Imprimir acórdão
Processo nº 106/2004
3ª Secção Relatora: Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de fls. 557, a que se seguiram os acórdãos de fls. 582 (que indeferiu um pedido de aclaração) e de fls. 606
(que indeferiu uma arguição de nulidade), foi confirmado o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de fls. 449 que, por sua vez, confirmara a sentença da 1ª instância, de fls. 207, que absolveu a ré A., dos pedidos, formulados por B., de julgar nulo o seu despedimento, de lhe pagar as quantias que indicou a título de salários vencidos e vincendos ou de o reintegrar ao serviço da empresa. Em síntese, a sentença considerou que os pedidos eram improcedentes porque pressupunham a existência, entre as partes, de um contrato de trabalho, como o autor alegara existir; mas que a relação contratual que os ligava devia antes ser qualificada como prestação de serviço. Este julgamento foi confirmado integralmente pelo Tribunal da Relação do Porto, que remeteu para a sentença, nos termos do n.º 5 do artigo 713º do Código de Processo Civil. Quanto ao Supremo Tribunal de Justiça, que, como se viu, manteve a improcedência da acção, entendeu que, “atento o ónus da prova a cargo do Autor. – artº 342º do C. Civil – não importa aqui decidir que o contrato existente era um contrato de prestação de serviço, mas tão só concluir que não vem provada a existência de um contrato de trabalho”.
2. Veio então B. recorrer para o Tribunal Constitucional, nos seguintes termos:
(...)
«1º - O recorrente vem desde a 1ª Instância a esgrimir argumentos que, no seu modesto entender, demonstram a justeza da sua pretensão nestes autos
2° - De facto, a questão fundamental esgrimida prende-se com o facto de apurar se o recorrente tinha ou não um contrato de trabalho que o ligava à entidade recorrida
3° - Para tanto, entre o mais, sempre aduziu que os diversos peritos ao serviço da entidade recorrida desenvolviam todos o mesmo trabalho, da mesma forma e seguindo as mesmas regras
4° - Ou seja, a quantidade, a natureza e a qualidade do trabalho desenvolvido pelos diversos peritos da entidade recorrida era igual
5° - Tendo depois esses peritos tratamento diferente, quer no que respeita aos salários, quer no que respeita aos vínculos laborais estabelecidos com a entidade recorrida, sendo uns do quadro e com contrato de trabalho e outros não, e com contratos de outro tipo, onde se integra o recorrente.
6° - Desta forma nas doutas decisões proferidas encontram-se violados os artigos
13° e 59º n° 1 al. a) da C.R.P., conjugados com o artigo 1º do Regime Individual de Contrato de Trabalho D.L. 494O8 de 24 de Novembro de 1969 e 1152 do C.Civil
7º - Acrescendo ainda o facto de a decisão proferida por esse S.T.J. ir contra a linha de orientação definida em inúmeros acórdãos em matéria similar
8º - O recurso é interposto ao abrigo da al. b) do n° 1 do artº 70º da Lei n°
218/82 de 5 de Novembro, na redacção dada pela Lei n° 5/89 de 7 de Setembro
9º - Pretende-se ver apreciada a inconstitucionalidade dos artigos 1º do D.L.
494O8 e 1152 do C.Civil com a interpretação com que foi aplicada na decisão recorrida
10º - As normas supra referidas na forma como foram interpretadas violam os artigos 3° e 59º n° 1 al. a) da Constituição da República Portuguesa
11°- A questão da inconstitucionalidade foi suscitada pelo menos na deduzida nulidade do douto acórdão desse S.T.J. e aflorada anteriormente
12º - Tendo sido surpresa para o recorrente a interpretação desse S.T.J. uma vez que a diversa Jurisprudência produzida caminhava no sentido de o requerente acreditar na procedência do recurso.»
Pelo despacho de fls. 614, o recorrente foi convidado «a indicar, com precisão, a peça processual em que a questão da inconstitucionalidade foi suscitada, referenciando os trechos respectivos», por não constar tal indicação do requerimento de arguição de nulidade.
Respondendo, o recorrente veio dizer que «como se referiu já no requerimento de recurso a questão da Inconstitucionalidade referida foi invocada no requerimento da nulidade – vide 1º parágrafo da 5ª página do requerimento da deduzida nulidade, onde se refere: 'Estes factos objectivamente considerados demonstram tratamento desigual para igual trabalho, violando inclusivamente o principio constitucional de 'a trabalho igual salário igual'
6° - Por sua vez o aflorar desta inconstitucionalidade noutros articulados tem a ver com a questão que o recorrente, neste caso julga fulcral, de tratar de forma desigual os peritos que desenvolvem trabalho igual no modo, qualidade e quantidade, porquanto todos são tratados do mesmo modo pelo empregador independentemente de serem considerados ou não como fazendo parte dos quadros da recorrida
8º - Aí não se referindo expressamente a violação de algum preceito constitucional, aborda-se a matéria que, na deduzida nulidade se vem a arguir de gerar a inconstitucionalidade invocada
(...)
13º - E foi perante a decisão final que o reclamante se viu confrontado definitivamente com a inconstitucionalidade em causa e que motivou a sua concretização expressa».
3. A fls. 627, foi proferido despacho a não admitir o recurso interposto por B. para o Tribunal Constitucional, por não estar «cumprido o preceito da alínea b) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional – ter a inconstitucionalidade sido suscitada durante o processo (...)», já que em nenhum dos pontos indicados pelo recorrente se «pode surpreender válida suscitação de qualquer questão de inconstitucionalidade». Veio então o recorrente reclamar para o Tribunal Constitucional, “nos termos do artº 76º n.º 4 da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro”, sustentando ter invocado as inconstitucionalidades que pretende ver apreciadas em momentos diversos, em
«extractos» que «têm de ser compreendidos dentro da imprevisibi1idade da interpretação dada à norma pelas diversas instâncias percorridas, nomeadamente o S.T.J.
De facto sempre julgou, ao longo do seu percurso processual o reclamante que dos autos corria claro, que a sua relação laboral com a Ré era definida e certa.
(...) Sendo ainda de realçar que a forma como os Tribunais se pronunciaram sobre a questão em apreciação nestes autos, atenta a matéria provada e a jurisprudência existente a tal respeito, foi de completa surpresa o que acabou por inviabilizar a invocação expressa da inconstitucionalidade agora em causa E por isso, que quase que acidentalmente foi invocada no requerimento da nulidade e aflorada a matéria de sustentação anteriormente Na verdade, tendo a decisão interpretado de modo tão específico a norma e os factos respectivos, e, na óptica do reclamante e com o devido respeito, em contradição com muita da jurisprudência referida aliás, pelo reclamante nas suas alegações, não era exigível a este prever essa interpretação e consequentemente que se alargasse mais nas suas considerações sobre a eventual inconstitucionalidade existente em tal interpretação. E foi perante a decisão final que o reclamante se viu confrontado definitivamente com a inconstitucionalidade em causa e que motivou a sua concretização expressa Assim por todo o exposto não se mostrava adequado exigir, no caso concreto, um juízo expresso e claro por parte do reclamante capaz de antecipar o proferimento da decisão que veio a ser proferida pelo S.T.J., atento todo o exposto, suscitando de forma expressa e clara e com alegação fundamentada a questão da inconstitucionalidade, descortinada só com a decisão final do S.T.J.. Logo que a descortinou, suscitou-a.
De resto, Jurisprudência desse Tribunal tem defendido esta posição em vários Acórdãos desse Tribunal Todas as interpretações defendidas nos diversos acórdãos ao longo de todo o percurso processual dos presentes autos violam o princípio constitucional de a trabalho igual salário igual previsto no artigo 59 n.º 1 al. a) da C.R.P ., justificando a presente reclamação e militando a favor do seu deferimento».
Notificado para o efeito, o Ministério Público veio pronunciar-se no sentido do indeferimento da reclamação, já que, como sustenta, “carece ostensivamente de qualquer fundamento, já que o recorrente não suscitou, durante o processo e em termos procedimentalmente adequados, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, idónea para servir de base ao recurso interposto para este Tribunal”.
4. Com efeito, a reclamação é manifestamente improcedente, pois falta um pressuposto indispensável ao conhecimento do objecto do recurso: não foi suscitada durante o processo, nos termos exigidos pela al. b) do nº 1 do artigo
70º da Lei nº 28/82, a inconstitucionalidade das normas que o reclamante, no requerimento de interposição de recurso, pretende seja apreciada pelo Tribunal Constitucional. Como este Tribunal tem reiteradamente afirmado, este requisito da invocação da inconstitucionalidade de uma norma ou de uma sua interpretação durante o processo traduz-se na necessidade de que tal questão seja colocada perante o tribunal recorrido de forma a proporcionar-lhe a oportunidade de a apreciar. Só nos casos excepcionais e anómalos, que aqui manifestamente não ocorrem, em que o recorrente não dispôs processualmente dessa possibilidade, é que será admissível a arguição em momento subsequente (cfr., a título de exemplo, os Acórdãos deste Tribunal com os nºs 62/85, 90/85 e 160/94, publicados, respectivamente, nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5º vol., págs. 497 e 663 e no Diário da República, II, de 28 de Maio de 1994). Sustenta o reclamante não lhe ser exigível o cumprimento deste ónus, nos termos relatados, por ter sido surpreendido com a interpretação adoptada para as normas que quer ver apreciadas. Todavia, a verdade é que foi controvertida ao longo de todo o processo a possibilidade de ser considerada a qualificação do contrato, que desde a primeira instância foi considerado como de prestação de serviço. Não se pode, pois, considerar que o reclamante tenha sido colocado perante uma interpretação das normas impugnadas com a qual não pudesse, razoavelmente, contar. Isto significa, também, que, ainda que se pudesse – e não pode, como apontou o Supremo Tribunal de Justiça – considerar suscitada a inconstitucionalidade das normas indicadas no requerimento de interposição de recurso na arguição de nulidade, como sustenta o reclamante, também se teria de concluir pelo não conhecimento do recurso pela mesma razão.
É que o requerimento de arguição de nulidade da decisão recorrida não é, em princípio – e não é, seguramente, neste caso –, o momento idóneo para que o recorrente coloque perante o tribunal recorrido a questão da inconstitucionalidade. Como o Tribunal Constitucional tem também repetidamente afirmado, salvo em casos excepcionais – que aqui não ocorrem –, o requerimento de arguição de nulidade da decisão recorrida não é momento processualmente adequado para se suscitar a inconstitucionalidade, porque “a eventual aplicação de uma norma inconstitucional não constitui, obviamente, um erro material, não é causa de nulidade da decisão judicial, nem torna esta obscura ou ambígua”, de forma a permitir ao tribunal a quo dela conhecer, “por aplicação do disposto no nº 1 do artigo 666º do Código de Processo Civil” (Acórdão nº 62/85 cit.).
5. Acresce, no caso, que a razão fundamental apontada pelo Supremo Tribunal de Justiça para a improcedência da revista foi, como se referiu, a de que “atendo o ónus da prova a cargo do Autor. – artº 342º do C. Civil – não importa aqui decidir que o contrato existente era um contrato de prestação de serviço mas tão só concluir que não vem provada a existência de um contrato de trabalho”. Isto significa que, não tendo sido colocada qualquer questão de constitucionalidade relativamente à norma do n.º 1 do citado artigo 342º do Código Civil, nenhuma utilidade teria o julgamento do objecto do presente recurso, já que a sua eventual procedência não implicaria qualquer alteração da decisão recorrida. Como o Tribunal Constitucional tem também repetidamente afirmado, o recurso de constitucionalidade tem natureza instrumental, o que implica, como se sabe, que
é condição do conhecimento do respectivo objecto a possibilidade de repercussão do julgamento que nele viesse a ser efectuado na decisão recorrida (ver, por exemplo, o Acórdão deste Tribunal com o nº 463/94, publicado no Diário da República, II Série, de 22 de Novembro de 1994).”
6. Assim, indefere-se a presente reclamação. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 ucs., sem prejuízo do apoio judiciário.
Lisboa, 19 de Março de 2004
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Vítor Gomes Luís Nunes de Almeida