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Proc. nº 537/2002
2ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma (Bravo Serra)
Acordam, em Conferência, no Tribunal Constitucional
1. Em 30 de Setembro de 2002 foi proferida pelo então Relator decisão sumária com o seguinte teor:
1. Tendo A, B, C, D, E, F, G e H deduzido, contra o Município de Sintra e pelo Tribunal Tributário de 1ª Instância de Lisboa, pedido de declaração de ilegalidade das normas constantes dos artigos 42º a 46º da Tabela de Taxas e Licenças, vigente até 1998 - Tabela essa aprovada em 5 de Fevereiro de 1988 pela Assembleia Municipal de Sintra e alterada em 20 de Outubro de 1989 -, veio, em
19 de Outubro de 2000, a ser proferida sentença por intermédio da qual foi declarada a ilegalidade das referidas normas, mas tão somente quando as mesmas se reportam aos postos de abastecimento de carburantes que se encontrem totalmente instalados em propriedade privada e desde que o abastecimento se efectue também em propriedade privada, assim se não declarando a requerida ilegalidade quando nas aludidas normas se prevê a exigibilidade das taxas para os postos de abastecimento de carburantes quando estes se encontrem total ou parcialmente instalados em espaços do domínio público ou quando o abastecimento se efectue nesses espaços. Não se conformando com o assim decidido recorreram para o Tribunal Central Administrativo A, C, E, G e H, e também o Município de Sintra. Aquele Tribunal Central, por acórdão de 29 de Janeiro de 2002, julgou improcedente o recurso interposto pelo Município de Sintra e procedente o recurso interposto pelas A, C, E, G e H, vindo a declarar, com força obrigatória geral, a ilegalidade das normas acima indicadas ‘por violação do princípio da proporcionalidade consagrado nos artºs 18º nº 2 e 266 nº 2, na dimensão do princípio da proibição do excesso, da necessidade e adequação’. Pode ler-se nesse aresto, em dados passos:
Chegados aqui e, repetindo, que as taxas tem por pressuposto de facto a actividade administrativa de prestação de um serviço, ou a utilização de bens do domínio público, ou a remoção de um limite jurídico à actividade dos particulares, é evidente que a matéria de facto provada evidencia como pressuposto das taxas exigidas a utilização pela Recorrida de terrenos sitos no domínio público da Recorrente, isto é, o uso privativo da via pública, não podendo, por isso, sufragar-se o entendimento sustentado na sentença de que se trata de impostos.
O que nos leva à apreciação da alegada desproporção do aumento deliberado em 1989 pelo Município de Sintra nos valores das taxas de ocupação exigidas à Recorrida e que constituem a base de cálculo das liquidações impugnadas.
Seguindo Mário Esteves de Oliveira, P.C. Gonçalves e J.P. Amorim, in
‘Código de Procedimento Administrativo - Comentado’, 2ª edição, Almedina, pág.
104, dispõe o artº 5º nº 2 do CPA:
As decisões da Administração que colidam com direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos só podem afectar essas posições em termos adequados e proporcionais aos objectivos a realizar.’
Como corolários deste princípio e no confronto com a esfera jurídica do particular, a decisão administrativa deve apresentar-se:
- adequada - ‘apta à prossecução do interesse público visado’;
- necessária - ‘necessária ou exigível (por qualquer outro meio não satisfazer o interesse público visado);
- proporcional (em sentido estrito) - ‘proporcional e justa em relação ao benefício alcançado para o interesse público (proporcionalidade custo/benefício)’.
Não é por acaso que o princípio da proporcionalidade, também é conhecido por princípio da proibição de excesso, pois que se trata de controlar a relação de adequação medida-fim - vd. Gomes Canotilho in ‘Direito Constitucional’, Almedina, 6ª edição, págs. 382/384.
Este princípio da proporcionalidade tem entre nós assento constitucional nos artºs 18º nº 2 e 266º nº 2 CRP, sendo por este último normativo erigido em princípio materialmente constitutivo e conformativo de toda a Administração Pública.
(...)
Salvo o devido respeito, não se entende o propósito de passar de 30
000$00 para 300 000$00 de taxa (medida adoptada) em ordem à manutenção da ocupação da via pública pela bomba de gasolina da Recorrida (fim de interesse público prosseguido).
O aumento de 1000% atinge um percentual, no mínimo, inusitado, sem qualquer parâmetro de correspondência, nomeadamente, com os níveis de infla[]ção no período considerado.
(...)
Ou seja, há um salto das centenas de escudos para dois mil e três mil contos em cada ano, daí a referida desproporção do aumento da taxa no confronto com os meios - que se mantêm inalterados - por uso privativo do domínio público, em ordem a satisfazer o abastecimento público de combustível, interesse público prosseguido pela Autarquia através das instalações da Recorrida.
Todavia, não se reconhece a bondade da tese da Recorrida e sustentada na sentença de a violação do princípio da proporcionalidade por excesso do aumento transmutar a natureza jurídica da taxa em imposto.
Tal não sucede porque os pressupostos de facto em causa não sofreram alteração.
De facto, a pretensão de uso privativo do domínio público manifestada pela Recorrida permanece como pressuposto de facto da obrigação de pagamento do valor pecuniário exigido pela CMS a título de taxa.
(...)
O princípio da proporcionalidade não tem em vista avaliar da realização harmoniosa dos interesses público e particular envolvidos na decisão administrativa, pelo contrário, ‘...tem ínsita, em si, a ideia de prevalência do interesse público, sendo em função da sua intensidade concreta que se avalia se as medidas em causa são, ou não ... as menos desfavoráveis (ou as mais favoráveis) para os administrados’ - CPA Comentado, AA. citados, pág. 723.
*
Acresce ainda, neste domínio, que no exercício da sua actividade, ‘em todas as suas formas e fases, a Administração Pública e os particulares devem agir e relacionar-se segundo as regras da boa-fé’, princípio estabelecido no artº 6º-A nº 1 CPA que, no seu nº 2, estipula, ainda, que na aplicação do princípio da boa-fé, enquanto princípio geral de direito, plasmado, entre outros, no artº 334º C. Civil, ‘devem ponderar-se os valores fundamentais do direito ... e, em especial, a confiança suscitada na contraparte ... [e] o objectivo a alcançar’.
Como regra de conduta no confronto com os particulares e em ordem à realização do interesse público presente no caso concreto, deve a Administração abster-se de comportamentos em contradição com o comportamento anterior, quando este seja apto a criar a convicção no destinatário dos actos da Admi[nis]tração de que não se lhe seguirá uma actuação contraditória, gerando também, por esse motivo, a confiança em que a Administração irá prosseguir na mesma linha de actuação.
Confiança digna de tutela e protecção legal, pela proibição de venire contra factum proprium, isto é, de contradição directa entr[e] a situação jurídica originada pelo ‘factum proprium’ praticado e o comportamento subsequente, em negação de anterior situação.
(...)
O que constitui, de acordo com as razões de direito supra expostas, violação manifesta e grosseira dos princípios da proporcionalidade, da boa-fé e da confiança, a que a actividade administrativa está submetida, inquinando os actos de liquidação de vício de violação de lei e passíveis de nulidade, nos termos previstos no artº 133º nº 2 d) CPA.
(...)
Concluindo, nos termos do artº 11º nº 1 c) da Lei 1/87 de 6.1 os municípios podem cobrar taxa pela ‘ocupação do domínio público e aproveitamento dos bens de utilização pública’, cujo produto constitui receita municipal conforme estabelecido nº artº 4º nº 1 g) do citado diploma, competindo à assembleia municipal ‘estabelecer nos termos da lei, taxas municipais e fixar os respectivos quantitativos’, como preceituado no artº 39º nº 2 1) do Dec. Lei
100/84 de 29.3, com observância do princípio da proporcionalidade, consignado no artº 5º nº 2 CPA. (...)
É do aresto de que partes acima se encontram transcritas que, pela Câmara Municipal de Sintra, vem interposto recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, com vista à ‘apreciação da constitucionalidade das normas regulamentares do Capítulo IX, artigos 42º a 46º da Tabela de Licenças e Taxas emitida e aprovada pela Assembleia Municipal de Sintra, por deliberação de 5 de Fevereiro de 1988, cuja aplicação foi recusada no douto Acórdão recorrido por violação do princípio da proporcionalidade consagrado nos artigos 18º, n.º 2 e 266º n.º 2 da CRP, na dimensão do princípio da proibição do excesso, da necessidade e da adequação’. O recurso veio a ser admitido por despacho proferido em 24 de Maio de 2002 pela Juíza Relatora do Tribunal Central Administrativo.
2. Não obstante tal despacho, porque o mesmo não vincula este Tribunal (cfr. nº
3 do artº 76º da Lei nº 28/82) e porque se entende que o recurso não deveria ter sido admitido, elabora-se, ex vi do nº 1 do artº 78º-A da mesma Lei, a presente decisão, por intermédio da qual se não toma conhecimento do objecto a vertente impugnação. Na verdade, tratando-se, como se trata, de um recurso estribado na alínea a) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, mister é que tenha ocorrido na decisão pretendida impugnar perante este Tribunal a recusa de aplicação de qualquer norma com fundamento na sua inconstitucionalidade. Ora, percorrendo todo o texto do aresto intentado recorrer, em passo algum se vislumbra a recusa de aplicação, directa ou indirecta, explícita ou implícita, dos normativos ínsitos nos artigos 42º a 46º da Tabela de Taxas e Licenças aprovada em 5 de Fevereiro de 1988 pela Assembleia Municipal de Sintra, alterada em 20 de Outubro de 1989 e que vigorou até 1998, com fundamento na sua contraditoriedade com a Constituição. A razão da ilegalidade declarada com força obrigatória geral pelo acórdão sub iudicio fundou-se na circunstância de os normativos objecto daquela declaração violarem o que se prescreve no nº 2 do artº 5º e no nº 1 do artº 6º-A [e não olvidando o que se estatui no artº 133º, nº 2, alínea d)], todos do Código do Procedimento Administrativo. Como se extrai das transcrições supra efectuadas, na perspectiva daquele aresto, o referido nº 2 do artº 5º do Código do Procedimento Administrativo consagra que as decisões da Administração que colidam com direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos dos particulares, devem ser pautadas pelo princípio da proporcionalidade, princípio esse que tem assento constitucional, devendo, pois, ser aferido em consonância com o dimensionamento com que a Lei Fundamental o postula, já que a mesma o erige como princípio informativo e enformativo da actividade administrativa. Significa isto, pois, que o princípio da proporcionalidade que, na óptica do acórdão sub specie, decorre do nº 2 do artº 5º do Código do Procedimento Administrativo, terá de ser olhado, dimensionado e interpretado de harmonia com a parametrização utilizada para a visualização do mesmo princípio constitucionalmente consagrado, o que inculca que os corolários deste decorrentes deverão ser adoptados tocantemente àquele. Dir-se-á, assim, que, ao fim e ao resto, o que o acórdão em causa efectuou foi uma interpretação do nº 2 do artº 5º do Código do Procedimento Administrativo de acordo com o nº 2 do artigo 18º e com o nº 2 do artigo 266º, um e outro do Diploma Básico, vindo, na sequência, a aferir da conformidade com aquele nº 2 do artº 5º por banda dos normativos objecto do pedido de declaração de ilegalidade. Este raciocínio, que conduziu à declaração de ilegalidade com força obrigatória geral, apresenta-se, pois, como muito diverso daqueloutro consistente na recusa de aplicação das normas a que o pedido daquela declaração se reconduzia. E, justamente por isso, é que o representante do Ministério Público junto do Tribunal Central Administrativo, notificado que foi do acórdão lavrado naquele Tribunal, não efectivou o dever que sobre si impende e que se encontra prescrito no nº 3 do artigo 280º da Constituição e no nº 3 do artº 72º da Lei nº 28/82. Neste contexto, não se toma conhecimento do objecto do presente recurso. Sem custas, por não serem elas devidas.
A Câmara Municipal de Sintra reclamou da decisão transcrita, por força do nº 3 do artº 78º-A da Lei nº 28/82, sustentando que 'o acórdão recorrido entendeu que as normas da Tabela de Licenças e Taxas sub judice incorrem em violação do princípio da proporcionalidade consagrado nos artigos
18º, n.º 2 e 266º, n.º 2 da Constituição' pelo que a 'violação de preceitos constitucionais traduz-se, ..., em inconstitucio-nalidade', o que 'determinou a recusa de aplicação das mesmas normas', sendo que 'a recusa de aplicação não tem que ser expressa, bastando ser implícita'.
Os recorridos, ouvidos sobre a reclamação, nada vieram dizer.
2. Elaborado projecto de acórdão no sentido do indeferimento da reclamação, este não obteve vencimento no Pleno da 2ª Secção do Tribunal Constitucional.
3. O Tribunal entende, diferentemente da decisão sumária reclamada, que houve uma recusa de aplicação com fundamento em inconstitucionalidade das normas da Tabela de Licença e Taxas (artigos 42º e 46º), aprovada pela Assembleia Municipal de Sintra em 5 de Fevereiro de 1988 e alterada em 20 de Outubro de
1989, quando o acórdão recorrido invoca como fundamento de ilegalidade a violação do princípio da proporcionalidade, com 'assento constitucional nos artigos 18º, nº 2 e 266º, nº 2, da C.R.P.'. Apesar de o acórdão recorrido, na sua fundamentação, concluir pela violação do artigo 5º, nº 2, do Código do Procedimento Administrativo, fá-lo na medida em que este consagra o princípio da proporcionalidade na mesma dimensão que é consubstanciada na Constituição. Desta forma, não pode deixar de se concluir que foi em função de um princípio constitucional que as normas foram invalidadas, de modo que a respectiva decisão de ilegalidade deve ser tratada como uma recusa de aplicação para efeitos do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional. Esta análise impõe-se tanto mais que, de outro modo, por força de uma qualificação do vício também como de ilegalidade (levada a cabo pelo tribunal recorrido) estaria subtraída aos mecanismos de controlo de constitucionalidade uma efectiva desaplicação de normas com fundamento em inconstitucionalidade.
4. Perante o exposto, o Tribunal Constitucional entende que devem prosseguir os autos para alegações. Lisboa, 15 de Janeiro de 2003 Maria Fernanda Palma Paulo Mota Pinto Bravo Serra (vencido, de acordo com a declaração de voto junta) José Manuel Cardoso da Costa Tem voto de vencido o Conselheiro Guilherme da Fonseca que não assina por ter cessado funções no Tribunal Constitucional. Declaração de Voto
Votei vencido na decisão que congregou a maioria do Tribunal, impondo-se que, brevitatis causa, indique as razões da minha dissensão.
Assim, em primeiro lugar, manteria a decisão reclamada pela fundamentação que à mesma foi carreada.
Mas, a par desta, aditarei, por um lado, que, a meu ver, a competência da jurisdição administrativa para declarar a ilegalidade com força obrigatória geral de preceitos regulamentares (ou de outras normas emitidas no desempenho da função administrativa pelos órgãos da administração pública regional ou local ou das pessoas colectivas de utilidade pública administrativa ou dos concessionários) será extravasada se porventura uma tal declaração de ilegalidade repousar na consideração de que os declarandos preceitos são, eles mesmos, desconforme com a Lei Fundamental (cfr. nº 5 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais aprovado pelo Decreto-Lei nº 129/84, de 27 de Abril). Um juízo de desconformidade com a Constituição emitido com valência obrigatória geral somente poderá ser levado a efeito pelo Tribunal Constitucional e não pela jurisdição administrativa, que, neste particular, apenas poderá efectuar a declaração de ilegalidade com força obrigatória geral de preceitos regulamentares se estes violarem lei preexistente.
Neste contexto, depara-se-me que a decisão tomada pelo Tribunal Central Administrativo e ora pretendida impugnar perante o Tribunal Constitucional unicamente poderia ser entendida - sob pena de se concluir pelo desbordamento de competência material daquele primeiro órgão de administração de justiça - no sentido de a declaração de ilegalidade nela contida se ter estribado na violação do disposto no nº 2 do artº 5º do Código de Procedimento Administrativo que consagra que as decisões da Administração que colidam com os direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos dos particulares só podem afectar essas posições desde que aquelas sejam tomadas adequada e proporcionalmente aos objectivos a prosseguir, e não porque as normas ínsitas nos artigos 42º a 46º da Tabela de Taxas e Licenças aprovada em 5 de Fevereiro de 1988 pela Assembleia Municipal de Sintra (alterada em 20 de Outubro de 1989) eram directamente violadoras do princípio da proporcionalidade que deflui dos artigos 18º, nº 2, e 266º, nº 2, do Diploma Básico.
Por outro lado, ainda que, tomando o Tribunal Constitucional conhecimento do recurso ora em causa, o mesmo se viesse a pronunciar no sentido de o alegado juízo de inconstitucionalidade que teria sido levado a efeito pela decisão impugnada se não dever manter (ou seja, ainda que este Tribunal se pronunciasse pela não desarmonia com a Constituição dos indicados normativos), é sustentável que o Tribunal Central Administrativo viesse a manter a sua decisão de declaração de ilegalidade com força obrigatória geral, justamente porque entendia que esses normativos, muito embora não enfermem do vício de inconstitucionalidade (acatando, neste ponto, a eventual decisão tomada pelo Tribunal Constitucional), eram contrários ao aludido nº 2 do artº 5º do Código de Procedimento Administrativo, pois que se postam como desadequados e desnecessários à satisfação do interesse público consistente na manutenção da ocupação da via pública e, também, porque estabelecem uma desproporcionalidade entre o custo que acarreta o pagamento da taxa reportadamente aos benefícios usufruídos por quem a esta é sujeito.
Nesta eventualidade, o recurso de constitucionalidade deparar-se-ia desprovido de utilidade, como é claro.
Pelos aventados motivos, defendi que se não deveria tomar conhecimento do recurso. Bravo Serra