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Processo n.º 521/00 Plenário Relator: Cons. Mário Torres
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional,
1. O Provedor de Justiça, no uso da competência prevista no artigo
281.º, n.° 2, alínea d), da Constituição da República Portuguesa (CRP), requereu a este Tribunal Constitucional que fosse apreciada e declarada, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade, por violação do artigo 30.º, n.º 4, da CRP, da norma constante do artigo 5.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 251/98, de
11 de Agosto.
Este diploma, que regula o exercício da actividade de transporte público de aluguer em veículos automóveis ligeiros de passageiros, no seguimento de autorização legislativa concedida pela Lei n.º 18/97, de 11 de Junho, estabelece, nos seus artigos 4.° e 5.°, n.° 1, como um dos requisitos para o acesso a essa actividade a idoneidade de todos os gerentes, administradores ou directores da empresa candidata ao alvará, competindo a apreciação dessa idoneidade à Direcção-Geral de Transportes Terrestres (artigo 3.°, n.° 1), determinando o questionado artigo 5.°, n.° 2, que é considerado 'inidóneo' quem tiver sido condenado em pena de prisão efectiva igual ou superior a três anos, salvo reabilitação, e por um período de três anos após o fim da pena.
Segundo o requerente, 'esta consequência danosa é automática, não sendo permitido ao aplicador da norma qualquer juízo de necessidade, proporcionalidade e adequação na sua aplicação a um caso concreto', decorrendo, assim, 'automaticamente da sentença condenatória a 3 ou mais anos de prisão efectiva a interdição de exercício da actividade em apreço pelo período de 3 anos', o que 'viola frontalmente a regra inscrita no artigo 30.°, n.° 4, da Lei Fundamental', segundo a qual 'nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos', já que se faz
'corresponder à aplicação de uma pena de prisão com um mínimo de certa duração a restrição de um direito, estando em causa o teor não só do artigo 47.°, n.° 1, como o do artigo 61.°, n.° 1, da Constituição', que, respectivamente, consagram as liberdades de escolha de profissão e de iniciativa económica privada.
Admitindo como razoável que 'a Administração, habilitada pela lei, pondere no caso concreto a idoneidade moral e cívica dos gerentes, administradores e directores de cada empresa candidata ao exercício da actividade de transportadora de táxi', entende, porém, o requerente que 'não é de todo admissível a previsão mecânica que a lei faz no normativo em foco, desencadeando os efeitos precisamente contrários aos que a Constituição pretende salvaguardar com o teor do n.° 4 do seu artigo 30.°', fazendo-se 'corresponder à aplicação de uma pena de prisão com um mínimo de certa duração uma verdadeira pena acessória, sem que esta tenha sido aplicada pela entidade judicial competente'.
Por outro lado, a 'excepção' resultante da previsão, nos artigos
15.º e 16.º da Lei n.º 57/98, de 18 de Agosto, de mecanismos que, ope legis ou por mediação judicial, obstam aos efeitos gravosos previstos na norma impugnada, não pode servir, segundo o requerente, para legitimar a 'regra', que é a da produção de efeitos automáticos, em violação do teor do artigo 30.°, n.° 4, da CRP.
2. Na sua resposta, o Primeiro-Ministro sustentou a conformidade constitucional da norma questionada, desenvolvendo argumentação que condensou nas seguintes conclusões:
'Não deve ser declarada a inconstitucionalidade da norma ínsita no n.° 2 do artigo 5.° do Decreto-Lei n.° 251/98 por violação do artigo 30.°, n.° 4, da Constituição.
O conteúdo da norma arguida de inconstitucional não preenche o conceito jurídico-constitucional de perda de direitos profissionais (os únicos que estão aqui em causa), nem tão-pouco se poderá considerar ofensiva do princípio fundamental supremo da dignidade da pessoa humana.
Acresce que a norma ínsita no n.° 2 do artigo 5.° do diploma identificado nos autos não pode deixar de ser interpretada em conformidade com o disposto no n.° l do artigo 47.° da Constituição.
No caso presente, o que está em causa não é a liberdade de escolha de uma determinada actividade ou profissão, mas a do exercício temporário da mesma. Enquanto a primeira se configura como independente do estatuto da actividade ou profissão em concreto, o mesmo não poderá dizer-se da segunda. Encontra-se submetida a um estatuto (ou normação) de natureza pública.
A esse estatuto público, determinado pelo Decreto-Lei n.° 251/98, assiste-lhe constitucionalmente a possibilidade de discriminar condições ou limites mais intensos ao exercício da actividade dos transportes em táxi, sendo legítimo ao legislador discriminar pressupostos, subjectivos e objectivos, condicionadores do seu livre exercício.
Esses limites são admissíveis desde que resultem teleologicamente vinculados à realização de um fim de interesse público (: qualidade do serviço a prestar, segurança rodoviária e a dos próprios utentes) e não violem o princípio jurídico-constitucional da proibição do excesso (: necessidade, exigibilidade e proporcionalidade).
Não há violação de gozo de nenhum direito fundamental, mas a sujeição de uma actividade a um estatuto público constitucionalmente necessário, exigível, adequado e proporcional ao fim que o legislador visa prosseguir: o incremento da qualidade do serviço de transporte público de aluguer em veículos ligeiros de passageiros, o que implica exigências de qualificação adequadas em termos de segurança rodoviária e da segurança dos próprios utentes.
Do que se trata, única e exclusivamente, é de uma limitação temporária ao exercício de uma certa e determinada actividade ou profissão, pelo período de três anos após o cumprimento da pena, a quem tenha sido condenado em pena de prisão efectiva igual ou superior a três anos, salvo reabilitação.
Sobre esta matéria rege o disposto no n.° l do artigo 47.° da Constituição, que autoriza, em nome do «interesse colectivo», o legislador a configurar, no caso concreto, o exercício de um direito fundamental. Trata-se de uma norma legal conformadora, que autoriza o legislador a definir, precisar e concretizar o conteúdo da protecção de um direito fundamental.
Não se trata da «violação» de um direito fundamental, mas de uma
«restrição» constitucionalmente autorizada do mesmo. Consequentemente, o que esse Venerando Tribunal terá de determinar é se essa restrição levada a cabo pelo legislador se mostra conforme com à Constituição e, designadamente, ao disposto no n.° 1 do artigo 47.°
Este último apresenta-se como uma «norma de competência», que autoriza o legislador a assim proceder. Mais: tanto quanto se sabe, uma «restrição» não é o mesmo que uma «violação» de um direito fundamental. A primeira é admitida pelo
«pressuposto de facto» desse direito, a segunda não.
Nestes termos, e sem prescindir do douto suprimento de Vossas Excelências, não deve a norma identificada nos autos ser julgada inconstitucional.'
3. Debatido o memorando apresentado pelo Presidente do Tribunal, nos termos do artigo 63.° da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro), e fixada a orientação sobre as questões a resolver, procedeu-se à distribuição do processo, cumprindo agora formular a decisão.
4. O Decreto-Lei n.° 251/98, de 11 de Agosto, que regula a actividade de transportes públicos de aluguer em veículos automóveis ligeiros de passageiros, adiante designados por transportes em táxi, prevê um triplo licenciamento: da actividade (artigos 3.º a 9.º), dos veículos afectos aos transportes em táxi (artigos 10.º a 12.º) e dos lugares nos contingentes fixados para cada concelho (artigos 13.º e 14.º).
Quanto ao licenciamento da actividade, dispunham os artigos 3.º a
5.º da versão originária do diploma:
Artigo 3.º Licenciamento da actividade
1 - A actividade de transportes em táxi só pode ser exercida por sociedades comerciais ou cooperativas licenciadas pela Direcção-Geral de Transportes Terrestres (DGTT), sem prejuízo do disposto no artigo 38.º
2 - A licença para o exercício da actividade de transportes em táxi consubstancia-se num alvará, o qual é intransmissível e é emitido por um prazo não superior a cinco anos, renovável mediante comprovação de que se mantêm os requisitos de acesso à actividade.
3 - A DGTT procederá ao registo de todas as empresas titulares de alvará para o exercício desta actividade.
Artigo 4.º Requisitos de acesso
São requisitos de acesso à actividade a idoneidade, a capacidade técnica ou profissional e a capacidade financeira.
Artigo 5.º Idoneidade
1 - O requisito de idoneidade deve ser preenchido por todos os gerentes, directores ou administradores da empresa.
2 - Para efeitos do disposto no presente diploma, não são consideradas idóneas, durante um período de três anos após o cumprimento da pena, as pessoas que tenham sido condenadas em pena de prisão efectiva igual ou superior a três anos, salvo reabilitação.
3 - Nos termos do Código de Processo Penal, podem verificar-se os seguintes impedimentos:
a) Proibição legal do exercício do comércio;
b) Condenação, com trânsito em julgado, qualquer que tenha sido a natureza do crime, nos casos em que tenha sido decretada a interdição do exercício da profissão de transportador;
c) Condenação, com trânsito em julgado, por infracções graves e repetidas
à regulamentação sobre os tempos de condução e de repouso ou à regulamentação sobre a segurança rodoviária, nos casos em que tenha sido decretada a interdição do exercício da profissão de transportador;
d) Condenação, com trânsito em julgado, por infracções cometidas no exercício da actividade transportadora às normas relativas ao regime das prestações de natureza retributiva ou às condições de higiene e segurança no trabalho, nos casos em que tenha sido decretada a interdição do exercício da profissão de transportador.
O Decreto-Lei n.º 251/98 foi objecto de alteração e revisão pelo Decreto-Lei n.° 41/2003, de 11 de Março, com efeitos retrotraídos a 1 de Janeiro de 2003, conforme determinação do respectivo artigo 5.º
Um dos preceitos modificados foi o do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º
251/98, cuja redacção passou a ser a seguinte:
Artigo 5.º
(...(
1 -
.....................................................................................
2 - São consideradas idóneas as pessoas relativamente às quais se não verifique algum dos seguintes impedimentos:
a) Proibição legal do exercício do comércio;
b) Condenação, com trânsito em julgado, qualquer que tenha sido a natureza do crime, nos casos em que tenha sido decretada a interdição do exercício da profissão de transportador;
c) Condenação, com trânsito em julgado, por infracções graves e repetidas
à regulamentação sobre os tempos de condução e de repouso ou à regulamentação sobre a segurança rodoviária, nos casos em que tenha sido decretada a interdição do exercício da profissão de transportador;
d) Condenação, com trânsito em julgado, por infracções cometidas no exercício da actividade transportadora às normas relativas ao regime das prestações de natureza retributiva ou às condições de higiene e segurança no trabalho, nos casos em que tenha sido decretada a interdição do exercício da profissão de transportador.
3 - (Revogado.)
Desta alteração resultou a revogação da norma do primitivo n.º 2 deste artigo 5.º, cuja declaração de inconstitucionalidade constitui o objecto do presente pedido.
Face à revogação operada, coloca-se a questão da manutenção da utilidade no conhecimento do mérito do pedido.
Constitui entendimento reiterado deste Tribunal - cf., por todos, o Acórdão n.º 269/01 (Diário da República, II Série, n.º 167, de 20 de Julho de
2001, pág. 12 157; e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 50.º vol., pág. 109), que seguiremos de perto e do qual consta extensa referência a jurisprudência anterior -, que o facto de as normas objecto de um pedido de declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, haverem sido, entretanto, revogadas não impossibilita automaticamente o conhecimento desse pedido (atentos os efeitos ex tunc que aquela declaração, em princípio, produzirá: artigo 282.º, n.º 1, da CRP): ponto é que o conhecimento do pedido conserve, no caso, utilidade ou interesse relevantes.
A constatação destas utilidade e interesse depende do resultado da indagação sobre se a eventual declaração da inconstitucionalidade da norma poderá ter alguma projecção significativa sobre os efeitos por ela já produzidos.
A norma impugnada no presente processo respeita ao acesso a uma actividade dependente de prévio licenciamento administrativo, consubstanciado na emissão de alvará (cf. artigo 3.º). O indeferimento do pedido de acesso à actividade, designadamente com fundamento na inidoneidade prevista no impugnado n.º 2 do artigo 5.º, na sua redacção originária, traduz-se num acto administrativo, cuja falta de oportuna impugnação conduz à sua consolidação na ordem jurídica, como caso decidido ou resolvido, figura que, segundo a jurisprudência deste Tribunal - cf., entre outros, os Acórdãos n.ºs 804/93
(Diário da República, II Série, Suplemento ao n.º 76, de 31 de Março de 1994, pág. 2952-(33); e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 26.º vol., pág. 51) e
786/96 (Diário da República, II Série, n.º 192, de 20 de Agosto de 1996, pág. 11
654; Boletim do Ministério da Justiça, n.º 458, pág. 45; e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 34.º vol., pág. 23) -, é de equiparar ao caso julgado, para o efeito de excluir a possibilidade de as correspondentes situações serem afectadas pela declaração de inconstitucionalidade da norma à sombra da qual foram criadas (artigo 282.º, n.º 3, da CRP). Assim, relativamente aos casos pretéritos em que, por força da norma impugnada, se consumou a impossibilidade de eventuais interessados exercerem as actividades em causa, quer porque, conhecedores da questionada causa legal de inidoneidade, espontaneamente se abstiveram de requerer o acesso às mesmas, quer porque, tendo-o requerido, se conformaram com os actos de indeferimento alicerçados nessa norma, nenhum efeito
útil derivaria de eventual declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral.
Daqui decorre que só poderia conjecturar-se a subsistência de alguma utilidade da eventual declaração de inconstitucionalidade quanto a situações residuais, respeitantes a pedidos pendentes, isto é, quanto a situações relativamente às quais já tenham sido impugnados (mas ainda não judicialmente decididos com trânsito em julgado) ou ainda possam vir a ser impugnados actos relativos aos respectivos procedimentos administrativos de acesso à actividade.
Só que o Tribunal Constitucional tem entendido - cf., entre outros, os Acórdãos n.ºs 17/83 (Diário da República, II Série, n.º 26, de 31 de Janeiro de 1984, pág. 940; Boletim do Ministério da Justiça, n.º 334, pág. 234; e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 1.º vol., pág. 93), 453/95 (Diário da República, II Série, n.º 232, de 7 de Novembro de 1995, pág. 11 963; e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 31.º vol., pág. 221), 786/96 (já citado) e 270/00
(Diário da República, II Série, n.º 256, de 6 de Novembro de 2000, pág. 18 030; e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 47.º vol., pág. 27) - que, em tal tipo de hipóteses, o conhecimento do pedido de declaração de inconstitucionalidade de normas entretanto revogadas deixa de ter interesse juridicamente relevante, já que seria inadequado e desproporcionado accionar um mecanismo de índole genérica e abstracta para os (residuais) casos concretos em que a aplicação da norma subsistiu. Nestes casos residuais, os possíveis beneficiários da eventual declaração de inconstitucionalidade poderão obter idêntico efeito suscitando a inconstitucionalidade da norma sub judice em impugnação contenciosa do acto de indeferimento do pedido de acesso à actividade.
5. Em face do exposto, acordam em não tomar conhecimento, por inutilidade superveniente, do pedido de declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade da norma do n.° 2 do artigo 5.° do Decreto-Lei n.°
251/98, de 11 de Agosto, na sua redacção originária.
Lisboa, 8 de Abril de 2003.
Mário José de Araújo Torres (Relator)
Carlos Pamplona de Oliveira
Benjamim da Silva Rodrigues
Luís Nunes de Almeida
Artur Maurício
Maria dos Prazeres Beleza
Paulo Mota Pinto
Alberto Tavares da Costa
Bravo Serra
Gil Galvão
Maria Helena Brito Maria Fernanda Palma José Manuel Moreira Cardoso da Costa.
P. 521/00 - (10)