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Proc. n.º 177/04
3ª Secção Relator: Conselheiro Gil Galvão
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório.
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, foi proferida decisão (fls. 204) que não admitiu o recurso para o Tribunal Constitucional que o banco A. (ora reclamante) havia interposto do acórdão daquele Tribunal de 18 de Dezembro de 2003. Escudou-se o Tribunal, para tanto, acompanhado-a expressamente, na seguinte fundamentação aduzida pelo Ministério Público (fls.
200):
“Vem interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (aplicação da norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo). Relativamente às normas ora arguidas de inconstitucionais – arts. 188º e 189º do CPEREF-, na interpretação e aplicação que delas é feita, não suscitou o recorrente anteriormente no processo a questão da inconstitucionalidade respectiva. Não vem, aliás, indicada no requerimento de interposição do recurso a peça processual em que tal questão haja sido suscitada (parte final do n.º 2 do art.º
75º-A da Lei citada). Por outro lado, o douto acórdão recorrido reafirma o entendimento jurídico manifestado no acórdão da Relação, cuja parte decisória transcreve, não constituindo, pois, “decisão- surpresa“. Em suma: o recurso, salvo o devido respeito pela posição expressa pelo recorrente, apresenta-se como manifestamente infundado, resultando desnecessária a formulação do convite previsto no n.º 5 do art.º 75-A da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional, desde logo devendo ser indeferido, nos termos do disposto na parte final do n.º 2 do art.º 76º da mesma Lei.”
2. Inconformado com a decisão que não lhe admitiu o recurso para este Tribunal, apresentou o recorrente a presente reclamação, que tem o seguinte teor:
“[...] Recorrente nos autos de recurso de Revista à margem identificados, que correram termos no Supremo Tribunal de Justiça, tendo no seu âmbito apresentado requerimento de recurso para este Venerando Tribunal Constitucional, vem respeitosamente, ao abrigo do disposto, designadamente nos art.ºs 76.° n.º 4 e
77.º da LEI DE ORGANIZAÇÃO E FUNCIONAMENTO E PROCESSO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
(Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro, na redacção da Lei n.º13A/98 de 26 de Fevereiro) apresentar RECLAMAÇÃO PARA O TRIBUNAL CONSTITUCIONAL contra o despacho de indeferimento de tal interposição de recurso de fiscalização concreta, nos termos e com os fundamentos seguintes: a) 0 douto acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra admitia “recurso ordinário”. E, b) Por isso, foi ele interposto para o Supremo Tribunal e Justiça. Assim, c) Foi o Supremo Tribunal de Justiça que disse a “última palavra” na respectiva ordem judiciária. E, d) Tal “última palavra” não tem qualquer antecedente conhecido na jurisprudência. Aliás, e) O próprio acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, reflectindo sobre o que Recorrente disse nas conclusões 5 e 6 das suas alegações assentou em que “tais razões colhem integralmente, isto na normalidade dos casos, em suma, em tese geral”. Porém, f) Daquela tese se afastou e de forma “inovadora”, configurando-se mesmo caso de “decisão surpresa”. De facto, g) E, salvo o merecido respeito, não seria, razoável exigir-se ao Recorrente que antevisse a não continuação de uma linha jurisprudencial até agora pacifica e constante. Com efeito, h) No tribunal da Relação, entendeu-se que “embora o recorrente tivesse o direito de ser pago preferentemente, aos outros credores em relação ao montante monetário resultante das vendas do imóvel hipotecado e dos bens penhorados, o certo é que não logrou provar que montante, concluindo por confirmar a sentença recorrida, a qual no que ora interessa decidiu, colhendo a tese do m º Juiz a quo de que :
“ Efectivamente não se encontra arrolado nos autos qualquer dos bens imóveis sobre os quais impendiam as hipotecas voluntárias ou legal, nem quaisquer móveis que tenham sido dados de em penhor mercantil para garantia do crédito do A..
...Assim deverão todos os créditos ser graduados como créditos comuns”. Ora, i) no presente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça decidiu: j) “E também é certo que o reclamante nada fez para evitar que se tivesse criado esta situação concreta, absolutamente anormal - a de se desconhecer ( e não haver possibilidade prática de dar volta ao texto) quais os valores por que foram vendidos os bens em causa, factor este absolutamente imprescindível para que a sua preferência no pagamento pudesse ser concretizada. Em suma entendemos que, quando, em concreto, não sejam conhecidos - nem haja possibilidade prática de o virem a ser - os valores por que foram vendidos os bens que constituem o objecto das garantias (hipoteca e penhor mercantil), por forma a que, nos termos do artigo 824.º n.º 3 do Código Civil, os titulares de tais garantias possam ser pagos preferentemente aos demais credores, pelo produto da venda de tais bens, não poderá funcionar o privilégio de tal pagamento preferencial previsto no referido comando, por manifesta falta de elementos para tanto”. Tal decisão é inovatória, porquanto, sem que o Recorrente tenha sido notificado para se pronunciar quanto à possibilidade de determinação de valores na venda e, ou se as diligências devidas e da responsabilidade do tribunal, em especial do Sr. Liquidatário aquando da apreensão da verba, solicitou ou requereu na execução fiscal, o auto de adjudicação, concluiu inovando, como aliás reconhece, o direito. Com efeito, nas decisões anteriores não se reconheceu ao Recorrente o direito de preferência resultante da hipoteca, fazendo errada aplicação do direito, mas a decisão do STJ, é diversa, inovando, na medida em que ao invés das anteriores, reconhece o direito do recorrente como credor hipotecário, concluindo, no entanto, e aí inovando, ao retirar o direito aos credores hipotecários de serem pagos preferentemente, aos demais credores o direito, por manifesta falta de elementos para tanto.” Ou seja, Reconhece o direito, mas este “caduca” por falta de determinação prática de um valor, conceito que não consta do regime de hipoteca e ou penhor. Tal interpretação e aplicação dos artºs 188.° e 189.° do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e da Falência, do artº 824.° de Código Civil e do artº 888.° do Código de Processo civil é inconstitucional, porque colidente com o “princípio da confiança” (que está ínsito no “princípio do Estado de Direito democrático”), também postulante para os órgãos constitucionalmente credenciados para administrar a justiça em nome do povo: os cidadãos devem poder esperar destes que a sua (deles cidadãos) actuação de acordo com os seus direitos seja reconhecida, em todas as circunstâncias juridicamente relevantes. E, configura uma verdadeira “decisão surpresa” porquanto, não foi o Recorrente notificado para se pronunciar sobre “a manifesta falta de elementos“, e ou fazer prova destes, tanto mais que chamado a dizer o direito, o STJ numa interpretação completamente surpresa e inconstitucional dos preceitos legais, cria soluções impossíveis de prever, no normal decurso do processo. Com efeito, como alegou junto do Supremo Tribunal de Justiça a determinação do valor de venda da execução fiscal e a sua imputação aos bens alienados, trata-se de meras questões factuais a serem efectuadas no decurso da liquidação e pagamento, nada tendo a ver com os aspectos jurídicos de uma sentença de graduação de créditos, designada mente quanto ao apuramento e natureza dos créditos em privilegiados e em comuns. Face ao que precede a decisão do S.T.J. é absolutamente inesperada, inovatória no direito, configurando uma decisão surpresa e por tal não poderia o Recorrente face à sua “imprevisibilidade” suscitar durante o processo a questão da inconstitucionalidade.”.
3. Já neste Tribunal foram os autos com vista ao Ministério Público, que se pronunciou no sentido da improcedência da reclamação, posição que fundamentou nos seguintes termos:
“A presente reclamação é, a nosso ver, improcedente, já que a entidade reclamante não suscitou “durante o processo” – podendo perfeitamente tê-lo feito
– a questão de inconstitucionalidade normativa que, só após a prolação do acórdão do Supremo, veio colocar no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade – sendo evidente que não pode perspectivar-se como
“decisão-surpresa” a proferida pelo STJ, limitando-se a negar provimento à revista e a confirmar a decisão proferida pela Relação.”
Dispensados os vistos, cumpre decidir.
II. Fundamentação.
4. Alega o ora reclamante que “a decisão do S.T.J. é absolutamente inesperada, inovatória no direito, configurando uma decisão surpresa e por tal não poderia o Recorrente face à sua “imprevisibilidade” suscitar durante o processo a questão da inconstitucionalidade.”
Vejamos.
4.1. A admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82 pressupõe, designadamente, que o recorrente tenha suscitado, durante o processo, a questão de constitucionalidade normativa que pretende ver apreciada, constituindo desde há muito jurisprudência assente neste Tribunal
(veja-se, entre muitos nesse sentido, os Acórdãos n.ºs 62/85, 90/85 e 450/87, in Acórdãos do Tribunal Constitucional., 5º vol., p. 497 e 663 e 10º vol., pp. 573, respectivamente) que, em princípio, tal implica que a questão de constitucionalidade seja suscitada antes da prolação da decisão recorrida. Em consequência, tem este Tribunal afirmado repetidamente que, em regra, o requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional não constitui meio ou momento processualmente adequado para suscitar, pela primeira vez, a questão de inconstitucionalidade - como, no caso, aconteceu.
Tem, contudo, o Tribunal admitido que a questão de constitucionalidade seja suscitada já depois de proferida a decisão recorrida em hipóteses, de todo em todo excepcionais ou anómalas, em que o recorrente não tenha tido oportunidade processual de o fazer antes ou em que o poder jurisdicional, por força de norma processual específica, não se tenha esgotado com a prolação da decisão recorrida. E, nessa sequência, tem o Tribunal entendido que uma das situações em que o interessado não dispõe de oportunidade processual para suscitar a questão da constitucionalidade antes de esgotado o poder jurisdicional é, precisamente, a daqueles casos em que é confrontado com uma situação de aplicação ou interpretação normativa, feita pela decisão recorrida, de todo imprevisível ou inesperada, em termos de não lhe ser exigível que a antecipasse, de modo a impor-se-lhe o ónus de suscitar a questão antes da prolação dessa decisão.
É esta última hipótese factual que o reclamante entende que se encontra retratada nos autos. Com efeito, reconhece que só suscitou a questão de constitucionalidade que agora pretende ver apreciada já depois de proferida a decisão recorrida, concretamente no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional. Sustenta, porém, que não teve oportunidade processual de o fazer antes, porque “a decisão do S.T.J. é absolutamente inesperada, inovatória no direito, configurando uma decisão surpresa”.
4.2. Acontece, porém, que, ao contrário do que alega o ora reclamante, o acórdão recorrido não constitui qualquer surpresa em relação à decisão do Tribunal da Relação de Lisboa. De facto, esta utilizou a seguinte fundamentação:
“[...] o credor, A., teria o direito a ser pago, preferentemente, aos outros credores, em relação ao montante monetário resultante da venda do imóvel hipotecado e aos bens móveis penhorados. Sucede, porém, que no caso vertente isso não poderá suceder, visto que se desconhece, em concreto, qual o valor por que tais bens foram vendidos, visto que, como se viu, os mesmos alienados juntamente com outros bens que compunham o estabelecimento da falida, pelo montante global de 35.000.000$00 (hoje 174.579 Euros).
[...] Por outras palavras, pese embora o recorrente tivesse o direito de ser pago, preferentemente, aos outros credores em relação ao montante monetário resultante das vendas do imóvel hipotecado e dos bens móveis penhorados, o certo é que não logrou provar que montante foi esse (repete-se, o valor de 35.000 contos abrange também a venda de outros bens), razão por que a sua pretensão não poderá proceder. [...]”
Por seu turno, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de que o ora reclamante pretendia recorrer para este Tribunal adoptou, precisamente, a mesma interpretação normativa para negar a revista e confirmar o acórdão da Relação, ao afirmar:
“[...] No entanto, e tal como acima já se deixou suficientemente explicitado
(sendo absolutamente despiciendo estar aqui a repetir a ratio da decisão proferida no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra), seguir a tese propugnada pelo reclamante seria caminhar no sentido da impossibilidade prática de proceder à liquidação, seja ao pagamento a efectuar aos credores.
[...] Em suma, entendemos que, quando, em concreto, não sejam conhecidos - nem haja possibilidade prática de o virem a ser- os valores por que foram vendidos os bens que constituem o objecto das garantias (hipoteca e penhor mercantil), por forma a que, nos termos do artigo 824° n° 3 do Código Civil, os titulares de tais garantias possam ser pagos, preferentemente aos demais credores, pelo produto da venda de tais bens, não poderá funcionar o privilégio de tal pagamento preferencial previsto no referido comando, por manifesta falta de elementos para tanto. [... ]”
4.3. Ora, tendo o Tribunal da Relação decidido naqueles termos, era efectivamente previsível a possibilidade de o Supremo Tribunal de Justiça vir a confirmar a referida interpretação normativa. Entendendo o ora reclamante que tal interpretação é inconstitucional, era-lhe exigível que, antecipando essa confirmação, suscitasse a questão da sua inconstitucionalidade em termos de o tribunal recorrido estar obrigado a sobre ela se pronunciar. É que, como este Tribunal também tem afirmado repetidamente, recai sobre a parte o ónus de analisar as diversas possibilidades interpretativas susceptíveis de virem a ser seguidas e utilizadas na decisão e de utilizar as necessárias precauções, de modo a poder, em conformidade com a orientação processual considerada mais adequada, salvaguardar a defesa dos seus direitos (cfr., nesse sentido, entre muitos outros, o Acórdão n.º 479/89, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 14º vol., pgs. 149 e 150).
Não o tendo feito - no recurso que interpôs para STJ limitou-se, a alegar que
“ao decidir em contrário o douto acórdão recorrido violou os artigos 188.º e
189.º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e da Falência,
824.º do Código Civil e 888.º do Código de Processo Civil” -, ou seja, não tendo sido suscitada pelo ora reclamante durante o processo a questão da constitucionalidade que agora pretende ver apreciada, conforme exige a alínea b) do n.º 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional, ao abrigo da qual é interposto o recurso, não pode, efectivamente, o mesmo ser admitido.
III. Decisão.
Pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a presente reclamação. Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 5 de Março de 2004
Gil Galvão Bravo Serra Luís Nunes de Almeida