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Processo nº 443/02
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1. - Nos presentes autos de recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que são recorrente o Município de Cabeceiras de Basto e recorrida B, foi proferida, em 15 de Julho de 2002, decisão sumária, nos termos do nº 1 do artigo
78º-A daquele diploma legal, em que se não tomou conhecimento do objecto do recurso.
2. - Foi a referida decisão sumária do seguinte teor:
'1. - B, identificada nos autos, intentou acção declarativa, com processo ordinário, contra o Município de Cabeceiras de Basto, representado pelo Presidente da Câmara Municipal de Cabeceiras de Basto, pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de 12.500.000$00, acrescida de juros vencidos, computados até 31 de Maio de 2000, no valor de 7.861.375$00, e de juros vincendos até integral pagamento. O réu contestou invocando a incompetência absoluta do tribunal em razão da matéria - entendendo estar em causa um contrato administrativo, e que, por conseguinte, a competência para conhecer das acções sobre contratos administrativos e sobre a responsabilidade das partes pelo seu incumprimento é dos Tribunais Administrativos, e não dos Tribunais comuns –, alegou a prescrição relativamente aos juros peticionados e pugnou pela improcedência da acção. Por sentença de 23 de Novembro de 2000, o Tribunal Judicial de Cabeceiras de Basto, considerando improcedente a excepção de incompetência do tribunal em razão da matéria invocada pelo réu, e parcialmente procedente a excepção peremptória da prescrição, na parte referente aos juros reclamados pela autora vencidos até 23 de Junho de 1995, veio a julgar a acção parcialmente procedente e condenou o réu Município de Cabeceiras de Basto a pagar a quantia de
12.500.000$00, acrescida de juros à taxa legal, a contar de 23 de Junho de 1995 até efectivo pagamento.
2. - Notificado, o Município de Cabeceiras de Basto interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto, que, por acórdão de 19 de Junho de 2001, negou provimento ao recurso, remetendo para os fundamentos da decisão impugnada, ao abrigo do disposto no nº5 do artigo 713º do Código de Processo Civil. Deste aresto veio o réu interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, que oportunamente motivou, tendo a autora, em resposta, pugnado pela negação da revista.
3.- O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 17 de Janeiro de 2002, negou a revista, fundamentando-se no seguinte:
'Diz-se contrato administrativo o acordo de vontades pelo qual é constituída, modificada ou extinta uma relação jurídica administrativa'-art°178°-1 do C. de Procedimento Administrativo (DL 442/91 de 15-11). Na exemplificação do nº2, significativamente, não se menciona o contrato de compra e venda. Uma compra e venda pode ser contrato administrativo, mas não o será a maioria das vezes. De um contrato de compra e venda, por regra, não resultam poderes de autoridade nem restrições de interesse público para o ente público nem deveres públicos para os particulares perante a administração. Há que classificar o contrato entre a administração e um particular face ao modo de formação da vontade da pessoa colectiva, o seu objecto e os poderes de que se reveste a sua intervenção nesse contrato [...]. O contrato dos autos é regulado pelo direito civil. O R. interveio como simples particular, despido do seu 'jus imperii'. Diferente é o tratamento dos procedimentos administrativos que precederam e seguiram a celebração do contrato. Isto é, antes de o celebrar , o R. teve que deliberar efectuar a compra. Depois, sabemos que, por vicissitudes internas do R., se seguiram deliberações de não pagamento do preço da compra efectuada. Quer os procedimentos anteriores quer os posteriores são regulados pelo direito administrativo . A sua apreciação compete ao foro administrativo [...]. Mas não são esses actos administrativos que aqui importam. Actos administrativos decidindo o não pagamento do preço pactuado em contrato
'jure civile' são alheios às atribuições do ente público, e por isso nulos. A A. pode ignorá-los. O R. tomou uma decisão que só os tribunais poderiam assumir . Nessa medida, incorreu no vício de usurpação de poder [...]. O comprador deve pagar o preço-art°879°-c) do C. Civil. O R. obrigou-se a pagar o preço em determinados prazos. . Não respeitando esses prazos, e assumindo mesmo, ilegalmente, a atitude de recusar o pagamento, violou o art°406°-1 do CC. Nega-se a revista.' Notificado, veio o recorrente arguir nulidades, pedir a aclaração e reforma do aresto e invocar questões de constitucionalidade, nos seguintes termos:
'35° C)- lnconstitucionalidade Ressalvado o merecido respeito, afigura-se que o Supremo Tribunal de Justiça não tem jurisdição para declarar a nulidade dos actos administrativos,
36° maxime de forma casuística, para disso retirando ilações e consequências de natureza cível, fazer aplicação aos feitos submetidos a julgamento: no caso ocorrente de que 'O comprador deve pagar o preço (..) '.
37° Pois que, tal é matéria que compete ao Supremo Tribunal Administrativo e aos demais Tribunais Administrativos.
38º Ao decidir que no douto Acórdão em apreço que :
'Actos administrativos decidindo o não pagamento do preço pactuado em contrato
'jure civile ' são alheios às atribuições do ente público, e por isso nulos', A A . pode ignorá-los.
'0 R. tomou uma decisão que só os tribunais poderiam assumir' 'Nessa medida, incorreu no vicio de usurpação de poder.' – afigura-se-nos que o douto Acórdão postergou o preceituado nos Arts. 212° e 210° e 211° a contrario e 204° todos da Constituição.
39° Por outro lado, Afigura-se ainda, que as normas contidas nos Arts. 406°- n.º 1 e 879° , al. c) ambos do Código Civil, de que se fez aplicação no douto Acórdão em apreço, são inconstitucionais, na interpretação de que prevalecem mesmo quando conjugadas com o estatuído no Art. 133°- n.º 2, al. c) do Código do Procedimento Administrativo que declara nulos os actos cujo objecto seja impossível, ininteligível ou constitua crime, por violação do preceituado no Art. 266° da Constituição.
40° O que aqui se invoca para todos os efeitos devidos'.
A recorrida pronunciou-se no sentido da inverificação de inconstitucionalidades e pediu a condenação do recorrente como litigante de má-fé. O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 4 de Abril de 2002, indeferiu o requerido pelos recorrentes, com a seguinte fundamentação:
'Este Tribunal , no acórdão de fl. 108, conheceu das questões colocadas pelo R. Este nem sequer falou na sua alegação na sentença do Tribunal Administrativo . E assim procedeu deliberadamente, pois sabia que por aí o recurso improcederia. Uma coisa é uma acção para declaração de perda de mandato, outra, muito diferente, é uma acção para declaração de nulidade ou anulação de um determinado contrato. Nesta, obviamente, as partes contratantes terão de ser ouvidas. Não se declarou nulo qualquer acto administrativo. Este Tribunal não seria competente para o fazer . Considerou-se nulo, no âmbito e apenas para os efeitos de apreciar a validade neste processo da deliberação de suspender pagamento do preço . A aplicação feita dos preceitos legais invocados não fere qualquer preceito da Constituição da República. Indefere-se o requerido. Sem custas. Por agora, não se condena o R. por litigância de má fé, embora pareça de facto que ele pretende apenas protelar o pagamento do que deve.'
4. - Inconformado com o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Janeiro de 2002, veio o recorrente apresentar o requerimento de fls. 148, de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, o qual completou após convite do Conselheiro relator ao abrigo do artigo 75º-A, nº1 e 2, da Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro, nos seguintes termos:
«1. O Recurso para o Tribunal Constitucional é interposto ao abrigo da al. b) do N°1 do Art. 70° da LOFTC.
2. Pretende a Recorrente ver apreciada a inconstitucionalidade contida no douto Acórdão recorrido quando julgou que :
'Actos administrativos decidindo o não pagamento do preço pactuado em contrato
'jure civile' são alheios às atribuições do ente público, e por isso nulos', A A . pode ignorá-los.
'0 R. tomou uma decisão que só os tribunais poderiam assumir' 'Nessa medida, incorreu no vicio de usurpação de poder.' - quando é certo que tal matéria de declaração de nulidade e anulação de actos administrativos compete ao Supremo Tribunal Administrativo e aos demais Tribunais Administrativos - por violação do preceituado nos Arts. 212°, 210° e 211° a contrario, 203° e 204° todos da Constituição.
3. Pretende ainda a Recorrente ver apreciada a inconstitucionalidade dos Artigos
406-nº 1 e 879°, al. c) ambos do Código Civil, de que se fez aplicação no douto Acórdão recorrido, quando conjugados com o preceituado no Artigo 133°-nº 2, al. c) do Código do Procedimento Administrativo, na interpretação de que prevalecem mesmo quando conjugados com o estatuído no Art. 133°-nº 2, al. c) do Código do Procedimento Administrativo que declara nulos os actos cujo objecto seja impossível, ininteligível ou constitua crime, cotejado com o disposto nos Artigos 23° e 26° da Lei N° 34/87,de 16.07. sobre 'Crimes de responsabilidade dos titulares de cargos políticos', por violação do preceituado no Art. 266° da Constituição.
4. Normas e princípios constitucionais violados: Arts. 212°, 210° e 211° a contrario, 203°,204° e 266° .
5. As questões de inconstitucionalidade foram suscitadas no Requerimento para Aclaração/Reforma do douto Acórdão recorrido de 17.01.2002 proferido a Fls..., dos autos.»
5. - Não se encontrando o Tribunal Constitucional vinculado pela decisão que admitiu o recurso – n.º3 do artigo 76º da Lei n.º 28/82 – entende-se não poder conhecer do objecto do mesmo, sendo caso de proferir decisão sumária, nos termos do n.º1 do artigo 78º-A do mesmo diploma, o que se passa a justificar sumariamente.
6.- Com efeito, constitui jurisprudência reiterada e uniforme do Tribunal Constitucional entender que, nos recursos de fiscalização concreta de constitucionalidade com fundamento na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, a suscitação da questão de constitucionalidade reportada a normas, na sua integralidade, em dada dimensão ou na interpretação que delas se faz, há-de ocorrer durante o processo, e, bem assim – entre outros pressupostos de admissibilidade do recurso que, no caso, não interessa considerar – que a decisão recorrida haja aplicado essa norma, que como tal se assuma como seu suporte fundamentante. A suscitação atempada, ou seja, durante o processo, significa que a questão deve ser levantada, em princípio, em momento anterior ao de o tribunal recorrido proferir a decisão final, de modo a ser-lhe ainda possível pronunciar-se a seu respeito. A inconstitucionalidade há-de suscitar-se antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que a questão de constitucionalidade versa, entendendo-se, por conseguinte, a locução durante o processo não em sentido formal que permita equacionar o problema até à extinção da instância, mas sim em sentido funcional, determinante de a invocação ocorrer em momento em que o tribunal recorrido ainda possa conhecer da questão. Nesta linha de orientação – que está apoiada abundantemente na jurisprudência como, a título exemplificativo, o ilustram os acórdãos n.ºs. 479/89 e 232/94, publicados no Diário da República, II Série, de 24 de Abril de 1992 e 22 de Agosto de 1994, respectivamente – igualmente se vem entendendo que o pedido de aclaração da decisão ou a arguição de nulidades desta não constituem já, em princípio, momento atempado e via idónea para equacionar os problemas de constitucionalidade articulados com a decisão, o mesmo se dizendo da suscitação ocorrida apenas no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade. Também neste sentido o Tribunal Constitucional tem-se pronunciado repetidamente, como nos casos dos acórdãos citados ou nos n.ºs. 635/93 e 102/95, publicados no mesmo Diário, II Série, de 31 de Março de 1994 e 17 de Junho de 1995, respectivamente. Por outro lado, os apontados critérios jurisprudenciais não hão-se ser tomados rigidamente, de jeito a não permitir o recurso quando ao interessado se depare uma decisão relativamente à qual não seria razoável exigir uma prognose de um conteúdo e de um despacho inesperados, anómalos ou excepcionais. Como igualmente, quando não houve oportunidade processual de suscitar a questão anteriormente, tem lugar a flexibilização dos descritos critérios em benefício do direito de recurso (vejam-se, neste domínios específicos, os acórdãos n.ºs.
188/93 e 60/95, publicados nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, vols. 24, págs. 495 e segs., e 30, págs. 445 e segs., respectivamente). Ora, no caso sub judice, é manifesto que o recorrente só aludiu à problemática da constitucionalidade no requerimento de arguição de nulidades do acórdão do Supremo de 17 de Janeiro de 2002, o qual confirmou as decisões das instâncias e aplicou o mesmo complexo normativo, tendo, assim, o recorrente tido oportunidade para oportunamente suscitar as questões de constitucionalidade. Não o tendo feito, não pode tomar-se conhecimento do recurso por falta deste pressuposto de necessária congregação.
7. - Ainda que assim não fosse, não se poderia tomar conhecimento do recurso uma vez que as questões colocadas ou visam sindicar a decisão, em si mesma considerada, ou as normas em causa não foram aplicadas pela decisão recorrida com a interpretação invocada pelo recorrente.
8. - Na verdade, a 'questão' colocada pelo recorrente no ponto 2 do requerimento de interposição de recurso (aperfeiçoado), referente à matéria da 'nulidade e anulação dos actos administrativos', para além de não se reportar a uma questão de constitucionalidade normativa, visa atacar a própria decisão recorrida e os seus fundamentos, que o recorrente entende violar os preceitos constitucionais ali enumerados. Ora, no exercício deste controlo normativo escapa à competência cogniscitiva do Tribunal Constitucional - de acordo com o nosso ordenamento jurídico - qualquer forma de fiscalização sempre que a questão de constitucionalidade seja dirigida
à decisão judicial, em si mesma considerada. Assim, competindo ao recorrente o ónus de suscitação, deverá este cumpri-lo, referenciando-o normativamente, desse modo pondo em causa, por alegada violação de preceito ou de princípio constitucional, o critério jurídico utilizado na decisão ao aplicar a norma jurídica questionada. E, nesta medida, quando, nomeadamente, se discuta uma dimensão interpretativa, deverá fazê-lo não só atempadamente, como já se disse, mas de forma clara e perceptível, em termos de o Tribunal recorrido saber que tem essa questão para resolver e não subsistam dúvidas quanto ao sentido da mesma - até porque, frequentemente, não se revela tarefa fácil traçar com nitidez a linha de demarcação entre a interpretação discutida e a decisão qua tale, cuja reapreciação não pode, nesta sede, ser reaberta.
9. - Relativamente à questão colocada sob o ponto 3 do referido requerimento de interposição de recurso, embora a decisão recorrida haja feito aplicação das normas dos artigos 406º, nº1, e 879º, alínea c), do Código Civil, não aplicou estes preceitos com a interpretação propagada pelo recorrente, o que também obstaculiza ao conhecimento do recurso.
10. - Em face do exposto, nos termos do disposto no nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, decide-se não tomar conhecimento do recurso.
3. - Notificado, reclamou oportunamente a 'Câmara Municipal de Cabeceiras de Basto' para a conferência, de acordo com o disposto no nº 3 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, pugnando por decisão que determine o prosseguimento dos autos, de modo a tomar-se conhecimento do objecto do recurso.
Em síntese – e na natural decorrência da sua não concordância com os fundamentos da decisão lavrada – defende ter sido suscitada atempadamente a questão subjacente de constitucionalidade uma vez que, anteriomente à prolação do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17 de Janeiro de 2002, não lhe era exigível a prognose do então decidido, que se lhe afigura de conteúdo 'inesperado, anómalo ou excepcional'.
Na verdade – observa – julgando o Supremo que 'actos administrativos decidindo o não pagamento do preço pactuado em contrato jure civile são alheios às atribuições do ente público, e por isso nulos', aquele Alto Tribunal, pronunciou-se sobre 'a validade/nulidade de actos administrativos', o que se lhe representou inesperadamente, 'até porque se trata de matéria alheia à sua jurisdição'.
Por sua vez, dado que a decisão sumária acrescentou que, de qualquer modo, para além de não se estar em presença de uma questão de constitucionalidade normativa, o acórdão recorrido não aplicou as normas em sindicância com a interpretação propugnada pelo recorrente, encontrou aí, o reclamante, obscuridade ou ambiguidade, na medida em que se corporiza um
'pré-julgamento' e, por outro lado, não se toma conhecimento do recurso.
4. - Ouvida a parte contrária, esta levantou o problema da tempestividade da reclamação, considerou ser de indeferir a arguição equacionada e, sufragando o entendimento de que apenas se pretende protelar o trânsito em julgado da decisão condenatória, colocou a questão da má fé processual, apoiando-se, designadamente, na advertência já feita, a este respeito, pelo Supremo Tribunal de Justiça.
Lavrou-se, então, o seguinte despacho:
'O Supremo Tribunal de Justiça, no seu acórdão de 4 de Abril de 2002, ponderou que ‘por agora, não se condena o R. por litigância de má fé, embora parece de facto que ele pretende apenas protelar o pagamento do que deve’ (fls. 143). Face ao seu comportamento ulterior e dada a posição assumida pela ora recorrida e reclamada, é configurável esse tipo de litigância. Em face do sucintamente exposto e nos termos do nº 7 do artigo 84º da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, ouça-se a reclamante para se pronunciar, querendo.'
Respondendo a este específico ponto a reclamante considera não se encontrarem reunidos os pressupostos da litigância de má fé, pois da sua intenção resulta apenas a necessidade vivida de solucionar uma questão que, do ponto de vista material, não é de fácil prossecução: não serve o Direito nem a Moral – sublinha – que o vendedor, ora reclamado, receba o preço, com juros vencidos e vincendos, pela venda de uma coisa que ele próprio alterou e ainda hoje mantém em seu poder.
Cumpre decidir.
II
1. - A questão da tempestividade da reclamação.
Entende a recorrida e reclamada que a reclamação foi apresentada fora de prazo uma vez que, tendo dado entrada na secretaria deste Tribunal em 7 de Outubro de 2002, após notificação em 30 de Agosto, e ocorrendo o termo das férias judiciais em 14 de Setembro, o prazo de 10 dias para a prática do respectivo acto há muito se esgotara.
O exame da tramitação processual leva, no entanto, a concluir no sentido inverso, se bem que esses trâmites não tenham sido dados a conhecer à reclamada, o que se regista.
Com efeito, a decisão sumária foi notificada ao reclamante por via postal aos 28 de Agosto (cota de fls. 168) e o requerimento de reclamação deu entrada, por telecópia, em 24 de Setembro (fls. 186 e 188), consequentemente no prazo legal de 10 dias previsto no nº 1 do artigo 153º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 69º da Lei nº 28/82 (em 7 de Outubro deu entrada o original, única peça processual cuja junção foi dada a conhecer à reclamada – cota de fls. 189).
Assim sendo, não se verifica extemporaneidade na reclamação apresentada.
2. - A matéria da reclamação.
A decisão proferida, no sentido do não conhecimento do objecto do recurso, fundamentou-se, essencialmente, na inverificação de um dos pressupostos de admissibilidade exigidos para este tipo de recurso, o que respeita à falta de suscitação atempada da questão de constitucionalidade: a suscitação da matéria pertinente só ocorreu no momento de arguição de nulidades do acórdão recorrido e, como então se escreveu, não se verificou qualquer situação das habitualmente ressalvadas por anterior falta de oportunidade para o efeito.
Ora, a este respeito, a reclamante nada de novo aduz: não é de conceber uma decisão inesperada, anómala ou excepcional, quando, como é o caso, o Supremo se limitou a confirmar o decidido nas instâncias e a aplicar o mesmo complexo normativo.
Adjuvantemente, observou-se, ainda, que o não conhecimento do objecto do recurso conduziria, também, à constatação da não aplicação das normas recorridas na interpretação invocada.
Este argumento, obviamente, só releva como reforço argumentativo, dada a conclusão inicialmente atingida. Sempre se dirá, no entanto, não se detectar obscuridade ou ambiguidade, como se pretende, 'na exacta medida em que por um lado se aprecia ou se procede a um «pré-julgamento» ou «pré-juízo», e, por outro, se afirma que não se toma conhecimento do recurso.
Na realidade, a fundamentação anterior dispensava, na economia da decisão, o cuidado que se teve em apontar, como obter dictum, um outro tipo de fundamento que sempre conduziria a não conhecer do objecto do recurso.
3. - A questão da má fé processual.
Como se escreveu no despacho lavrado a fls. 192 , [o] Supremo Tribunal de Justiça, no seu acórdão de 4 de Abril de 2002, ponderou que
'por agora, não se condena o R. [Município de Cabeceiras de Basto] por litigância de má fé, embora pareça de facto que ele pretende apenas protelar o pagamento do que deve'.
A reclamada, B, entende constituir-se um procedimento característico de má fé, para, desse modo, se retardar o trânsito da decisão.
Ouvido expressamente a este respeito, o reclamante reconhece ter adoptado uma via procedimental que vise 'uma solução adequada ao caso', seja do ponto de vista moral, seja também do ponto de vista da justiça material, no que se tem empenhado 'desesperadamente'.
Constituindo litigância de má fé o uso manifestamente reprovável dos meios processuais com vista a protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão, sem prejuízo do prolongamento artificioso da lide que a presente reclamação sugere, atendendo, designadamente, à fragilidade das objecções equacionadas, considera-se, ainda assim, não ser este um caso modelarmente característico de má fé processual.
III
Em face do exposto decide-se:
a) tomar conhecimento da reclamação para a conferência da decisão sumária proferida nos autos;
b) indeferir a requerida reclamação, confirmando a decisão sumária no sentido do não conhecimento do objecto do recurso, pela fundamentação dela constante;
c) indeferir o pedido de condenação da reclamante por litigância de má fé. Lisboa, 16 de Janeiro de 2003 Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida