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Proc. n.º 39/04
1.ª Secção Relator: Cons. Rui Moura Ramos
I – A CAUSA
1. A. recorre para o Tribunal Constitucional do Acórdão de 4/12/2003, do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), que confirmou a sua condenação pelo Tribunal de Relação de Coimbra – que por sua vez confirmara Acórdão condenatório do colectivo da Vara Mista de Coimbra – na pena de 5 anos e 6 meses de prisão pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo
21.º, n.º 1, do DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro.
A sujeição do recorrente a julgamento decorreu de decisão instrutória (a de fls.
501/514) na qual, para além da pronúncia deste e de mais três arguidos, foi desatendida a suscitação, pelo aqui recorrente, da nulidade de diversas intercepções telefónicas ocorridas na fase de investigação.
Posteriormente, o Tribunal Colectivo, em sede de julgamento, ao proferir o Acórdão condenatório de fls. 602/614, referiu o seguinte, relativamente à motivação de facto dessa mesma decisão:
“O tribunal baseou a sua convicção: Quanto aos factos provados: Em relação aos arguidos (...) e A.:
Nas declarações em audiência do arguido (...) “confessando” ter sido
“interceptado” por elementos da PJ, no dia 7-7-2001, na portagem da Mealhada, ocasião em que, acompanhado e conduzido pelo arguido A., vinham ambos de Lisboa no veículo deste; “confessando” que tinha ido a Lisboa adquirir 2,444kg que foram encontrados em casa dos seus pais; “confessando” que destinava todo o haxixe (5,987 kg e 2,444 kg) à venda; e “confessando” o modo como conheceu o arguido A. e os contactos com o mesmo. No depoimento de (...) confirmando a venda ao arguido (...) do haxixe encontrado em casa dos pais deste. Nas declarações em audiência do arguido A. “confessando” ter sido “interceptado” por elementos da PJ, no dia 7-7-2001, na portagem da Mealhada, ocasião em que, conduzindo o seu veículo e acompanhado pelo arguido (...) vinham ambos de Lisboa no seu veículo. A propósito de se considerar como provado que o arguido A. sabia que trazia/transportava no seu automóvel os 5,987 kg. de haxixe, baseou-se o tribunal, exclusivamente, nas regras da experiência e na sua “livre convicção”
(art. 127.º do CPP). Entendeu o tribunal ser da experiência comum que um transporte de cerca de 8 kg de haxixe não é uma tarefa solitária; sendo os arguidos amigos, tendo-se inclusivamente conhecido num E.P. (quando ambos cumpriam pena por tráfico) e não tendo sido dada uma explicação plausível para a vinda do arguido A. à zona do país onde ambos foram interceptados pela PJ, é convicção do tribunal que o arguido A. sabia perfeitamente que trazia e transportava no seu automóvel os citados 5,987 kg de haxixe. O tribunal não ignora que, ultimamente, o uso das regras da experiência e o recurso à livre convicção do tribunal vêm sendo objecto de apertado controlo e censura por parte da 2.ª instância. Admite-se mesmo que se possa andar a laborar em erro sobre o uso e limites quer das regras da experiência quer da “livre convicção do tribunal”, porém, esta é a interpretação que, em sede de prova, entendemos ser nosso dever fazer dos factos conhecidos (...). Quanto aos factos não provados: Resultaram, como sempre, de sobre os mesmos não haver sido produzida qualquer prova e/ou de a produzida ter sido reputada insuficiente e/ou inválida na convicção do tribunal. Não se considerou pois a prova resultante das escutas telefónicas, uma vez que, a nosso ver e salvo o devido respeito por opinião diversa, as mesmas enfermam de invalidade/nulidade que inviabiliza a sua utilização como meio de prova.
É certo que tais “vícios”, tendo sido suscitados, pelos arguidos (...) e A., antes do encerramento do debate instrutório (fls. 475 e ss. – Vol. III) foram objecto de decisão (fls. 501 e ss. – Vol. III) no processo. Acontece, porém, que o arguido A. não se conformou com tal decisão, que desatendeu as nulidades suscitadas, estando pois a mesma pendente de recurso que foi admitido a subir imediatamente e em separado. Temos pois que, tendo sido proferida nos autos decisão que versou e incidiu sobre a validade das escutas telefónicas, nos está vedado proferir decisão expressa sobre a mesma questão. Todavia, uma vez que tal decisão não transitou em julgado, não estávamos – quando, em sede de deliberação para a sentença, apreciámos a validade da prova produzida – vinculados a tal decisão pese embora o efeito meramente devolutivo do recurso. Foi justamente o que aconteceu, tendo-se, na deliberação para sentença, considerado que a prova resultante das escutas telefónicas enferma de invalidade/nulidade que inviabiliza a sua utilização como meio de prova. Invalidade/nulidade que, repete-se, não se irá declarar em decisão autónoma (uma vez que tal questão foi já autonomamente apreciada e está sob recurso), mas que não pode deixar de repercutir-se, no caso e concretamente, na não valoração da prova produzida resultante das escutas telefónicas. Efectuado tal esclarecimento, cumpre explicar o motivo por que foi deliberado que as escutas telefónicas enfermam de invalidade/nulidade que inviabilizam a sua utilização como meio de prova.”
A este respeito explicitou o Tribunal que tais intercepções telefónicas eram, no seu entender, nulas por inobservância dos respectivos requisitos de legitimação, designadamente à luz da jurisprudência do Tribunal Constitucional consubstanciada no Acórdão n.º 407/97 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 37.º vol., pág. 245; Diário da República – II Série, de 18/7/1997). Em função deste entendimento, concluiu o Tribunal de Primeira Instância, nos seguintes termos:
“Entendeu-se (...), em conclusão, que foram violados os artigos 187.º, n.º 1 e
188.º, n.º 1 do CPP, violações que, face ao disposto nos artigos 189.º e 126.º, n.º 1, ambos do CPP e 32.º, n.º 6 da CRP, acarretam a proibição de prova, não tendo, por conseguinte, a prova obtida e produzida pelas escutas sido por nós utilizada para a fixação dos factos provados. Do mesmo modo, não foi utilizada a prova cuja obtenção dependeu das escutas
(artigo 122.º, n.º 1, parte final do CPP), o mesmo é dizer, a apreensão de droga efectuada no dia 3/7/2001, cerca das 21,30 horas, na Portagem da Auto-Estrada da Mealhada. Não utilização que é o corolário do «efeito à distância» da proibição de valorar as escutas telefónicas.”
1.1. Inconformado, recorreu desta decisão o arguido A. para o Tribunal da Relação de Coimbra. Neste recurso viria a retomar a questão das escutas declaradas nulas, defendendo que da aplicação das “regras do
«efeito-à-distância», ínsito no artigo 122.º do CPP”, decorreria a conclusão segundo a qual “jamais se poderia ter valorado os depoimentos dos arguidos A. e
(...), pois os mesmos estão contaminados em consequência da nulidade das intercepções telefónicas”, pois “o corolário do «efeito-à-distância» dá-se no momento da existência/identificação destes dois arguidos” e, “sem estes dois arguidos não existiria viagem/apreensão/declarações” (citações retiradas das alegações de fls. 630).
Decidindo o recurso, que, como se referiu, confirmou a decisão do Tribunal de 1ª
instância, consignou o Tribunal da Relação, quanto aos efeitos da declaração de
nulidade das escutas:
“Declaradas nulas, e sem contestação, as escutas telefónicas, quer o recorrente que se tirem daí efeitos e consequências, como seja declarar nulos os seguintes factos:
- a existência dos arguidos (...) e A.
- a sua identificação
- a viagem destes dois arguidos até Coimbra
- a apreensão da “droga” no veículo conduzido pelo recorrente A., por considerar que tais factos resultaram das escutas telefónicas. Transcreveu-se acima a fundamentação da matéria de facto, na sentença. Aí o Tribunal afastou expressamente a prova recolhida pelas escutas telefónicas, apoiando-se nos dados objectivos recolhidos na audiência, como sejam, e foi dado realce, a confissão dos arguidos Não ficam dúvidas que tais dados objectivos, contidos na fundamentação da matéria de facto, conferem com o constante da transcrição. E, assim, terá consequentemente de se concluir que a base factual que objectivamente o Tribunal recolheu para formar a sua convicção resulta da prova produzida em audiência.
O acto de julgar é do Tribunal, e tal acto tem a sua essência na operação intelectual da formação da convicção. Tal operação não é pura e simplesmente lógico-dedutiva, mas, nos próprios termos da lei, parte de dados objectivos para uma formação lógico-intuitiva. Como ensina Figueiredo Dias (in Lições de Direito Processual Penal, 135 e ss.) na formação da convicção haverá que ter em conta o seguinte:
- a recolha de elementos – dados objectivos – sobre a existência ou inexistência dos factos e situações que relevam para a sentença, dá-se com a produção da prova em audiência;
- sobre esses dados recai a apreciação do Tribunal – que é livre, art.º 127.º do Código de Processo Penal – mas não arbitrária, porque motivada e controlável, condicionada pelo princípio da persecução da verdade material;
- a liberdade da convicção, aproxima-se da intimidade, no sentido de que o conhecimento ou apreensão dos factos e dos acontecimentos não é absoluto, mas tem como primeira limitação a capacidade do conhecimento humano, e portanto, como a lei faz reflectir, segundo as regras da experiência humana;
- assim, a convicção assenta na verdade prático-jurídica, mas pessoal, porque assume papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis- como a intuição. Esta operação intelectual não é uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis). Para a operação intelectual contribuem regras, impostas por lei, como sejam as da experiência a percepção da personalidade do depoente (impondo-se por tal a imediação e a oralidade) a da dúvida inultrapassável (conduzindo ao princípio in dubio pro reo). A lei impõe princípios instrumentais e princípios estruturais para formar a convicção. O princípio da oralidade, com os seus corolários da imediação e publicidade da audiência, é instrumental relativamente ao modo de assunção das provas, mas com estreita ligação com o dever de investigação da verdade jurídico-prática e com o da liberdade de convicção; com efeito, só a partir da oralidade e imediação pode o juiz perceber os dados não objectiváveis atinentes com a valoração da prova. A Constituição da República Portuguesa impõe a publicidade da audiência (art.º
206.º) e, consequentemente, o Código Processo Penal pune com a nulidade a falta de publicidade (art.º 321.º); publicidade essa que se estende a todo o processo
– a partir da decisão instrutória ou quando a instrução já não possa ser requerida (art.º 86.º), querendo-se que o público assista (art.º 86.º/a); que a comunicação social intervenha com a narração ou reprodução dos actos (art.º
86.º/b)); que se consulte os autos, se obtenha cópias, extractos e certidões
(art.º 86.º/c)). Há um controlo comunitário, quer da comunidade jurídica quer da social, para que se dissipem dúvidas quanto à independência e imparcialidade. A oralidade da audiência, que não significa que não se passem a escrito os autos, mas que os intervenientes estejam fisicamente perante o Tribunal (art.º
96.º do Código de Processo Penal), permite ao Tribunal aperceber-se dos traços do depoimento, denunciadores da isenção, imparcialidade e certeza que se revelam por gestos, comoções e emoções, da voz, p. ex.. A imediação que vem definida como a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de tal modo que, em conjugação com a oralidade, se obtenha uma percepção própria dos dados que haverão de ser a base da decisão.
É pela imediação, também chamado de princípio subjectivo, que se vincula o juiz
à percepção à utilização à valoração e credibilidade da prova. A censura quanto à forma de formação da convicção do Tribunal não pode consequentemente assentar de forma simplista no ataque da fase final da formação dessa convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção. Doutra forma, seria uma inversão da posição dos personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar, pela convicção dos que esperam a decisão. Mas, pretende o recorrente dizer que estes dados objectivos colhidos em audiência, maxime a própria identificação do recorrente, não seria possível sem as escutas; é o extremar do efeito à distância.
- o processo inicia-se com uma denúncia, anónima;
- foram realizadas diligências de investigação, independentes das escutas, bem como a audição de testemunhas e interrogatórios de suspeitos. Ora, se se torna difícil destacar o que resultou directamente das escutas, o certo é que, não se pode levar tão longe o efeito da invalidade, como pretende o recorrente.”
E acrescentou a este respeito o Tribunal da Relação de Coimbra:
“A teoria da árvore envenenada (fruit of poisonous tree doctrine) não tem a interpretação que pretende o recorrente. O art.º 122.º/1 do Código de Processo Penal parece sugerir a generalização da proibição de valoração a todas as provas inquinadas pelo veneno do método proibido; porém, no dizer de Costa Andrade
(Sobre as proibições de prova..., 314 e ss.) haverá que ter em conta a singularidade do caso concreto. Eis que, aqui chegados, haverá que mitigar o «efeito-à-distância» com os princípios gerais da aquisição das provas. Portanto,
- não é proibido o que resulta da mera constatação da realidade emergente – assim se das escutas resulta a identificação dos arguidos o
«efeito-à-distância» não impede a aquisição dessa identificação, se os identificados se apresentarem como tal; isto é, não pode ser o arguido directamente identificado através da produção ilegítima de prova ou de prova ilegitimamente produzida, porém se a identificação do arguido foi possível, também por actos investigatórios legítimos (depoimentos, buscas, interrogatórios...) mesmo que encontrados depois das escutas não é ilegítima a aquisição deste dado; do mesmo modo quanto a outros factos (a viagem destes dois arguidos até Coimbra, a apreensão da “droga” no veículo conduzido pelo recorrente A.),
- o «efeito-à-distância» não faz comunicar a invalidade aos dados conclusivos - como sejam para a fixação do nexo de causalidade, para a imputação objectiva, para os processos hipotéticos de investigação (no dizer de Costa Andrade, ob. cit. 316), para a obtenção de provas mediatas (a normal alegação de que sem a violação da lei, a polícia não teria descoberto as testemunhas, implica a demonstração);
- o «efeito-à-distância» não contamina a prova “coisificada” persistente – como sejam os objectos do crime encontrados (o automóvel, a droga), o acto de apreensão da droga fica contaminado, mas a existência da droga não pode ser ignorada;
- o «efeito-à-distância» não atinge a confissão livre do arguido - assim, se a confissão não resulta directamente das escutas, não pode deixar de ser valorada a confissão do arguido em audiência, porque liberta de toda a pressão psicológica. Confrontando a sentença recorrida com estes princípios verifica-se que o Tribunal a quo não descurou a sua análise e consequente declaração de invalidade, que aqui não podem ser postas em causa, (...)”
1.2. É na sequência desta decisão que aparece o recurso para o STJ, referindo o recorrente nas respectivas alegações que:
“O (...) Acórdão interpretou o artigo 122.º, n.º 1 do CPP, com um sentido restritivo, na medida em que valorou meios de prova produzidos por prova nula e ainda quando não determina o regresso dos autos à fase em que foi arguida a nulidade declarada. Este entendimento colide com o estatuído no artigo 32.º da CRP inquinando aquela norma, quando assim interpretada, de inconstitucionalidade.”
O STJ – culminando alguns desenvolvimentos processuais que não apresentam relevância para o presente recurso – viria a apreciar o Acórdão da Relação de Coimbra, rejeitando, por manifesta improcedência, o recurso dele interposto.
Quanto à questão da nulidade das escutas, consignou o Supremo Tribunal:
“Sufraga-se, integralmente, a posição da Relação. Na verdade, o que acontece, e está em absoluto expresso na fundamentação da decisão, é que o Tribunal para dar por provada a matéria de facto sub juditio, não se socorreu das alegadas intercepções telefónicas declaradas nulas.
É certo que o recorrente discorda de que o Tribunal pudesse ter alcançado a sua convicção sem ter lançado mão dessas escutas; mas trata-se tão só da convicção do recorrente e isto porque, repete-se, clara e expressamente, a motivação de facto do acórdão recorrido o exclui; e essa mesma motivação perfila-se lógica, racional (no respeitante aos arguidos condenados), e fazendo ainda uso das regras da experiência comum; não se trata de uma decisão a que se tenha chegado por força da mera convicção subjectiva sem apoio na materialidade das provas de que o Tribunal identificou e de que se socorreu. Inexiste, consequentemente, face ao conteúdo expresso da motivação da decisão, qualquer interpretação restritiva do artigo 122.º, n.º 1 do CPP, como alega o recorrente e, consequentemente, a aduzida inconstitucionalidade por violação do artigo 32.º da CRP.”
1.3. Desta decisão vem interposto o presente recurso de constitucionalidade, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b) da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), fazendo-o o recorrente nos seguintes termos:
“(...) o douto Acórdão interpretou o artigo 122.º, n.º 1 do CPP com o sentido de que a proibição de valoração de todas as provas inquinadas pelo veneno do método proibido não se estende a todas as provas, ou seja que o efeito à distância não pode ser levado tão longe. O douto Acórdão entende que apesar de a identidade dos arguidos e a sua existência processual, a apreensão de droga e outros elementos terem resultado ou sido obtidos através de meio de prova inválido, tal não obsta a que o Tribunal forme a sua convicção com base nesses elementos de prova. Entendemos que a referida norma deve ser interpretada sem restrições, nomeadamente quando prejudiciais ao arguido, e com o alcance de que todos os elementos resultantes do meio de obtenção de prova, declarado nulo, não podem ser valorados pelo Tribunal. A interpretação que foi dada pelo douto Acórdão, de que se recorre, viola o estatuído nos artigos 32.º, n.º 1 e 34.º da CRP, sendo aquela norma inconstitucional”.
Chegado o processo a este Tribunal, proferiu o ora relator o seguinte despacho:
“Nos termos do n.º 1 do artigo 75.º-A da LTC, convida-se o recorrente a indicar qual a exacta e precisa interpretação normativa do artigo 122.º, n.º 1 do CPP cuja inconstitucionalidade pretende questionar, independentemente da descrição das concretas vicissitudes processuais ocorridas”.
Respondendo a este convite veio o recorrente dizer o seguinte:
“O douto acórdão a quo interpretou o nº 1 do artigo 122º do CPP com um sentido limitativo. Com efeito, foi então entendido que o alcance do
«efeito-à-distância» não poderia ser levado tão longe. Entende o recorrente(...) que esta norma não pode ser interpretada com um sentido limitativo. A melhor interpretação da disposição citada é aquela que considera que o acto declarado nulo afecta todos os actos subsequentes desde que se verifique, entre aqueles e estes, o respectivo nexo causal. Designadamente se das escutas resulta a identificação e o aparecimento processual dos arguidos no processo, o depoimento destes está contaminado (e) o mesmo se diga relativamente aos objectos apreendidos. O douto acórdão interpretou esta norma com o sentido de que os objectos apreendidos resultam do conhecimento através da prova proibida mas valora esses objectos. Ora, entendemos que nenhum elemento pode ser valorado desde que resulte do acto declarado nulo. Não pode pois limitar-se o «efeito-à-distância» ao sabor do caso concreto, ou seja, valorarem-se os elementos resultantes de actos declarados nulos. Entendemos que a norma mencionada deverá interpretar-se com o sentido de que os elementos resultantes de um acto declarado nulo não podem, em qualquer caso, valorar-se.”
Prosseguindo o recurso foi fixado prazo para a produção de alegações, apresentando o recorrente as suas, que rematou com as seguintes conclusões:
“1 - É inquestionável a aplicação da tese do efeito à distância, sendo necessário, no caso concreto, verificar da existência dos seus pressupostos.
2 - As ingerências nas telecomunicações representam intromissões intoleráveis na privacidade das pessoas.
3 – Do que resulta ser intolerável a valoração das provas obtidas com violação dos artigos 126º e 187º, do CPP.
4 – O Estado não pode ser “receptador” de material probatório cuja fonte se encontra inquinada.
5 – Ora, o douto acórdão interpretou a norma do artigo 122º com o sentido de que a contaminação dos elementos de prova não pode ser levada tão longe, como o recorrente pretende.
6 - Designadamente, e não obstante a existência processual dos arguidos bem como a droga apreendida resultar das escutas telefónicas, o certo é que o seu depoimento bem como a existência do produto estupefaciente não estão contaminados, sendo portanto, de valorar.
7 – Esta interpretação é materialmente inconstitucional por contender com o estatuído nos artigos 32º, nº 8 e 34º, nº 1 da CRP.
8 – Com efeito estas normas constitucionais visam proteger e preservar a dignidade, a autonomia e a liberdade das pessoas, vigiar a superioridade do Estado e, nessa medida, impedir que o processo penal se alimente da “receptação” do material resultante da prova contaminada.”
O Exmo. Magistrado do Ministério Público, respondeu defendendo a delimitação do objecto do recurso ao artigo 122º, nº 1 do CPP, interpretado no sentido de declarada a nulidade/invalidade de intercepções telefónicas realizadas na fase de inquérito, não se incluírem nos actos destas dependentes ou por elas afectados, declarações de natureza confessória prestadas pelos arguidos em audiência de julgamento. Finalmente, pugnando pela improcedência do recurso, formulou a seguinte conclusão:
“Não obstante ter sido declarada nula a prova obtida através do recurso a escutas telefónicas, não configura interpretação restritiva da norma do nº 1 do artigo 122º do Código de Processo Penal, a valoração da prova produzida em julgamento – daquela não dependente – designadamente, as declarações produzidas por parte dos arguidos de forma livre e com sujeição ao contraditório”.
II – FUNDAMENTAÇÃO
2. Importa, antes de mais, fixar com precisão qual a questão de inconstitucionalidade normativa que constitui objecto do presente recurso. Com o convite formulado ao recorrente, a fls. 921, procurou-se obter a concretização, exacta tanto quanto possível, da questão de constitucionalidade que, como se referiu, aparecia no requerimento de interposição do recurso muito ligada à descrição de aspectos de natureza fáctica. Compreende o Tribunal que estando em causa uma suscitação envolvendo uma norma com importantes desenvolvimentos interpretativos levados a cabo pelo aplicador, a indicação da questão de constitucionalidade possa apresentar algumas especificidades, quando se trata de a condensar numa fórmula sintética. Não obstante, através da resposta de fls.
925/926, ficou claro estar em causa – defendida pelo recorrente por oposição ao entendimento da decisão recorrida – uma interpretação do artigo 122.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (CPP), em matéria de «efeito-à-distância» com um sentido muito amplo, afectando todos os actos subsequentes à prova inválida, desde que se verifique entre aqueles e esta um qualquer nexo causal. Este nexo, e consequente invalidade, ocorrerá, na visão do recorrente, mesmo relativamente a quaisquer declarações confessórias posteriores ao meio de prova não utilizável.
Refere-se o recurso, portanto, ao artigo 122º., nº. 1, do CPP. Porém, a desconformidade constitucional invocada assume, como se disse, uma específica modalidade: aquela em que o recurso (neste caso a suscitação durante o processo da questão de inconstitucionalidade) se reporta, não à norma tal qual ela se expressa numa óbvia interpretação declarativa [na terminologia clássica a que
“não (...) faz mais que declarar o sentido linguístico coincidente com o pensar legislativo”, Francesco Ferrara, Interpretação e Aplicação das Leis (antecedido de Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis, Manuel de Andrade), 2.ª ed., Coimbra 1963, pág. 147], mas em que a questão de inconstitucionalidade se refere antes “à interpretação ou à dimensão perfilhadas quanto a certa norma jurídica na decisão impugnada” (Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, 2.ª ed., Lisboa 1994, pág. 327).
Assim sendo, a indagação da questão de inconstitucionalidade pressupõe, instrumentalmente, a determinação de qual a interpretação da norma que foi objecto de arguição de desconformidade constitucional e qual o sentido com que essa mesma norma foi aplicada pela decisão recorrida.
2.1. Constituiu ponto de partida, que introduziu neste processo essa questão, a decisão do Tribunal Colectivo, constante do Acórdão de fls. 602/614, que declarou nula a prova produzida na fase de inquérito, traduzida na intercepção de várias comunicações telefónicas. Esta declaração conduziu o Colectivo, em sede de fundamentação de facto da sua decisão condenatória, a descartar como material probatório susceptível de ser utilizado, o conteúdo dessas escutas telefónicas.
A este respeito convém sublinhar que o Colectivo da Vara Mista de Coimbra retirou, sempre por referência ao n.º 1 do artigo 122.º do CPP, a consequência prática dessa declaração de nulidade, seleccionando que outro material probatório carreado para o processo seria susceptível de utilização, designadamente por não ter decorrido, imediata ou mediatamente (num determinado sentido), da prova consubstanciada nas escutas (v. o trecho do Acórdão de 1.ª Instância de fls. 611 e respectivas notas 9 e 10, confrontando-o com a motivação dos factos considerados provados indicados no mesmo Acórdão a fls. 604 v.º/605 v.º).
Esta selecção do material probatório apto e não apto para utilização, em função da nulidade das intercepções telefónicas, foi feita com base num juízo assente em duas vertentes: uma, que podemos qualificar como fáctica, toma os acontecimentos históricos (os factos) em si (no dia tal aconteceu isto...) e relaciona-os, quanto às circunstâncias em que apareceram no processo, com as escutas; uma outra vertente, que basicamente se traduz numa operação de subsunção de factos ao direito, e que relaciona esses factos com a norma (mais precisamente com determinado entendimento, previamente fixado, desta) constante do artigo 122.º, n.º 1 do CPP. Da conjugação destas duas vertentes decorre a determinação de quais o factos – e estes aparecem no processo sempre por mediação das provas – que podem ser usados (ou seja, considerados provados) em função desse entendimento da norma aplicável. Adiantando o que com a subsequente exposição se tornará mais claro, diremos que ao presente recurso de constitucionalidade interessa fundamentalmente a segunda vertente do processo argumentativo da decisão, concretamente onde esta lê (interpreta) o artigo
122.º, n.º 1 do CPP, à luz do conceito de «efeito-à-distância» (v. Acórdão da
1.ª Instância no trecho de fls. 661 e v.º).
Prosseguindo, entretanto, com a análise do desenvolvimento do processo que conduziu à decisão recorrida, verifica-se que o recorrente, na sequência do Acórdão condenatório de 1.ª Instância, suscitou, logo nas respectivas alegações de recurso para a Relação (fls. 625/643), aquilo que designou por “contaminação dos meios de prova por via da nulidade das escutas telefónicas”, defendendo a este respeito um entendimento do «efeito-à-distância» que excluiria a valoração, enquanto prova legítima, da confissão dos arguidos em julgamento e da própria existência da droga apreendida.
O Tribunal da Relação (Acórdãos de fls. 705/723 e 777/806), sufragando o entendimento subjacente à decisão da 1.ª Instância, considerou que o
«efeito-à-distância», decorrente da nulidade das escutas, deve ser entendido (ou seja deve ser entendido o artigo 122.º, n.º 1 do CPP) com a sobreposição interpretativa seguinte: em primeiro lugar a nulidade (o «efeito-à-distância») não proíbe a utilização do que resultar da mera constatação da realidade emergente; em segundo lugar a invalidade das escutas não se transmite aos dados conclusivos; em terceiro lugar a referida nulidade não contamina a prova
“coisificada” persistente; finalmente, em quarto lugar, a nulidade das escutas não atinge a confissão livre do arguido (utilizaram-se os exactos termos da decisão da Relação, constantes de fls. 802).
Ora, é esta a interpretação do artigo 122.º, n.º 1 do CPP, que assumidamente funcionou como ratio decidendi na confirmação da condenação em 1.ª Instância e que o recorrente construiu, por sua vez, como questão de inconstitucionalidade no recurso para o STJ, invocando que tal interpretação confere à norma em causa um sentido que qualifica de restritivo e não conforme ao disposto nos artigos
32.º e 34º, ambos da CRP.
O STJ, na decisão aqui recorrida, assume como inteiramente correcta a interpretação do artigo 122.º, n.º 1 do CPP, subjacente ao Acórdão do Tribunal da Relação (“sufraga-se, integralmente, a posição da Relação”) e considera, expressamente (v. fls. 903), que tal entendimento não ofende as disposições constitucionais indicadas pelo recorrente.
É esta, ou seja a interpretação do artigo 122.º, n.º 1 do CPP, quanto ao
«efeito-à-distância» que o Tribunal da Relação expõe a fls. 802, a questão de inconstitucionalidade que emerge à partida como objecto do presente recurso.
Importa ainda ter presente que a intervenção deste Tribunal terá que ver tão só com a questão da conformidade constitucional da referida interpretação do artigo 122.º, n.º 1 do CPP, subjacente à decisão da Relação e sufragada pelo Supremo Tribunal de Justiça. Fora do âmbito deste recurso estão, assim, os aspectos fácticos da decisão, como seja determinar se os factos concretos utilizados para condenar o recorrente foram, ou não, resultado das intercepções telefónicas, ou se esses factos, abstraindo das escutas, seriam suficientes para a mesma condenação. Todos estes aspectos têm que ver, exclusivamente, com a apreciação dos factos e/ou com o julgamento da própria decisão, estando, de qualquer forma, fora do âmbito do controlo normativo de constitucionalidade que compete a este Tribunal.
Com efeito, o objecto do recurso em sede de fiscalização concreta, “é sempre a constitucionalidade (...) de uma norma, não a constitucionalidade (...) de uma decisão judicial”, fixando-se o respectivo objecto, não “em função do decidido pelo juiz a quo – não é a decisão que se critica - mas sim em razão das normas ou dos princípios constitucionais nela aplicados ou desaplicados”. Assim sendo, neste tipo de recursos, não estão em causa “nem a matéria de facto, nem a sua subsunção nas normas infraconstitucionais” (Jorge de Miranda, Manual de Direito Constitucional – inconstitucionalidade e garantia da Constituição, Tomo VI, Coimbra, 2001, pág. 201). Ou, por outras palavras, “não cabe (neste) âmbito a averiguação e a determinação dos factos da causa principal (a questão a apreciar pelo Tribunal Constitucional é uma pura «questão de direito»), nem o juízo sobre a relevância da norma na hipótese que tais factos integram” (José Manuel Cardoso da Costa, A Jurisdição Constitucional em Portugal, 2ªed., Coimbra, 1992, pág.
53).
Excluído, assim, o julgamento, no âmbito deste recurso de constitucionalidade, dos pressupostos de facto da decisão e da própria correspondência entre os factos e o direito enunciado como aplicável, resta a este Tribunal apreciar a norma na interpretação em que o Acórdão recorrido a aplicou e verificar se esta, nessas condições, é compatível com os preceitos constitucionais invocados.
A interpretação em causa na decisão do STJ – que, como se disse, tomou por adequada a construção interpretativa adoptada (a fls. 802) pelo Tribunal da Relação – permite-nos, numa primeira aproximação ao objecto do recurso, reportá-lo à norma do artigo 122º, nº1 do CPP, entendida esta como autorizando, face à nulidade/invalidade de intercepções telefónicas realizadas, a utilização de outras provas, distintas das escutas e a elas subsquentes, quando tais provas: a) resultarem da mera constatação da realidade emergente; b) se referirem a dados conclusivos; c) se traduzirem em prova «coisificada» persistente; d) se traduzirem na confissão livre do arguido.
Este último elemento, a confissão, apresenta aqui especial relevância, permitindo-nos caracterizar com rigor o objecto do recurso. Com efeito, tanto o Acórdão da 1ª Instância como o da Relação fazem especial menção
à confissão do aqui recorrente e de um co-arguido enquanto provas não afectadas pela invalidade das escutas. A este respeito veja-se, aliás, a posição assumida pelo recorrente na respectiva motivação do recurso interposto para o STJ, na parte onde se lê: “Não pode agora outro elemento de prova – a confissão dos arguidos – dar existência àquilo que não existiria”(...); “É que os arguidos prestaram um depoimento confessório no pressuposto da validade do elemento de prova – escutas telefónicas – (...) caso soubessem da sua invalidade o seu depoimento poderia ter sido outro” (transcrição das conclusões 7ª, 9ª e 10ª da motivação do recurso para o STJ a fls. 747 e 748).
Tem isto que ver com o trecho da decisão da 1ª instância que funcionou como fundamentação de facto da condenação, que foi inserido no Acórdão dando cumprimento ao disposto no nº 2 do artigo 364º do CPP, e onde se lê que o Tribunal se baseou:
“Nas declarações em audiência do arguido (...) “confessando” ter sido
“interceptado” por elementos da PJ, no dia 7-7-2001, na portagem da Mealhada, ocasião em que, acompanhado e conduzido pelo arguido A., vinham ambos de Lisboa no veículo deste; “confessando” que tinha ido a Lisboa adquirir 2,444kg que foram encontrados em casa dos seus pais; “confessando” que destinava todo o haxixe (5,987 kg e 2,444 kg) à venda; e “confessando” o modo como conheceu o arguido A. e os contactos com o mesmo. No depoimento de (...) confirmando a venda ao arguido (...) do haxixe encontrado em casa dos pais deste. Nas declarações em audiência do arguido A. “confessando” ter sido “interceptado” por elementos da PJ, no dia 7-7-2001, na portagem da Mealhada, ocasião em que, conduzindo o seu veículo e acompanhado pelo arguido (...), vinham ambos de Lisboa no seu veículo.”
Ou seja, assentou a condenação, fundamentalmente, nas declarações em audiência do aqui recorrente e, principalmente, de um co-arguido, declarações que o Tribunal qualificou como confessórias. Assim sendo, podemos em termos definitivos afirmar, reduzindo o objecto deste recurso ao que verdadeiramente apresenta relevância, que está em causa a norma do artigo 122º nº 1 do CPP, entendida como autorizando, face à nulidade/invalidade de intercepções telefónicas realizadas, a utilização de outras provas, distintas das escutas e a elas subsquentes, quando tais provas se traduzam nas declarações dos próprios arguidos, designadamente quando tais declarações sejam confessórias. Note-se que para além disto o Tribunal de 1ª Instância baseou-se, desta feita por referência ao artigo 127º do CPP, nas “regras da experiência” e na sua “livre convicção”. Porém, este específico aspecto da fundamentação do Acórdão foi deixado pelo recorrente fora do objecto do recurso, pelo que não nos ocupará.
Assente isto, é tempo de passar à analise da questão de constitucionalidade suscitada.
2.2. A concretização do direito penal material, a averiguação da existência de um crime e a determinação das consequências jurídicas deste, alcançam-se através de um procedimento (o processo penal) que podemos definir como “um complexo de actos juridicamente ordenado de tratamento e obtenção de informação que se estrutura e desenvolve sob a responsabilidade de titulares de poderes públicos e serve para a preparação da tomada de decisões”, com a particularidade de aqui se tratar de uma decisão jurisdicional, sendo que estes
– os procedimentos – constituem “sistemas de interacção entre os poderes públicos e os cidadãos (actuando) basicamente como modelos de ordenação” ( definição geral de procedimento de Gomes Canotilho, Tópicos de um Curso de Mestrado sobre Direitos Fundamentais, Procedimento, Processo e Organização, no Boletim da Faculdade de Direito, Vol. LXVI, Coimbra, 1990, pág. 163; relativamente à «recepção» do conceito de procedimento relativamente à acção penal, v. José Manuel Damião da Cunha, O Caso Julgado Parcial – Questão da Culpabilidade e Questão da Sanção num Processo de Natureza Acusatória, Porto,
2002, pág. 277). Neste complexo de actos ocorrem óbvios relacionamentos sequenciais que levam a que se coloque, no que aqui nos interessa, a questão da projecção de algum valor negativo ocorrido em qualquer desses actos, nos outros actos que lhe são subsequentes. Trata-se, enfim, de determinar se, e em que medida, esse valor negativo afecta o que cronologicamente aparece depois, abrangendo-o com a mesma consequência jurídica decorrente do valor negativo detectado no acto anterior.
Esta possibilidade de projecção de efeitos assume particular importância no caso das proibições de prova. Com efeito, quando retrospectivamente se diz, encarando globalmente certo processo crime, que determinada prova não é valida, retirando-se como consequência que a mesma, embora tenha existido, deve ser tratada como se não existisse (não tivesse existido), há que determinar complementarmente – é esse, como veremos, o sentido do artigo 122º do CPP - se essa inexistência abrange ou não actos processuais
(factos ou provas) posteriores que apresentem alguma conexão com o que foi considerado inexistente. Saber qual o tipo de ligação que deve conduzir à projecção da supressão do acto anterior no acto posterior, traduz aquilo que doutrinariamente se qualifica como «efeito-à-distância», indagando este “da comunicabilidade ou não da proibição de valoração aos meios secundários de prova tornados possíveis à custa de meios ou métodos proibidos de prova” (Manuel da Costa Andrade, Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, Coimbra 1992, pág. 61).
2.2.1. A Constituição estabelece no artigo 32º, nº1, que “O processo criminal assegura todas as garantias de defesa (…)”. Esta afirmação – à qual acresce, desde a revisão constitucional de 1997, a relativa ao direito ao recurso – expressa, como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, uma “cláusula geral englobadora de todas as garantias que [mesmo não incluídas nos diversos números do artigo 32º] hajam de decorrer do princípio da protecção global e completa dos direitos de defesa do arguido em processo criminal” abrangendo “ indubitavelmente todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação ” (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed. Coimbra, 1993, pág. 202).
Só esta afirmação genérica contida no artigo 32º., nº. 1 da CRP, bastaria para que entre esses direitos de defesa se considerasse incluído o de ver excluídas do processo (tornadas ineficazes, inválidas ou nulas) as próprias provas ilegais reportadas a valores constitucionalmente relevantes. Assim, o nº. 8 do mesmo artigo 32º., mais não faz do que sublinhar e tornar indiscutível esse direito à exclusão, enquanto dimensão específica e indissociável do direito a um processo penal com todas as garantias de defesa. Não teria sentido, estando em causa valores (os elencados no artigo 32º., nº. 8) a que a Constituição confere tal importância, que a prova que os atingisse e fosse obtida com inobservância das regras que permitem a compressão desses mesmos valores, produzisse consequências processuais que ficassem aquém da nulidade dessas provas.
Tem nesta matéria plena validade o «princípio da formalidade do processo», nos termos em que este é caracterizado por Claus Roxin
(Strafverfahrensrecht, 25ª. ed., Munique, 1995, pág. 2):
“As limitações às faculdades de intervenção do Estado, que devem proteger o inocente face a perseguições injustas e à compressão excessiva da respectiva liberdade, e que devem, também, garantir ao culpado a salvaguarda dos seus direitos de defesa, caracterizam o «princípio da formalidade» do processo
[Justizförmigkeit des Verfahrens]. Ainda que a sentença consiga estabelecer a culpabilidade do arguido, o julgamento só será conforme ao ordenamento processual (princípio da formalidade), quando nenhuma garantia processual haja sido violada em desfavor do acusado. Num processo penal próprio de um Estado de direito, o princípio da formalidade não tem menor valor que a condenação do culpado e o restabelecimento da paz jurídica.”
A questão que para além desta se coloca, e com a qual este processo nos confronta, é a de saber se essas (“todas as”) “garantias de defesa” não abrangem, também, numa leitura conjugada dos nºs 1 e 8 do artigo 32º e com base no «princípio da formalidade» referido, para além da invalidade da própria prova nula, a afirmação do «efeito-à-distância» dessas provas inválidas sobre outras provas válidas. Note-se que estas últimas, relativamente às quais o possível
«efeito-à-distância» se coloca, constituem, quando isoladamente consideradas, meios legais de prova, aptos, em princípio, a ser utilizados no processo. A sua supressão, quando ocorra, constitui assim uma extensão da ilegalidade do meio de prova anterior.
Já antes do Código de Processo Penal actual, Figueiredo Dias, afirmava a inteira vigência entre nós da “doutrina que os alemães cognominaram do Fernwirkung des Beweisverbots e os americanos do fruit of the poisonous tree” (Para Uma reforma Global do Processo Penal Português, in Para uma Nova Justiça Penal, Coimbra,
1983, pág. 208). A este propósito importa ter presente que a afirmação contida no Acórdão nº 213/94 deste Tribunal (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 27º vol., pág. 571) segundo a qual não teria acolhimento “no actual direito português a falada doutrina da eficácia longínqua ou do «efeito-à-distância»
(Fernwirkung) ou a doutrina do «fruto da árvore envenenada»”, deve ser entendida, exclusivamente, no contexto em causa nessa decisão, que era o do depoimento indirecto ou de «ouvir dizer» (v. a este respeito Costa Andrade, Sobre as Proibições..., cit., págs. 316/317), não sendo passível de extrapolação a outras situações, designadamente quando estejam em causa escutas telefónicas
(ibidem).
Pode, assim, afirmar-se com segurança que o sentido de uma norma prescrevendo que a invalidade do acto nulo se estende aos que deste dependerem ou que ele possa afectar (artigo 122º, nº 1 do CPP) é, desde logo, o de abrir caminho à ponderação que – como adiante se verá - subjaz à chamada doutrina dos «frutos proibidos». Isto, cotejado com a apontada amplitude das garantias de defesa contidas no artigo 32º da CRP, leva a que este Tribunal considere que, efectivamente, certas situações de «efeito-à-distância» não deixam de constituir uma das dimensões garantísticas do processo criminal, permitindo verificar se o nexo naturalístico que, caso a caso, se considere existir entre a prova inválida e a prova posterior é, também ele, um nexo de antijuridicidade que fundamente o
«efeito-à-distância», ou se, pelo contrário, existe na prova subsequente um tal grau de autonomia relativamente à primeira que a destaque substancialmente daquela.
Outro sentido não tem, aliás, a doutrina dos «frutos da árvore venenosa», desde a sua formulação no direito norte-americano, que não seja aquele que exige a ponderação do caso concreto determinando a existência, ou não, desse nexo de antijuridicidade entre a prova proibida e a prova subsequente que exige para esta última o mesmo tratamento jurídico conferido àquela.
2.2.2 É universalmente conhecida a metáfora empregue pelo Juiz do Supremo Tribunal Federal dos Estados Unidos, Felix Frankfurter, na decisão Nardone v. United States [308 U.S. 338 (1939), esta e as outras decisões do Supremo Tribunal dos Estados Unidos adiante referidas, podem ser consultadas em: http://supct.law.cornell.edu/supct/search ], «Fruit of the poisonous tree»
(«Fruto da árvore venenosa») podendo, através dela, dizer-se constituir um meio de prova inválido a «árvore venenosa», importando determinar se a prova que aparece depois constitui «fruto» daquela «árvore» estando, por isso, também ele
– o «fruto» –, «envenenado».
Poucas máximas conseguem sintetizar como esta de uma forma tão sugestiva aquilo que pretendem expressar. Por trás dela encontramos no entanto uma realidade extremamente complexa que vem fornecendo critérios de decisão, desde o seu aparecimento na ordem jurídica norte-americana, passando pelo seu desenvolvimento jurisprudencial pelo Supremo Tribunal Federal, durante um período de mais de oitenta anos, e culminando com os importantes reflexos que tem noutros sistemas jurídicos, designadamente nos europeus continentais. Estamos, portanto, face a uma realidade com uma teorização suficientemente desenvolvida, para que se possa mesmo falar na formação - assentes na doutrina dos «frutos de uma árvore venenosa» - de verdadeiros modelos de decisão. Veja-se, aliás, como o recorrente pretendeu, citando expressamente esta doutrina
(por exemplo a fls. 742), retirar o sentido que entende ser o adequado para o artigo 122º, nº 1 do CPP, e como o Tribunal da Relação de Coimbra, também citando a mesma doutrina (v. fls. 801/802), construiu o seu entendimento interpretativo relativamente ao «efeito – à – distância».
2.2.3. A afirmação de um claro efeito reflexo de uma prova proibida sobre uma prova, em si mesma legal, mas derivada daquela, aparece pela primeira vez na decisão de 1920 do Supremo Tribunal norte-americano, Silverthorne Lumber Co. v. United States (251 U.S. 385), redigida pelo Juiz Oliver Wendell Holmes, onde, aliás, a metáfora da «árvore venenosa» não é ainda empregue. Estava em causa nesta decisão uma apreensão reconhecidamente ilegal de determinados livros de contabilidade de uma sociedade, e os factos conhecidos através destes documentos, ilegalmente obtidos, serviram de base a uma ulterior incriminação dos dois sócios dessa sociedade (“O Governo, embora repudie e condene a apreensão ilegal, pretende prevalecer-se do direito de utilizar o conhecimento adquirido por esse meio que, de outra forma, não teria obtido”). Os termos precisos através dos quais o Tribunal expressou o seu entendimento, são fundamentais para uma correcta caracterização da doutrina então estabelecida:
“O sentido profundo de um preceito proibindo a aquisição de prova de determinada forma não é apenas que essa prova, assim adquirida, não seja usada em tribunal naquelas circunstâncias. É, também, que ela não seja, pura e simplesmente, utilizada em quaisquer circunstâncias. Claro que isto não significa que os factos resultantes dessa prova se tornem sagrados e inacessíveis. Se o conhecimento deles é adquirido por uma fonte independente [independent source] podem ser provados, como quaisquer outros, mas o conhecimento adquirido através do procedimento ilegal do Governo não pode ser utilizado” (251 U. S. pág. 392).
Significa isto que o que se considerou ilegítimo foi o uso indirecto (para além do uso directo, que é pressuposto pela proibição) do procedimento probatório ilegal. O Tribunal, porém, não excluiu em Silverthorne que esses mesmos factos pudessem ser obtidos no processo, desde que essa aquisição proviesse de uma
«fonte independente», ou seja, não se traduzisse numa atribuição de eficácia indirecta à prova proibida.
Este mesmo entendimento foi fixado, de forma mais clara, na decisão, já anteriormente referida, do Supreme Court onde a metáfora «fruto de uma árvore venenosa» foi pela primeira vez empregue (a segunda decisão Nardone de 1939). Nesta, estando em causa uma intercepção telefónica ilegal [ que como tal havia sido anteriormente declarada na primeira decisão Nardone de 1937 (302 U. S.
379)], o Juiz Frankfurter, citando como precedente a sentença Silverthorne, e concretamente o trecho desta acima transcrito, afirmou o seguinte:
“Na prática esta afirmação genérica [referia-se à citação extraída de Silverthorne] coloca problemas de grande complexidade. Através de uma argumentação sofisticada é possível demonstrar uma conexão causal entre a informação obtida através da escuta ilegal e a prova do Governo [acusação]. Não obstante, tal conexão pode ser tão atenuada que, por razões de bom senso, dissipe essa mácula [dissipate the taint]. Uma forma simples de lidar com esta situação – que cumpra o § 605 [a norma de que resultava a ilegalidade da escuta], mas cumpra, igualmente, os fins da lei penal – é deixá-la nas mãos de juízes experientes. O ónus recai, obviamente sobre o acusado, que deve provar, primeiro, que a escuta foi ilegal. Uma vez estabelecido isto – como aconteceu neste caso –, o juiz de julgamento deve dar a oportunidade ao acusado de provar que parte substancial da acusação constitui «fruto de uma árvore venenosa» [the case against him was a fruit of the poisonous tree]. Isto deixa aberta uma ampla oportunidade de a acusação convencer o tribunal de julgamento de que a sua prova tem uma origem autónoma [independent origin]” (308 U. S. pág. 341).
O contexto destas decisões foi o da afirmação da «regra de exclusão»
(exclusionary rule) segundo a qual a prova obtida pela acusação através da violação dos direitos constitucionais do acusado, não pode ser usada contra este
[esta regra foi afirmada pelo Supremo Tribunal, pela primeira vez, em 1914 na decisão Weeks v. United States (232 U.S. 383), no contexto da Federação e foi estendida aos Estados em 1961 com Mapp v. Ohio (367 U.S. 643); v. sobre a exclusionary rule: Kermit L. Hall, The Oxford Companion to the Supreme Court of the United States, Nova Iorque/Oxford, 1992, pág. 264; Leonard W. Levy, Exclusionary Rule, in Criminal Justice and the Supreme Court, Nova Iorque, 1990, pág. 147].
Trata-se, assim, com a doutrina do «fruto da árvore venenosa», de estender a
«regra de exclusão» às provas reflexas. Porém, esta projecção de invalidade aparece, desde os primórdios da formulação da doutrina, matizada por uma série de circunstâncias em que a prova derivada (derivada porque de alguma forma relacionada com a prova inválida) pode, não obstante, ser aceite como prova válida.
Através de uma longa elaboração jurisprudencial o Supremo Tribunal norte-americano pôde particularizar as circunstâncias em que uma prova reflexa deve ser excluída do efeito próprio da doutrina do «fruto da árvore venenosa». São fundamentalmente três esses grupos de circunstâncias: a chamada limitação da
«fonte independente» (independent source limitation); a limitação da «descoberta inevitável» (inevitable discovery limitation); e a limitação da «mácula (nódoa) dissipada» (purged taint limitation) (v. Jerold H. Israel e Wayne R. LaFave, Criminal Procedure – Constitutional Limitations, 6ªed. St. Paul, Minnesota,
2001, págs. 291/301).
A primeira situação, a «fonte independente», remonta à decisão Silverthorn, onde o Juiz Holmes excepcionou, expressamente, a existência de uma independent source corroborando os conhecimentos que também eram derivados da prova proibida; tal fonte possibilitaria a aceitação daqueles conhecimentos. Existem diversas decisões do Supreme Court afirmando esta limitação (v. Israel/LaFave, ob. cit., págs. 294/297), a título de exemplo cita-se Segura v. United States de 1983 (468 U.S. 796), onde a uma busca inicial sem mandado, na qual foi observada
“parafernália própria para o tráfico de droga”, mas não a própria droga, se seguiu uma segunda busca com mandado (baseado este numa «causa provável» anterior à primeira busca) em que a droga foi efectivamente encontrada. O Tribunal, excluindo o que foi encontrado na primeira busca (ilegal), manteve, no entanto, como prova válida o estupefaciente apreendido na segunda busca (legal), considerando-o proveniente de uma «fonte independente»:
“A nossa conclusão segundo a qual a prova em causa é admissível, é inteiramente consistente com os casos anteriores, que representam mais de meio século de decisões. O Tribunal nunca afirmou que a prova constitua «fruto da árvore venenosa» apenas porque não teria aparecido se não fosse a actividade ilegal da polícia. [Desses casos decorre] claramente que a prova não será excluída como
«fruto» a não ser que a ilegalidade tenha sido causa sine qua non da própria descoberta dessa prova” (468 U.S. pág. 815).
A outra restrição à doutrina do «fruto da árvore venenosa», que é referida como a limitação da «descoberta inevitável», assenta na ideia de que a projecção do efeito da prova proibida não impossibilita a admissão de outras provas derivadas quando estas tivessem inevitavelmente (would inevitably) sido descobertas, através de outra actividade investigatória legal. Note-se que o que aqui está em causa não é, contrariamente ao que sucede no caso da «fonte independente», a constatação de que através de uma actividade de investigação autónoma daquela que originou a prova ilegal se chegou efectivamente à prova derivada. Contrariamente, nestas situações, está em causa a demonstração pela acusação de que uma outra actividade investigatória não levada a cabo, mas que seguramente iria ocorrer naquela situação, não fora a descoberta através da prova proibida, conduziria inevitavelmente ao mesmo resultado (cfr. Israel/LaFave, ob. cit. pág.
297).
Constitui paradigma desta limitação o caso de 1983, Nix v. Williams (467 U.S.
430), também conhecido por Williams II, onde um interrogatório ilegal, porque não precedido da leitura dos Miranda warnings, levou o suspeito a indicar a localização do cadáver da vítima. Este, porém, sendo certo que ocorriam concomitantemente buscas no local onde foi encontrado, viria seguramente, embora eventualmente mais tarde, a ser descoberto. A respeito da validade processual da descoberta baseada na prova inquinada, observou o Tribunal nesta decisão
(Williams II):
“O fundamento da extensão da regra de exclusão à prova que constitui «fruto» da actuação ilegal da polícia, é a de que essa consequência extrema se mostra necessária para dissuadir a polícia de violar os direitos constitucionais dos suspeitos, não obstante o elevado custo social que representa deixar impunes
óbvios culpados [letting obviously guilty persons go unpunished]. Significa este fundamento que a acusação não deve ser colocada numa melhor posição do que aquela em que estaria na ausência da ilegalidade. Por contraste, a doutrina da fonte independente – permitindo a admissão de prova descoberta por meios inteiramente independentes de qualquer violação constitucional – assenta no fundamento lógico de que o interesse da sociedade em evitar condutas policiais ilegais e o interesse público em que os jurados tenham acesso a toda a prova existente de um crime, sejam postos em equilíbrio, colocando a polícia na mesma, e não em pior, posição do que aquela em que estaria, não fora o seu erro ou conduta incorrecta. Embora a doutrina da fonte independente não se aplique nesta situação, a sua razão de ser é consistente e justifica a adopção da excepção da descoberta inevitável à regra de exclusão. Quando a acusação logra estabelecer, por critérios de preponderância da prova, que determinada informação, em última análise ou inevitavelmente, teria sido descoberta por meios legais, neste caso buscas que estavam em curso, então o fundamento da dissuasão [de procedimentos ilegais] apresenta uma base tão reduzida que não impede a admissão da prova [then the deterrence rationale has so little basis that the evidence should be received]”. [resumo oficial
(Syllabus) da decisão, in 467 U.S. pág. 432, com correspondência no texto a págs. 441/444]
A terceira limitação estabelecida pelo Supremo Tribunal norte-americano à doutrina dos «frutos de uma árvore venenosa», pode ser denominada, numa tradução algo livre, «mácula dissipada» (purged taint limitation) (cfr. Israel/LaFave, ob. cit. págs. 299/301). Nesta, admite-se que uma prova, não obstante derivada de outra prova ilegal, seja aceite, sempre que os meios de alcançar aquela apresentem uma forte autonomia relativamente a esta, em termos tais que produzam uma decisiva atenuação da ilegalidade precedente. Como se viu do trecho antes transcrito de Nardone II, o Juiz Frankfurter já falava em 1939 numa conexão tão atenuada com a prova proibida que «dissipava a mácula» (such conection have become so attenuated as to dissipate the taint). O Supreme Court vem, desde então, ao longo de seis décadas, exprimindo esta ideia ao falar de meios de aquisição da prova derivada “suficientemente distintos” da prova ilegal que a tornam algo de tão longínquo que a «mácula» se dissipa. Foi o que se disse, em
1962, em Wong Sun e al. v. United States (371 U.S. 471), numa situação que, por se referir a uma confissão posterior à prova proibida, apresenta certo paralelismo com o caso que nos ocupa. Nesta decisão considerou-se que a invalidade de uma detenção inicial, não assente em «causa provável», não afectava uma posterior confissão voluntária e esclarecida quanto às suas consequências, tratando-se esta de um «acto independente praticado de livre vontade» (independent act of free will) (cfr. Israel/LaFave, ob. cit. pág. 302).
A este respeito constata-se mesmo a existência de um sentido uniforme nas decisões do Supremo Tribunal norte-americano, considerando que nos casos de prova derivada envolvendo actos de vontade (derivative evidence involving volitional acts), traduzidos, por exemplo, no depoimento de testemunhas ou na decisão do suspeito de confessar o crime ou de prestar declarações relevantes quanto a este, a invalidade da prova anterior não se projecta na prova posterior, porque assente em decisões autónomas e produto de uma livre vontade [v. Steven D. Clymer, Are Police Free to Disregard Miranda?, The Yale Law Journal, vol. 112, nº 3, Dezembro de 2002, pág. 510; cf. neste sentido as decisões, respectivamente de 1971 e 1985, Michigan v. Tucker (417 U. S. 433) e Oregon v. Elstad [470 U.S. 298]).
2.2.4. Com estes exemplos respeitantes à doutrina dos «frutos» nos Estados Unidos, procurou-se traçar, genericamente, o quadro de referência desta no que podemos chamar o seu «ambiente natural». Note-se que estão em causa soluções próprias de uma ordem jurídica que é substancialmente diferente da nossa, o que não impediu tal doutrina de nos influenciar. Muitas destas soluções não têm nem poderiam ter correspondência no nosso direito. Porém, o que importa reter – e que nos permitirá avançar na subsequente indagação – é que a doutrina, amplamente citada neste processo pelo recorrente e pelos diversos tribunais recorridos, dos «frutos da árvore venenosa», nunca teve, na sua origem e desenvolvimento no direito norte-americano, o sentido que o recorrente parece querer atribuir-lhe de um «efeito dominó» que arrasta todas as provas que, em quaisquer circunstâncias, apareçam em momento posterior à prova proibida e com ela possam, de alguma forma, ser relacionadas.
Pelo contrário, aquilo que está em causa – e os exemplos acima referidos demonstram-no amplamente – é uma doutrina que abre um amplo espaço à ponderação das situações concretas, ou seja à interpretação, e que está longe de justificar, através da sua invocação, o caminho único de invalidar todas as provas posteriores à prova ilegal. Diversamente, trata-se com esta doutrina da procura de modelos de decisão assentes em critérios coerentes com a ponderação de interesses que justifica que, em determinadas circunstâncias, se projecte a invalidade de uma prova proibida, para além de nela própria, noutras provas e, em circunstâncias distintas, se recuse tal projecção.
Adiantando uma conclusão que posteriormente será explicitada, dir-se-á, por referência ao artigo 122º do CPP, que, lendo-o integralmente e à luz dos critérios em que nos Estados Unidos, designadamente através do labor do Supremo Tribunal, se fez assentar a doutrina dos «frutos da árvore venenosa», se pode dizer que esta norma abre um espaço interpretativo no qual há que procurar relações de dependência ou de produção de efeitos (o artigo 122º, nº 1 do CPP fala em actos dependentes ou afectados pelo acto inválido) que, com base em critérios racionais, exijam a projecção do mesmo valor negativo que afecta o acto anterior. Daí que os critérios atrás enunciados, fixados na jurisprudência norte-americana, acabem por constituir bons instrumentos de trabalho, que sugerem mesmo caminhos passíveis de ser seguidos entre nós, como aliás tem sucedido em outras ordens jurídicas.
2.2.5. Não obstante, a discussão em torno da aplicação da doutrina dos «frutos» em processos penais com características próximas do nosso permanece em aberto, sendo difícil encontrar um consenso absoluto a tal respeito.
Num estudo diversas vezes citado ao longo deste processo, Costa Andrade, depois de sublinhar as diferenças fundamentais, em matéria de
«efeito-à-distância» das provas proibidas, entre o direito norte-americano e o alemão, traduzidas na negação tendencial neste último desse efeito, não deixa de constatar que mesmo aí, no processo penal germânico, “(...) ganham cada vez mais peso (...) os autores que se pronunciam a favor de um «efeito-à-distância»
[emergindo], pelo menos a nível das implicações prático-jurídicas (...) como uma réplica da fruit of the poisonous tree doctrine americana” [Sobre as Proibições..., cit., pág. 175; cfr., neste mesmo sentido, Claus Roxin, indicando que, não obstante se tratar de questão bastante discutida (Die Frage ist überaus unstritten), também no processo penal alemão a doutrina dos «frutos» tem cabimento, devendo admitir-se “um efeito extensivo (eine Fernwirkung), pois, de outra forma, as proibições de prova (die Beweisverbote) seriam facilmente contornadas” (Strafverfahrensrecht, cit., pág. 193)].
Não obstante, a negação absoluta da vigência do efeito reflexo das proibições de prova continua a estar presente na doutrina de sistemas processuais com importantes pontos de contacto com o nosso. Em Itália, por exemplo, Franco Cordero, escreve a este respeito que: “A exclusão não atinge as provas descobertas graças à fonte espúria (...), porque nenhuma norma processual a exclui”, e acrescenta, “os fruits of the poisoned tree constituem uma metáfora anglo saxónica, mais americana que inglesa, alheia à lógica jurídica italiana, legibus sic stantibus” (Procedura penale, 2ª ed., Milão, 1993, pág. 582). De qualquer forma, mesmo no processo penal italiano existem, no domínio das consequências práticas de determinadas proibições de prova, afirmações menos peremptórias a respeito do «efeito-à-distância». Especificamente, quando a prova proibida é constituída por uma intercepção telefónica ilegal, existe um consenso
doutrinal e jurisprudencial no sentido da ilegitimidade de «contornar» a invalidade através de prova testemunhal respeitante ao conteúdo das escutas, falando-se nestes casos em proibição induzida (divieti indotti; cf. Corrada Di Martino, Teresa Procaccianti, Le intercettazioni telefoniche, Milão, 2001, págs.
234/236).
De qualquer forma a doutrina dos «frutos da árvore venenosa» está crescentemente presente nas decisões dos tribunais superiores dos sistemas europeus continentais. Esta afirmação pode ser ilustrada recorrendo à jurisprudência do Tribunal Constitucional espanhol, referindo-se mesmo (cf. Elena Martínez García, Eficacia de la prueba ilícita en el processo penal, Valência, 2003, pág. 75 e segs.) que a introdução dessa doutrina no direito espanhol ocorreu através de uma decisão de 1984 do Tribunal Constitucional, a Sentença nº 114/1984 (Jurisprudencia Constitucional, Tomo 10º, pág. 292; as decisões deste Tribunal podem ser consultadas em: http://www.tribunalconstitucional.es; v. comentário a esta sentença em Elena Martínez García, ob. cit., págs. 77/84).
Através de uma série de decisões posteriores a esta de 1984, vem a jurisdição constitucional espanhola particularizando o sentido do
«efeito-à-distância», estabelecendo em que circunstância uma prova reflexa pode ser subtraída à projecção da ilegitimidade da prova inválida. Aponta-se como paradigma deste entendimento a Sentença nº 81/1998 (Jurisprudencia Constitucional, Tomo 50º, pág. 1146), na qual se refere:
“(...) tais provas reflexas são, de um ponto de vista intrínseco, constitucionalmente legítimas. Por isso, para se concluir que a proibição de valoração se estende também a elas, terá de se estabelecer que as mesmas se encontram vinculadas às que vulneraram o direito fundamental substantivo de modo directo. Significa isto que terá de estabelecer-se um nexo entre umas e outras que permita afirmar que a ilegitimidade constitucional das primeiras se estende também às segundas (conexão de antijuridicidade). Na presença ou ausência desta conexão reside, pois, a ratio da interdição de valoração das provas obtidas a partir do conhecimento derivado de outras que vulneram o direito ao segredo das comunicações.”
(fundamento jurídico IV da Sentença a pág. 1156; v. a análise desta decisão em Elena Martínez García, ob. cit., págs. 95/103; e Angel Juanes Peces, La Prueba Proibida. Análisis de la Sentencia 81/98 del Tribunal Constitucional, in Actualidad Aranzadi, nº 353, Julho 1998, págs. 1/4).
Nota-se, aliás, que na jurisprudência crime do Supremo Tribunal espanhol são referenciáveis diversas decisões respeitantes à eficácia da prova derivada, que aceitam a validade desta por referência, muitas vezes expressa, às três limitações da doutrina dos «frutos» estabelecidas pelo Supremo Tribunal norte-americano (cfr. Elena Martínez García, ob. cit., págs. 89/95).
Neste sentido - e ainda no âmbito da jurisdição espanhola - tem interesse referir a Sentença nº 8/2000 do Tribunal Constitucional (Jurisprudencia Constitucional, Tomo 56º, pág.110) que analisou, em sede de recurso de amparo, uma situação de descoberta de estupefacientes durante uma busca domiciliária ilegal, quando a existência desses estupefacientes foi reconhecida em julgamento por um co-arguido do recorrente, concluindo pela não projecção da invalidade da busca no aparecimento da droga, por quebra do «nexo de antijuridicidade» entre a prova ilegal e a confissão subsequente (fundamentos jurídicos 8, 9 e 10 da Sentença, págs. 123/125; cfr., no mesmo sentido, estando em causa uma intercepção telefónica ilegal, a Sentença nº 166/1999, Jurisprudencia Constitucional, Tomo 55º, pág. 198, fundamentos jurídicos 5 e 6, págs. 216/217).
2.3. Esta abordagem de direito comparado, estando em causa uma figura doutrinária aparecida fora do nosso espaço jurídico, permite-nos colher elementos de grande utilidade para a caracterização do sentido do artigo 122º, nº 1 do CPP, não esquecendo que este, como se afirmou precedentemente, condensa o sentido prático que, enquanto garantia constitucional que é, o
«efeito-à-distância» tem no nosso processo criminal
2.3.1 Está em causa na situação que nos ocupa o aproveitamento de prova traduzida em confissão, ou num sentido mais amplo em declarações relevantes dos próprios arguidos. Esta – a confissão – funciona, de forma quase intuitiva, como verdadeiro paradigma de uma prova subsequente autónoma, concretamente por decorrer de um acto de vontade – de uma decisão de agir de determinada forma – de quem é advertido (trata-se de prova produzida na audiência de julgamento) do sentido das declarações que eventualmente venha a prestar (v. artigo 343º, nº 1 do CPP) e que, enfim, se encontra assistido por advogado. Aliás, sem que isto signifique uma apreciação por parte deste Tribunal da própria decisão recorrida, fora dos parâmetros da questão de inconstitucionalidade normativa que dessa decisão emergiu, não pode deixar de se sublinhar que o recorrente havia contestado, desde o debate instrutório, a legalidade das escutas telefónicas, que os seus argumentos foram a esse respeito aceites pelo Tribunal de julgamento e que, por isso, não tem qualquer sentido a afirmação, constante das suas alegações, de que a confissão, dele recorrente e do co-arguido não recorrente, não foi “livre e esclarecida, pois, só o seria caso o Tribunal o tivesse informado de que as escutas (eram) ilegais e que não (podiam) ser utilizadas contra ele” (v. fls. 934). Trata-se, obviamente, de um absurdo, quando, sublinha-se de novo, era o próprio recorrente que desde muito antes defendia veementemente a ilegalidade dessas escutas.
Tudo se prende, assim, com o entendimento do próprio artigo 122º, nº 1 do CPP e com o relacionamento de uma prova de natureza confessória com anterior prova inválida, consubstanciada em intercepções telefónicas. Quanto ao primeiro aspecto, como já se referiu, está em causa uma doutrina que entende o
«efeito-à-distância» como uma construção interpretativa que possibilita considerar em determinada circunstâncias, e recusá-lo noutras, que os fundamentos jurídicos da invalidade de determinada prova se mantêm (e, por isso, se devem projectar) numa prova que aparece depois. Quanto à confissão, o que foi considerado é que esta tem tal autonomia que possibilita um acesso aos factos totalmente destacável de qualquer outra forma de acesso anteriormente surgida e afectada por um valor negativo [este Tribunal, no Acórdão nº 288/99 ( Acórdãos do Tribunal Constitucional, 43º vol., pág. 529) entendeu como constitucionalmente conforme a livre valoração, enquanto prova, de declarações confessórias relativamente às quais não se verificou o condicionalismo estabelecido no nº 1 do artigo 344º do CPP].
Ora, e assim se alcança uma conclusão, o entendimento do artigo 122º, nº 1 do CPP, subjacente à decisão recorrida, segundo o qual este abre a possibilidade de ponderação do sentido das provas subsequentes, não declarando a invalidade destas, quando estiverem em causa declarações de natureza confessória, mostra-se constitucionalmente conforme, não comportando qualquer sobreposição interpretativa a essa norma que comporte ofensa ao disposto nos preceitos constitucionais invocados.
III DECISÃO
3. Assim, pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso confirmando a decisão recorrida no que à questão de constitucionalidade diz respeito.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 24 de Março de 2004
Rui Manuel Moura Ramos Carlos Pamplona de Oliveira Maria Helena Brito Artur Maurício Luís Nunes de Almeida