para suscitar as questões de constitucionalidade normativa relativas às normas fundamento da decisão de fundo, uma vez que então só estava em causa a impugnação de uma 'decisão meramente processual', que havia feito aplicação da norma contida no artigo 287º, alínea e), do Código de Processo Civil.
Contudo, não foi isso que o ora reclamante considerou quando apresentou as alegações de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo.
Com efeito, e como claramente se demonstrou no ponto 7 da Decisão Sumária reclamada (ponto não impugnado na presente reclamação), o reclamante nas alegações apresentadas discutiu a questão de mérito, apresentando o seu entendimento acerca do sentido em que as normas impugnadas deviam ser aplicadas, isto é, acerca dos efeitos no processo da invocação da revogação do deferimento tácito. Não suscitou, porém, aí qualquer questão de constitucionalidade normativa relativa a tais normas, ou seja, relativamente às normas que fundamentaram a decisão na parte em que considerou que tinha havido revogação do deferimento tácito.
O reclamante, ao debater a questão de mérito nas alegações apresentadas, habilitou o Supremo Tribunal Administrativo a conhecer da questão de fundo de imediato, o que efectivamente veio a acontecer, nos termos do artigo
753º do Código de Processo Civil. Note-se que o reclamante sustentou que o Supremo Tribunal Administrativo, ao não convidar as partes a produzir alegações, ao abrigo do nº 2 do artigo 753º do Código de Processo Civil, omitiu um acto prescrito pela lei, omissão essa que, alegadamente, originaria a nulidade da sentença, nos termos do artigo 201º do mesmo Código. Porém, o reclamante nunca suscitou qualquer questão de constitucionalidade normativa relativa a tais normas (nem mesmo no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade).
Verifica-se, pois, que o reclamante debateu a questão de fundo nas alegações de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo, tendo então oportunidade para suscitar as questões de constitucionalidade normativa que entendesse (é a própria actuação processual do reclamante que o demonstra). Não cumpriu tal
ónus, apenas suscitando tais questões num momento em que já se havia esgotado o poder jurisdicional do tribunal a quo (sublinhe-se, de novo, que não são questionadas nestes autos, na perspectiva da constitucionalidade, as normas processuais que permitiram ao Supremo Tribunal Admimistrativo apreciar a questão de fundo, mas apenas as normas relativas à própria questão de fundo). Há pois que concluir que as questões de constitucionalidade normativa que o reclamante pretende ver apreciadas não foram suscitadas durante o processo, quando o podiam ter sido, pelo que improcede a presente reclamação.
10. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação, confirmando, consequentemente, a Decisão Sumária reclamada.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 15 UCs.
Lisboa, 28 de Março de 2001 Maria Fernanda Palma Bravo Serra José Manuel Cardoso da Costa