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Processo n.º 115/02
2ª Secção Relator - Cons. Paulo Mota Pinto
Acordam em conferência no Tribunal Constitucional
I. Relatório Em 3 de Abril de 2002 foi proferida nos presentes autos decisão sumária de não conhecimento, e condenação em custas, no recurso de constitucionalidade interposto, ao abrigo do artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, por A e mulher, B, para apreciação da constitucionalidade 'da interpretação dada ao art.º 2º n.º 1, b) e art.º 5º n.º 2 da Lei 55/79 de 15/9 conjugados com o disposto no art.º 107º, n.º 1, b) do RAU'. Essa decisão sumária sustentou-se nos seguintes fundamentos:
«(...) o recurso vem intentado ao abrigo do disposto no artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, sendo necessário, para se poder conhecer de tal recurso, a mais do esgotamento dos recursos ordinários e de que a norma impugnada tenha sido aplicada como ratio decidendi pelo tribunal recorrido, que a inconstitucionalidade desta norma, ou dimensão normativa, tenha sido suscitada durante o processo. Ora, é já hoje desnecessário recordar que no direito constitucional português vigente, apenas as normas são objecto de fiscalização de constitucionalidade concentrada em via de recurso (cfr., por exemplo, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 18/96, publicado no Diário da República [DR], II Série, de 15 de Maio de 1996, e J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra, 1998, p. 821), com exclusão dos actos de outra natureza
(políticos, administrativos, ou judiciais em si mesmos). Assim, a questão de constitucionalidade suscitada 'de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer' (como exige o artigo 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional), e trazida à apreciação do Tribunal Constitucional no requerimento de recurso há-de ser uma questão de constitucionalidade normativa, isto é, referida à conformidade constitucional de norma(s). Como se disse no Acórdão n.º 199/88 (DR, II Série, de 28 de Março de 1989): '(...) este Tribunal tem decidido de forma reiterada e uniforme que só lhe cumpre proceder ao controle da constitucionalidade de ‘normas’ e não de ‘decisões’ – o que exige que, ao suscitar-se uma questão de inconstitucionalidade, se deixe claro qual o preceito legal cuja legitimidade constitucional se questiona, ou, no caso de se questionar certa interpretação de uma dada norma, qual o sentido ou a dimensão normativa do preceito que se tem por violador da lei fundamental.' (ver também, por exemplo, os Acórdãos n.ºs 178/95 – publicado no DR, II Série, de 21 de Junho de 1995 –, 521/95 e 1026/96, inéditos).' Neste mesmo sentido, escreveu-se no Acórdão n.º 269/94 (DR, II série, de 18 de Junho de 1994): '(...) Suscitar a inconstitucionalidade de uma norma jurídica é fazê-lo de modo tal que o tribunal perante o qual a questão é colocada saiba que tem uma questão de constitucionalidade determinada para decidir. Isto reclama, obviamente, que – como já se disse – tal se faça de modo claro e perceptível, identificando a norma (ou um segmento dela ou uma dada interpretação da mesma) que (no entender de quem suscita essa questão) viola a Constituição; e reclama, bem assim, que se aponte o porquê dessa incompatibilidade com a lei fundamental, indicando, ao menos, a norma ou princípio constitucional infringido (...) pois não é exigível que os tribunais decidam questões (designadamente questões de constitucionalidade) sem que as partes lhes indiquem as razões por que entendem que elas devem ser decididas num determinado sentido, e não noutro.' Se o recorrente entende que um preceito não é inconstitucional 'em si mesmo', mas apenas num segmento ou numa sua determinada dimensão ou interpretação normativa, a exigência de suscitação da questão de constitucionalidade de forma clara e perceptível implica, pois, o ónus de, ao suscitar a inconstitucionalidade, identificar devidamente tal questão, através da indicação do segmento ou da enunciação da dimensão ou sentido normativo reputados inconstitucionais – o que é evidentemente diverso de remeter apenas para a interpretação dada a determinadas normas, sem qualquer precisão adicional. Como se escreveu no Acórdão n.º 367/94 (DR, II Série, de 7 de Setembro de 1994): 'Ao suscitar-se a questão de inconstitucionalidade, pode questionar-se todo um preceito legal, apenas parte dele ou tão-só uma interpretação que do mesmo se faça. (...) [E]sse sentido (essa dimensão normativa) do preceito há-de ser enunciado de forma que, no caso de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua decisão em termos de, tanto os destinatários desta, como, em geral, os operadores do direito ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido com que o preceito em causa não deve ser aplicado por, desse modo, violar a Constituição.' E, no Acórdão n.º 178/95 (DR, II Série, de 21 de Junho de 1995), além de se remeter para os fundamentos dos referidos Acórdãos n.ºs 269/94 e 367/94, conclui-se: '(...) impunha-se que os reclamantes tivessem indicado – o que não fizeram – o segmento de cada norma, a dimensão normativa de cada preceito – o sentido ou interpretação, em suma – que eles têm por violador da Constituição. De facto, tendo a questão da constitucionalidade de ser suscitada de forma clara e perceptível (cf., entre outros, o Acórdão n.º 269/94, in Diário da República,
2ª Série, de 18 de Junho de 1994), impõe-se que, quando se questiona apenas uma certa interpretação de determinada norma legal, se indique esse sentido (essa interpretação) em termos de que, se este Tribunal o vier a julgar desconforme com a Constituição, o possa enunciar na decisão que proferir, por forma que o tribunal recorrido que houver de reformar a sua decisão, os outros destinatários daquela e os operadores jurídicos em geral saibam qual o sentido da norma em causa que não pode ser adoptado, por ser incompatível com a lei fundamental.' Por outro lado, a inconstitucionalidade deve ter sido suscitada durante o processo, e tal requisito deve entender-se – como se decidiu, v. g., no Acórdão n.º 352/94 (DR, II série, de 6 de Setembro de 1994) e se tem depois repetido em jurisprudência constante –, 'não num sentido meramente formal (tal que a inconstitucionalidade pudesse ser suscitada até à extinção da instância)', mas
'num sentido funcional', de tal modo 'que essa invocação haverá de ter sido feita em momento em que o tribunal a quo ainda pudesse conhecer da questão',
'antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que (a mesma questão de constitucionalidade) respeita'.
É, na verdade, este o sentido que é exigido pelo facto de a intervenção do Tribunal Constitucional se efectuar em via de recurso, para reapreciação ou reexame, portanto, de uma questão que o tribunal a quo pudesse e devesse ter apreciado (ver, por exemplo, o Acórdão n.º 560/94, DR, II, de 10 de Janeiro de
1995 e ainda o Acórdão n.º 155/95, in DR, II, de 20 de Junho de 1995). O requerimento do recurso de constitucionalidade não é já, pois, como este Tribunal repetidamente tem afirmado, momento idóneo para pela primeira vez suscitar uma questão de constitucionalidade normativa – v. também, além dos Acórdãos citados, por exemplo o Acórdão n.º 166/92, DR, II, de 18 de Setembro de
1992. Antes o recorrente tem o ónus de suscitar a inconstitucionalidade normativa perante o tribunal a quo, para este se pronunciar sobre ela. E também os pedidos de aclaração e reforma de uma decisão, ou a arguição da sua nulidade, enquanto incidentes pós-decisórios, não são já momentos adequados para, atempadamente, suscitar uma questão de constitucionalidade normativa, em termos de ela poder vir a ser decidida pelo tribunal a quo, e de provocar a intervenção do Tribunal Constitucional para reapreciação, em recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional. Como se salientou no citado Acórdão n.º 352/94,
'porque o poder jurisdicional se esgota, em princípio, com a prolação da sentença, e porque a eventual aplicação de uma norma inconstitucional não constitui erro material, não é causa de nulidade da decisão judicial, nem torna esta obscura e ambígua, há-de entender-se que o pedido de aclaração de uma decisão judicial ou a reclamação da sua nulidade não são já, em princípio, meios idóneos e atempados para suscitar a questão de inconstitucionalidade' (v. também já, por exemplo, o Acórdão n.º 62/85, DR, II série, de 31 de Maio de 1985) – sofrendo esta orientação, como também se referiu no referido Acórdão n.º 352/94, restrições apenas em situações excepcionais, anómalas, nas quais o interessado não dispôs de oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade antes de proferida a decisão final, ou não era exigível que o fizesse, por o tribunal a quo ter efectuado uma aplicação de todo insólita e imprevisível da norma impugnada.
6. No presente caso, os recorrentes, respondendo ao convite de aperfeiçoamento do requerimento de recurso, referem-se, tal como nesse requerimento, à
'inconstitucionalidade da interpretação dada ao artº 2º n.º 1, b) e artº 5º n.º
2 da Lei 55/79 de 15/9 conjugados com o disposto no artº 107º, n.º 1, b) do RAU', sem enunciar, ou, sequer indicar de forma minimamente precisa, tal interpretação ou dimensão normativa, cuja constitucionalidade pretendiam ver apreciada – apenas dizendo que se trata de uma interpretação segundo a qual 'a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral de determinada norma não implica necessariamente ‘a repristinação das normas que ela, eventualmente haja revogado’ pois significa no caso a repristinação de apenas um segmento da norma revogada'. Pode, pois, desde logo, duvidar-se de que, perante o Tribunal Constitucional – isto é, no requerimento de recurso, que, neste aspecto, não foi suficientemente complementado pela resposta ao convite de aperfeiçoamento –, os recorrentes tenham identificado, com precisão, a dimensão ou interpretação normativa cuja constitucionalidade pretendiam ver apreciada. Como se referiu, tal identificação não pode, na verdade, bastar-se com a mera referência a uma 'interpretação dada', numa ou mais decisões judiciais, a vários artigos de um diploma legal, sem o seu enunciado ou a sua indicação precisa.
7. Ainda, porém, que se admitisse que a dimensão normativa a apreciar por este Tribunal se encontrava identificada no requerimento de recurso – o que só poderia fazer-se considerando a referência à 'repristinação de um segmento da norma', o teor da decisão recorrida e consultando as peças processuais apresentadas perante o tribunal recorrido, e presumindo que a questão que se pretendia trazer à apreciação do Tribunal Constitucional era a mesma –, não pode considerar-se que, no presente caso, os recorrentes tenham suscitado a inconstitucionalidade atempadamente. Os recorrentes indicam, como peças processuais em que tal suscitação ocorreu, entre outras, o pedido de aclaração e a arguição de nulidade do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto recorrido. Porém, como decorre da referida jurisprudência constante deste Tribunal, nem o pedido de aclaração nem a arguição de nulidade do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28 de Maio de 2001 eram já momentos idóneos para pela primeira vez suscitar a inconstitucionalidade da 'interpretação dada ao artº 2º n.º 1, b) e artº 5º n.º 2 da Lei 55/79 de 15/9 conjugados com o disposto no artº 107º, n.º
1, b) do RAU'.
É que, nesse momento, já o poder jurisdicional do tribunal recorrido, para decidir tal questão, se esgotara (com a prolação da sentença), não sendo a eventual aplicação de tal interpretação normativa, mesmo que inconstitucional, causa de nulidade da decisão judicial, nem a tornando obscura ou ambígua. E não estamos perante uma daquelas situações excepcionais em que os interessados não tenham anteriormente tido oportunidade de suscitar a questão de constitucionalidade, ou não era exigível que o fizessem, pois a aplicação das normas da Lei n.º 55/79 era já discutida desde a decisão da 1ª instância. As referências contidas nestas peças processuais não podem, pois, ser consideradas relevantes como suscitação atempada da inconstitucionalidade
'durante o processo'.
8. Na resposta ao convite para aperfeiçoar o requerimento de recurso, os recorrentes indicam ainda, como peça processual na qual a inconstitucionalidade teria sido suscitada, as 'alegações produzidas no tribunal recorrido'. Pode retirar-se desta peça que os recorrentes pretendiam que à demandada fosse aplicado, a partir da publicação da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral constante do Acórdão n.º 97/2000, o prazo preclusivo de dez dias previsto no artigo 5º, n.º 2, da Lei n.º 55/79, para deduzir, em articulado superveniente, os factos necessários à aplicação das excepções às limitações ao direito de denúncia para habitação própria. Não cabe aqui discretear sobre a bondade, no plano do direito ordinário, da aplicação de tal prazo preclusivo – ligada evidentemente à previsão inovatória de limitações ao direito de denúncia e à sua aplicabilidade às acções de despejo pendentes que não tivessem ainda decisão final transitada em julgado. Na verdade, apesar de a tese dos recorrentes se sustentar numa determinada interpretação do efeito repristinatório de normas anteriores que, no seu entender, deve ser atribuído à declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral do artigo 107º, n.º 1, alínea b), do RAU, pelo Acórdão n.º
97/2000, não se encontra nas alegações perante o Tribunal da Relação do Porto qualquer imputação de inconstitucionalidade a uma solução normativa contrária
àquela solução, devidamente identificada como tal. Ora, tal dimensão normativa carecia, como se disse, de ser identificada em termos claros e, além disso, de ser impugnada na sua constitucionalidade, não resultando tal impugnação, de forma clara e perceptível, apenas do facto de a posição dos Autores se fundamentar num certo entendimento dos efeitos
(repristinatórios) de uma anterior declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral – isto, desde logo, por não ser forçoso que, das duas posições discutidas quanto a tais efeitos (a repristinação apenas do segmento normativo relativo ao prazo de manutenção do locatário no prédio arrendado para limitar o direito de denúncia, como decidiu o tribunal recorrido, ou, como pretendiam os demandantes, a repristinação também de normas relativas ao prazo processual para fazer valer tal limitação, enquanto foi considerada aplicável às acções pendentes), uma delas se apresente necessariamente como constitucionalmente desconforme. Não deixa, aliás, de ser significativa a circunstância de, em consequência da falta de suscitação da questão, se não encontrar na decisão do tribunal a quo
(apesar de se invocar o Acórdão n.º 97/2000, do Tribunal Constitucional) qualquer referência à constitucionalidade da aplicação ou não das normas da Lei n.º 55/79 que estabeleceram o prazo de 10 dias para se fazer valer a limitação ao direito de denúncia. Não tendo, pois, a inconstitucionalidade normativa sido atempadamente suscitada durante o processo, está agora o Tribunal Constitucional impedido de tomar conhecimento do presente recurso.» Inconformados, os recorrentes vieram deduzir reclamação para a conferência, nos termos do artigo 78º-A, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional, dizendo o seguinte:
'Sustenta o douto despacho sob censura que não deve tomar-se conhecimento do recurso, porque ‘a inconstitucionalidade normativa não foi atempadamente suscitada durante o processo’. Ora, a constatação é francamente inexacta, e só terá decorrido, salvo o devido respeito, de uma análise menos atenta das incidências do processo. De facto – a menos que se entenda que os recorrentes para o poderem ser teriam de ser dotados de artes de adivinhação ou capacitados para juízos de prognose (e não são, diga-se desde já) – a questão da inconstitucionalidade só podia ser suscitada a partir do momento em que se aplicasse norma cuja interpretação suscitasse tal juízo. Ora, foi o que aconteceu. Rigorosamente. De facto, foi o Acórdão do Tribunal da Relação que de chofre e de surpresa veio dizer inovatóriamente justificar o que se dissera na primeira instância dizendo que
‘A declaração da inconstitucionalidade do art.º107º n.º1 al. b) do RAU teve como consequência a repristinação (apenas) do seguimento da lei 55/79 de 15 de Setembro ou seja, do art.º 2º, n.º 1 al. b) e não a totalidade dessa lei que se acha revogada(...)’ Só a partir de então (autos a fls. 138- acórdão de 28 de Maio de 2001) era possível humanamente suscitar a inconstitucionalidade desse entendimento que amputava a lei 55/77 de 15/9 em duas, para efeitos de considerar parte repristinada, parte não repristinada. E foi o que se fez logo – em pedido de aclaração, e em subsequente arguição de nulidade, na qual – e, por isso atempadamente já que o pedido de aclaração suspende o prazo de qualquer recurso( cfr. o art.º 670º nº 3 do Código de Processo Civil) – se escreveu, depois de logo se esclarecer que era intenção dos recorrentes 'interporem recurso para o Tribunal Constitucional', que (cita-se):
‘São, em suma, duas as questões a solucionar
1º – Pode o acórdão anulando confundir o tempo de duração do contrato – mais de
20 anos – com o tempo provado de permanência do locatário no imóvel – cerca de 4 anos – para, aplicando o artº. 107ºnº1 b) do RAU, concluir que o locatário se mantém no locado há mais de 20 anos? Não pode e ao fazê-lo comete a nulidade do artº. 668º n.º1 alínea c) do Código de Processo Civil, e viola o artº. 203º da Constituição (os fundamentos estão em desconformidade com a decisão e ocorre violação clara da lei).
2º – Pode o acórdão anulando sustentar que a repristinação de normas por força da declaração de inconstitucionalidade das que as revogaram, só respeita às normas de direito substantivo e não às normas processuais? Não pode, porque, se o fizer, comete a nulidade do art.º 668º n.º1, d) do Código de Processo Civil, isto é desarma os cidadãos reconhecendo-lhes um direito teórico, mas frustando-lhes os meios positivos de o fazer valer, violando os princípios, ínsitos no artº. 20º nº1 e 5., 202º, 203º, 205º e 282º n.º da Constituição.’ Dizer-se, assim, que – como se diz – a inconstitucionalidade normativa não foi atempadamente suscitada quando ela foi suscitada imediatamente após a prolação da decisão posta em crise, é algo que não se pode compreender. Termos em que respeitosamente se requer seja deferida a reclamação e recebido o recurso como é de elementar justiça.' Cumpre decidir. II. Fundamentos A presente reclamação não abala minimamente os fundamentos em que se sustentou a decisão sumária de não conhecimento de recurso. Na verdade, é exacto que, na resposta ao convite para aperfeiçoar o requerimento de recurso, os ora reclamantes se referiram apenas, tal como nesse requerimento,
à 'inconstitucionalidade da interpretação dada ao artº 2º n.º 1, b) e artº 5º n.º 2 da Lei 55/79 de 15/9 conjugados com o disposto no artº 107º, n.º 1, b) do RAU', sem enunciar, ou, sequer indicar de forma minimamente precisa, tal interpretação ou dimensão normativa, cuja constitucionalidade pretendiam ver apreciada. Eram, pois, cabidas dúvidas sobre se, no requerimento de recurso – neste aspecto, não suficientemente complementado pela resposta ao convite de aperfeiçoamento –, os recorrentes identificaram, com precisão, a dimensão ou interpretação normativa cuja constitucionalidade pretendiam ver apreciada. Ainda admitindo, porém – considerando a referência à 'repristinação de um segmento da norma', o teor da decisão recorrida, consultando as peças processuais apresentadas no tribunal recorrido, e presumindo que a questão que se pretendia trazer à apreciação do Tribunal Constitucional era a mesma –, que a questão de constitucionalidade normativa fora devidamente identificada perante o Tribunal Constitucional, é também exacto não poder considerar-se que, no presente caso, os recorrentes tenham suscitado a inconstitucionalidade atempadamente. Designadamente, os recorrentes não curaram de, atempadamente, suscitar a inconstitucionalidade antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal recorrido, só a referindo nos requerimentos de aclaração e de arguição de nulidade. Porém, como se salientou na decisão recorrida, citando jurisprudência constante deste Tribunal, '(...), porque o poder jurisdicional se esgota, em princípio, com a prolação da sentença, e porque a eventual aplicação de uma norma inconstitucional não constitui erro material, não é causa de nulidade da decisão judicial, nem torna esta obscura e ambígua', 'nem o pedido de aclaração nem a arguição de nulidade do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28 de Maio de 2001 eram já momentos idóneos para pela primeira vez suscitar a inconstitucionalidade da 'interpretação dada ao artº 2º n.º 1, b) e artº 5º n.º 2 da Lei 55/79 de 15/9 conjugados com o disposto no artº 107º, n.º
1, b) do RAU' – nesse momento, já o poder jurisdicional do tribunal recorrido, para decidir tal questão, se esgotara. É, aliás, evidentemente irrelevante o argumento que se pretende tirar da suspensão do prazo de qualquer recurso pelo pedido de aclaração, nos termos do artigo 670º, n.º 3 do Código de Processo Civil, pois o que esteve em causa foi, não o prazo para interpor o recurso de constitucionalidade, mas antes o não cumprimento pelos recorrentes do ónus de suscitação, de modo processualmente adequado, da questão de constitucionalidade normativa antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal a quo. Como também se salientou correctamente na decisão reclamada, não se encontra, aliás, no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa qualquer referência à questão de constitucionalidade, pelo que o Tribunal Constitucional estaria a pronunciar-se sobre a constitucionalidade da norma indicada no requerimento de recurso pela primeira vez, e não reapreciando a decisão do tribunal a quo. Os reclamantes, reconhecendo que suscitaram a questão de constitucionalidade apenas 'após a prolação da decisão posta em crise', entendem, porém, que não lhes era possível fazê-lo anteriormente, afirmando que, 'a menos que se entenda que os recorrentes para o poderem ser teriam de ser dotados de artes de adivinhação ou capacitados para juízos de prognose (e não são, diga-se desde já)', 'a questão da inconstitucionalidade só podia ser suscitada a partir do momento em que se aplicasse norma cuja interpretação suscitasse tal juízo.' Entendem, assim – por outras palavras –, que estaríamos perante uma daquelas situações excepcionais em que os interessados não tiveram anteriormente oportunidade de suscitar a questão de constitucionalidade, ou não era exigível que o fizessem, por a aplicação da interpretação normativa em causa não ser previsível. Trata-se, porém – como também se disse já na decisão reclamada –, de um entendimento com o qual se não pode concordar, por ser contrariado pela análise das diversas 'incidências do processo'. Na verdade, como este Tribunal tem repetidamente afirmado, 'não pode deixar de recair sobre as partes em juízo o ónus de considerarem as várias possibilidades interpretativas das normas de que se pretendem socorrer, e de adoptarem, em face delas, as necessárias cautelas processuais (por outras palavras, o ónus de definirem e conduzirem uma estratégia processual adequada)', pelo que 'a simples
‘surpresa’ com a interpretação dada judicialmente a certa norma não será de molde (ao menos, certamente, em princípio) a configurar uma dessas situações excepcionais' em que seria justificado dispensar os interessados da exigência da invocação da inconstitucionalidade antes de se esgotar o poder jurisdicional do tribunal a quo sobre a questão para cuja resolução é relevante a norma impugnada. Como se afirmou, por exemplo, no Acórdão n.º 479/89, que se vem citando (in DR, II Série, de 24 de Abril de 1992), sendo tal situação de admitir 'haverá de sê-lo apenas numa hipótese em que a interpretação judicial seja tão insólita e imprevisível que seria de todo desrazoável dever a parte contar (também) com ela.' Ora, no caso vertente retira-se da análise dos autos que a aplicação das normas da Lei n.º 55/79 era já discutida desde a decisão da 1ª instância, não podendo os recorrentes deixar de contar com a possibilidade da interpretação efectuada pelo Tribunal da Relação, sendo certo, ainda, que a referência à questão do
âmbito da repristinação de normas da Lei n.º 55/99 se encontra, aliás, nas próprias alegações dos recorrentes perante esse Tribunal da Relação, sem que se tenha então efectuado qualquer imputação de inconstitucionalidade. A decisão sumária de não conhecimento do recurso deve, pois, ser confirmada. III. Decisão Pelos fundamentos expostos, decide-se desatender a presente reclamação e confirmar a decisão sumária de não conhecimento do recurso. Custas pelos reclamantes, com 15 ( quinze ) unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 15 de Janeiro de 2003 Paulo Mota Pinto Mário Torres José Manuel Cardoso da Costa