Imprimir acórdão
Proc. n.º 399/02
2ª Secção Relator Conselheiro Benjamim Rodrigues
(Consª Fernanda Palma)
Acordam no plenário do Tribunal Constitucional:
A – O relatório
1. A., recorrente no processo acima mencionado, em que figura como recorrida a Fazenda Pública, dizendo-se inconformada com a sentença da 2ª Secção do 2º Juízo do Tribunal Tributário de 1ª Instância de Lisboa que julgou improcedente a impugnação judicial deduzida contra as liquidações de I.R.C. relativas aos anos de 1990, 1991 e 1992 efectuadas pela Repartição de Finanças do então 11º Bairro Fiscal, interpôs recurso, per saltum, para a Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo.
2. Nas respectivas alegações de recurso, e na parte que importa ao presente recurso de constitucionalidade, sustentou que o n.º 2 do artigo 8.º do C.I.R.S. seria inconstitucional na interpretação segundo a qual o conceito de reembolso antecipado do mútuo abrangeria a transmissão de títulos de dívida por ofensa da ideia de Estado de direito democrático (artigo 2.º da Constituição) e violação do princípio da legalidade fiscal, na sub-modalidade do princípio da tipicidade (presentemente consagrado no artigo 103.º, n.º 2, da Constituição). Por outro lado, a recorrente sustentou que a interpretação conjugada dos artigos
6.º, n.º 1, alínea c), e 8.º, n.os 1, 2 e 3, alínea c) do C.I.R.S., no sentido de considerar que o recebimento do chamado “juro decorrido” se encontra sujeito a imposto, independentemente de o recebimento não ocorrer no momento do vencimento do título, seria também inconstitucional por violação da legalidade fiscal, na modalidade de tipicidade. Além disso, o recorrente alegou que o entendimento segundo o qual o artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 263/92, no que respeita às alterações dos artigos 6.º, 8.º, 10.º e 39.º do C.I.R.S., o artigo
2.º, no que respeita às alterações dos artigos 42.º, n.º 3, e 71º, n.º 2 do C.I.R.C., e o artigo 3.º teriam natureza interpretativa seria igualmente inconstitucional, na medida da sua retroactividade, por violação do artigo
103.º, n.º 3, da Constituição na verão de 1997 (aplicável aos autos). Por fim, o recorrente arguiu a inconstitucionalidade desta última interpretação normativa por violação do artigo 2.º da Constituição, visto não haver justificação para a retroactividade e por violação do actual artigo 103.º, n.º 2
(correspondente ao artigo 106.º, n.º 2, antes de 1997), por violação do princípio da tipicidade.
3. A recorrida Fazenda Pública não apresentou contra-alegações.
4. No Supremo Tribunal Administrativo, o Ministério Público emitiu parecer no sentido do não provimento do recurso, invocando a jurisprudência pacífica e reiterada da Secção do Contencioso Tributário.
5. Por acórdão de 20 de Março de 2002, a Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo negou provimento ao recurso jurisdicional e confirmou a sentença impugnada. No que respeita às alegadas inconstitucionalidades, este aresto remeteu para o acórdão de 14 de Fevereiro de
2002 tirado no processo n.º 26.303, aderindo à argumentação aí aduzida para negar a violação dos princípios da tipicidade e da não retroactividade das leis fiscais.
6. Inconformada, a recorrente interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo dos artigos 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição e 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional. A recorrente identificou como normas cuja inconstitucionalidade arguiu os artigos 6.º, n.º 1, alínea c)
[conjugadamente com o artigo 8.º, n.os 1, 2 e 3, alínea a), do C.I.R.S., na redacção anterior ao Decreto-Lei n.º 263/92, no sentido de considerar que o recebimento do chamado “juro decorrido” se encontrar sujeito a imposto, independentemente de o recebimento não ocorrer no momento do vencimento da obrigação de juro (título)], e 1.º do Decreto-Lei nº 263/92, na parte em que atribuiria eficácia retroactiva às alterações dos artigos 6.º [alteração da alínea c) do n.º 1 e aditamento do n.º 3] e 8.º [aditamento da alínea c) do n.º
3] do C.I.R.S.
A primeira interpretação normativa seria inconstitucional por violação do princípio da legalidade fiscal, na modalidade do sub-princípio da tipicidade, consagrado, antes da Revisão Constitucional de 1997, no artigo 106.º, n.º 2, e, depois dela, no artigo 103.º, n.º 2, da Constituição. A recorrente indica que suscitou esta questão de constitucionalidade nas alegações do recurso para o Supremo Tribunal Administrativo.
A segunda interpretação normativa seria inconstitucional por excesso relativamente à autorização legislativa conferida pela Lei n.º 17/92, de 6 de Agosto, com ofensa do que eram, ao tempo da emissão do Decreto-Lei n.º 263/92, os artigos 106.º, n.º 2, 115.º, n.º 2, e 168.º, n.º 1, alínea i), e do que são hoje os artigos 103.º, n.º 2, 112.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, alínea i), da Constituição, e por violação do princípio da retroactividade fiscal, presentemente consagrado no artigo 103.º, n.º 2, da Constituição. A recorrente indicou que esta última questão foi por ela suscitada nas alegações de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo.
7. No Tribunal Constitucional, a recorrente refutou o decidido com base nas razões expostas nas suas alegações de recurso e que condensou nas seguintes conclusões:
A) No douto acórdão recorrido, os fundamentos referentes, respectivamente, à interpretação da al. c) do n.° 1 do art. 6.° [conjugada com o art. 8.°, n.os 1,
2 e 3, al. a)] do CIRS e à natureza interpretativa do Dec-Lei n.° 263/92 não são alternativos, funcionando o segundo como adjuvante do primeiro.
B) Para interpretar o preceito da al. c) do n.° 1 do art. 6.° do CIRS no sentido de incluir os chamados “juros decorridos”, isto é, os créditos a juros transmitidos antes do vencimento, o douto acórdão recorrido teve de efectuar, implicitamente, uma interpretação restritiva da sub-alínea 1) da al. a) do n.° 3 do art. 8.° do mesmo CIRS e de criar para o caso, nos termos do art. 10.°, n.°
3, do Código Civil, uma norma segundo a qual, quanto às transmissões de créditos a juros, se atenderá, no que toca ao momento da constituição da obrigação de imposto, à data da transmissão dos títulos.
C) O princípio da tipicidade tributária, consagrado no que eram os arts. 106.°, n.° 2, e 168.°, n.° 1, al. i), e no que são, depois da revisão constitucional de
1997, os art.os 103.°, n.° 2, e 165.°, n.° 1, al. i), impede não só a interpretação para além dos sentidos possíveis das palavras da lei e a integração por via analógica, como, por maioria de razão, a integração segundo a norma que o intérprete criaria, se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema.
D) A interpretação feita pelo acórdão recorrido da al. c) do n.° 1 do art. 6.° do CIRS é indissociável da criação normativa que efectuou no âmbito da matéria do art. 8.°, porque nunca os chamados “juros decorridos” poderiam encontrar-se abrangidos no primeiro se o momento de constituição da obrigação de imposto fosse o do vencimento da obrigação de juros e se não se tivesse definido o momento da constituição da obrigação de imposto.
E) Por outro lado, a definição do momento de constituição da obrigação de imposto faz parte da definição da incidência e é elemento essencial do imposto para os efeitos do n.° 2 do art. 103.° da CRP (antes, n.° 2 do art. 106.°).
F) Deste modo, o segmento normativo da al. c) do n.° 1 3, al. a), na interpretação segundo a qual o chamado “juro decorrido” se encontra sujeito a imposto, obtido, e enquanto obtido, pelo referido procedimento interpretativo
(lato sensu), ofende o princípio da legalidade fiscal, na modalidade de tipicidade tributária.
G) Ofendê-lo-ia aliás sempre por virtude de a dimensão normativa apurada ser contrariada directamente pelos limites literais do regime legal aplicável.
H) Nos seus Acórdãos n.os 150/86 e 264/98 o Tribunal Constitucional reconheceu que as “prescrições” especificamente destinadas à solução do caso formuladas pelo tribunal no âmbito do art. 10.°, n.° 3, do Código Civil integram o conceito funcional ou funcionalmente adequado de norma, relevante para a fiscalização concreta da constitucionalidade.
I) Para interpretar, como interpretou, o art. 6.°, n.°
1, al. c), do CIRS, no texto anterior ao Dec-Lei n° 263/92, o Tribunal a quo teve, conforme se referiu, de, no âmbito do art. 8.° do mesmo CIRS, criar, para o caso, uma norma sobre o pressuposto temporal da incidência, nos termos do art.
10.°, n.° 3, do Código Civil, sendo os dois aspectos indissociáveis.
J) Tanto basta para que a questão de inconstitucionalidade suscitada seja uma questão de inconstitucionalidade normativa, susceptível de configurar objecto de recurso para o Tribunal Constitucional.
L) De qualquer modo, mesmo para além do referido aspecto, não há fundamento para que o Tribunal Constitucional não conheça da violação de limites interpretativos (lato sensu) directamente impostos pela Constituição.
M) A norma é sempre o resultado de uma actividade interpretativa e os preceitos legais são, no que toca a apreciação de constitucionalidade, sempre mediados por uma específica interpretação.
N) Por outro lado, o sistema português de fiscalização concreta de constitucionalidade, por via de recurso para o Tribunal Constitucional, assegura o amparo, por este Tribunal, quanto a violações dos direitos fundamentais constitucionalmente consagrados, não havendo razão para afastar dessa protecção violações tão graves como as que decorrem do desrespeito, na actividade interpretativa (lato sensu), dos limites impostos pelos princípios da tipicidade penal ou tributária.
O) Aliás, quando um tribunal viola esses limites aplica implicitamente uma norma de competência inconstitucional.
P) O art. 1.° do Dec-Lei n° 263/92, de 24 de Novembro, na parte em que modifica os arts. 6.° e 8.° do CIRS, incide sobre matéria (incidência de imposto) abrangida pela reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, nos termos do que era, ao tempo, o art. 168.°, n.° 1, al. i), e do que é hoje o art. 165.°, n.° 1, al. i) da CRP, e foi, por isso, emitido no uso da autorização legislativa conferida pela Lei n° 17/92, de 6 de Agosto.
Q) Ora, a Lei n° 17/92 conferiu ao Governo autorização para modificar a lei, não para a interpretar autenticamente.
R) A interpretação autêntica não é, relativamente à alteração legislativa, um minus, mas um aliud.
S) Acresce que à interpretação autêntica vem, em princípio, associada a retroactividade, nos termos do art. 13.° do Código Civil.
T) Assim, a norma do art. 1.° do Dec-Lei n.° 263/92, na parte em que modificou a al. c) do n.° 1 do art. 6.° do CIRS e aditou ao preceito um n.° 3, e naquela em que aditou a al. c) ao n.° 3 do art. 8.° do mesmo CIRS, no entendimento de que teria a natureza de lei interpretativa, excedeu a autorização legislativa conferida pela Lei n.° 17/92, de 6 de Agosto, e ofende, assim, o que eram, ao tempo da aprovação, promulgação e publicação do decreto-lei, os arts. 106.°, n.°
2, 115.°, n.° 2, e 168.°, n.° 1, al. i), e são hoje os art.os 103.°, n.° 2,
112.°, n.° 2, e 165.°, n.° 1, al. i), da Constituição.
U) Acresce que o art. 1.° do Dec-Lei n.° 263/92, no entendimento de que teria a natureza de lei interpretativa e eficácia retroactiva quanto às alterações introduzidas nos arts. 6.° e 8.° do CIRS, viola o art. 103.°, n.° 3, da CRP, na versão da Lei Constitucional n° 1/97, aplicável de acordo com o princípio da aplicação imediata das normas constitucionais.
V) Ainda que assim não se entendesse, a retroactividade da lei fiscal, de harmonia com o que se afigura ser a orientação da jurisprudência do Tribunal Constitucional subsequente a 1989, exigiria, para se mostrar admissível em face do princípio da confiança, que fosse justificada por um interesse público especial.
X) Por outro lado, deve estabelecer-se uma distinção entre a retroactividade da lei fiscal determinada por razões supervenientes, em que está em causa apenas o princípio da confiança, daquela que se fundamenta num juízo sobre o direito precedente na sua vigência passada, onde releva também o princípio da tipicidade.
Z) Não há nenhum interesse público especial que justifique a retroacção do art.
1.º do Dec-Lei n.° 263/92, que afecta gravemente as expectativas dos contribuintes, os quais não poderão deduzir no final o que fosse considerado que houvesse sido retido na fonte.
A’) Se o art. 1.º do Dec-Lei n° 263/92 fosse interpretativo, como o entendeu a douta decisão recorrida, o fundamento da retroacção residiria num juízo sobre o direito passado.
B’) Ora, o art. 1º do Dec-Lei n° 263/92 não é materialmente interpretativo, ponto que o Tribunal Constitucional tem de sindicar para ajuizar da sua constitucionalidade.
C’) Não o sendo, o referido art. 1.º, no entendimento do Tribunal a quo que lhe atribuiu retroactividade, ofende ainda o princípio da tipicidade.
D’) Nestes termos, o art. 1.° do Dec-Lei n.° 263/92, no entendimento de que teria a natureza de lei interpretativa e eficácia retroactiva quanto às alterações introduzidas nos arts. 6.° e 8.° do CIRS, ofende o princípio da confiança, consignado no art. 2.°, e o princípio da tipicidade tributária, que se encontra estabelecido no artº. 103.°, n.° 2 (anteriormente art. 106.°, n.°
2), da CRP.
8. Por seu turno, a recorrida concluiu as suas contra-alegações do seguinte modo: a) A questão da tributação como rendimentos de capital dos chamados juros decorridos, na redacção inicial do artigo 6.° do CIRS, foi objecto de entendimento no sentido de dever ser considerada como rendimento de capital.
b) Tal interpretação foi firmada pelas circulares da DGCI n.os 16/89, de 9 de Novembro e 17/90, de 27 de Maio.
c) A redacção inicial do preceito suportava entendimento veiculado pelas circulares 16/89 e 17/90.
d) O conceito de rendimento acréscimo que preside à tributação em IRS perspectivava a tributação dos juros decorridos como possível e esperada.
e) A explicitação da tributação de outros títulos de crédito negociáveis enquanto usados como tais, é meramente interpretativa, como refere o próprio legislador no preâmbulo do DL n.º 263/92, de 24.11.
f) A lei interpretativa integra-se na lei interpretada, nos termos do artigo 13.° do Código Civil.
g) O parâmetro constitucional a ter em conta é o resultante do texto constitucional vigente à data da aplicação da norma questionada nesse sentido.
h) À data da aplicação da lei interpretativa em causa o conceito de irretroactividade a considerar é o consagrado em jurisprudência do Venerando Tribunal Constitucional no sentido de que “a retroactividade constitucional terá o beneplácito constitucional sempre que razões de interesse geral o reclamem e o encargo para o contribuinte se não mostrar desproporcionado e mais ainda o terá se tal encargo aparecia aos olhos do contribuinte como verosímil ou mesmo provável”.
B – A fundamentação
9. Da questão prévia dos pressupostos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade
Face à estruturação lógica seguida pela recorrente nas suas alegações de recurso, a primeira questão a que importa responder é a de saber se este Tribunal poderá questionar, sob o prisma da constitucionalidade, a interpretação jurídica dos preceitos da lei ordinária que o acórdão recorrido levou a cabo. Na verdade, a recorrente defende que, o douto acórdão recorrido
“teve de efectuar, implicitamente, uma interpretação restritiva da sub-alínea 1) da al. a) do n.° 3 do art. 8.° do [...] CIRS e de criar para o caso, nos termos do art. 10.°, n.° 3, do Código Civil, uma norma segundo a qual, quanto às transmissões de créditos a juros, se atenderá, no que toca ao momento da constituição da obrigação de imposto, à data da transmissão dos títulos” e que a criação desta norma é inconstitucional por violação do princípio da tipicidade, transmitindo-se esse vício também à interpretação adoptada quanto ao artigo 6.º do CIRS por este preceito estar indissociadamente implicado na interpretação daquele art.º 8.º.
Vejamos, pois, se lhe assiste razão.
Nos termos do artigo 280.º, n.º 1, alínea b) da Constituição, e do art.º 70.º, n.º 1, alínea b) da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua redacção actual
(doravante LTC), cabe recurso para este Tribunal «das decisões dos tribunais
[...] que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo». Vale isto por dizer que se há-de estar, no caso, perante uma decisão judicial na qual tenha sido resolvida uma questão de inconstitucionalidade, ainda que implicitamente: o recurso de constitucionalidade tem sempre como objecto uma norma ou normas jurídicas efectivamente aplicadas por essa decisão. Para se delimitar o âmbito de admissibilidade desse recurso, torna-se, deste modo, indispensável que se determine o conceito de norma. Como se compreende, dado respeitar a um pressuposto do recurso, a questão tem sido abordada com frequência por este Tribunal. Fê-lo, entre outros, no Acórdão n.º 26/85
(Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5.º volume, págs. 7 e ss.), no Acórdão n.º
150/86 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 7.º volume, tomo I, págs. 287), no Acórdão n.º 80/86 (idem, págs. 79), no Acórdão 156/88 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11.º volume, págs. 1057 e no Acórdão n.º 172/93 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 24.º volume, págs. 451). Sobre a matéria escreveu-se no referido Acórdão n.º 26/85:
“Assim, o que há-de procurar-se para o efeito do disposto nos artigos 277.º e seguintes da Constituição, é um conceito funcional de «norma», ou seja, um conceito funcionalmente adequado ao sistema de fiscalização aí instituído e consonante com a sua justificação e sentido.
Pois bem: como a Comissão Constitucional já havia acentuado, o que se tem em vista com este sistema é o controlo dos actos do poder normativo do Estado (lato sensu) - e, em especial, do poder legislativo - ou seja, daqueles actos que contêm uma «regra de conduta» ou «critério de decisão» para os particulares, para a Administração e para os tribunais.
Não são, por conseguinte, todos os actos do poder público os abrangidos pelo sistema de fiscalização da constitucionalidade previsto na Constituição. A ele escapam, por um lado ( e como já a Comissão Constitucional salientara), as decisões judiciais e os actos da Administração sem carácter normativo, ou actos administrativos propriamente ditos; e, por outro lado, «os actos políticos» ou
«actos de governo», em sentido estrito [...]”.
Pois bem. A partir do exposto, pode, desde já, concluir-se que ao Tribunal Constitucional não cabe conhecer das inconstitucionalidades dos actos judiciais propriamente ditos ou, dito de outro modo, de inconstitucionalidades que atinjam directamente decisões judiciais. Mas esta asserção não resolve inteiramente o problema. É que, para usar os termos do Acórdão n.º 674/99 (publicado no DR, II Série, de 25 de Fevereiro de
2000; BMJ 492.º, págs. 62 e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 45.º volume, págs. 559), - que constitui um momento marcante na abordagem da matéria, conquanto relativo à problemática paralela do direito penal, - e a propósito de dúvida, aí, colocada por outro recorrente nos termos que o Acórdão assim sintetizou: -“Nesta conformidade, o que o recorrente questiona é o processo interpretativo que permitiu ao tribunal recorrido abranger a reserva mental de incumprimento de astúcia. Tal processo interpretativo efectuado pelo tribunal a quo, por não ter respeitado os limites de interpretação da lei penal decorrentes do princípio da legalidade incriminatória, consignado no art.º 29.º, n.º 1 da Lei Fundamental, designadamente a proibição da analogia e da interpretação extensiva «que ultrapasse o campo semântico natural dos conceitos jurídicos», consequenciaria a inconstitucionalidade da própria norma penal incriminatória, quando objecto de uma tal interpretação, por violação do princípio constitucional” - “resta saber se essa questão se [não] reconduz a uma verdadeira questão de inconstitucionalidade normativa, isto é, a uma questão que caiba ao Tribunal Constitucional conhecer, no âmbito do recurso de constitucionalidade”. Após descrever exaustivamente o tratamento que foi sendo dado à referida matéria, ao longo do tempo – e donde se infere que o Tribunal enveredou, na maioria dos casos, por uma resposta negativa (Cfr. Acórdão n.º 353/86, publicado in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 8.º volume, págs. 571 e ss.; Acórdão nº
634/94, publicado in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 29.º volume, págs. 243 e ss.; Acórdão n.º 221/95, publicado in DR, II, Série, de 27 de Junho de 1995; Acórdão n.º 756/95, publicado in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 32.º volume, págs. 775 e ss.; Acórdão n.º 682/95, inédito e Acórdão n.º 154/98, também inédito), mas em que também houve pronúncias no sentido positivo, como nos casos dos Acórdãos n.º 141/92, publicado in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 21.º volume, págs. 599 e ss., n.º 205/99, publicado in DR, II Série, de 5 de Novembro de 1999, e n.º 285/99, publicado no mesmo jornal oficial, de 21 de Outubro de 1999 - escreveu-se em tal Acórdão n.º 674/99:
«Ora tal questão - por não respeitar a uma inconstitucionalidade normativa, mas antes a uma inconstitucionalidade da própria decisão judicial - excede os poderes de cognição do Tribunal Constitucional, uma vez que, entre nós, não se encontra consagrado o denominado recurso de amparo, designadamente na modalidade de amparo contra decisões jurisdicionais directamente violadoras da Constituição.
De todo o modo, mesmo que se entendesse que este Tribunal ainda era competente para conhecer das questões de inconstitucionalidade resultantes do facto de se ter procedido a uma constitucionalmente vedada integração analógica ou a uma
«operação equivalente», designadamente a uma interpretação «baseada em raciocínios analógicos» (cfr. declaração de voto do Cons.º Sousa e Brito ao citado Acórdão n.º 634/94, bem como o já mencionado Acórdão n.º 205/99), o que sempre se terá por excluído é que o Tribunal Constitucional possa sindicar eventuais interpretações tidas por erróneas, efectuadas pelos tribunais comuns, com fundamento em violação do princípio da legalidade.
Aliás, se assim não fosse, o Tribunal Constitucional passaria a controlar, em todos os casos, a interpretação judicial das normas penais (ou fiscais), já que a todas as interpretações consideradas erróneas pelos recorrentes poderia ser assacada a violação do princípio da legalidade em matéria penal (ou fiscal). E, em boa verdade, por identidade lógica de raciocínio, o Tribunal Constitucional, por um ínvio caminho, teria que se confrontar com a necessidade de sindicar toda a actividade interpretativa das leis a que necessariamente se dedicam os tribunais - designadamente os tribunais supremos de cada uma das respectivas ordens -, uma vez que seria sempre possível atacar uma norma legislativa, quando interpretada de forma a exceder o seu «sentido natural» ( e qual é ele em cada caso concreto?), com base em violação do princípio da separação dos poderes, porque mero produto de criação judicial, em contradição com a vontade real do legislador; e, outrossim, sempre que um tal interpretação atingisse norma sobre matéria da competência legislativa reservada da Assembleia da República, ainda se poderia detectar cumulativamente, nessa mesma ordem de ideias, a existência de uma inconstitucionalidade orgânica.
Ora, um tal entendimento - alargando de tal forma o âmbito do Tribunal Constitucional - deve ser repudiado, porque conflituaria com o sistema de fiscalização da constitucionalidade, tal como se encontra desenhado na Lei Fundamental, dado que se esvaziaria praticamente de conteúdo a restrição dos recursos de constitucionalidade ao conhecimento das questões de inconstitucionalidade normativa».
10. Mas outros argumentos poderão ser congregados contra a tese que admite a sindicabilidade constitucional do processo de interpretação relativo às normas infraconstitucionais, nos casos em que as mesmas estão sujeitas aos princípios da legalidade penal e da tipicidade fiscal. Em primeiro lugar, trata-se de princípios constitucionais que, na perspectiva aqui analisada, são dirigidos essencialmente ao julgador, como limites da sua actividade de interpretação e aplicação da respectiva lei infraconstitucional. E diz-se essencialmente, e na perspectiva aqui analisada, apenas, porque os mesmos princípios não podem deixar de apresentar-se enquanto, também, um indirizzo dirigido ao legislador ordinário pela Lei Fundamental no sentido de o proibir, no exercício da sua discricionariedade normativo-constitutiva, de usar conceitos de significação de tal modo ampla que faça perigar o princípio da segurança jurídica relativo à determinabilidade do conteúdo do seu comando jurídico, não podendo uma tal violação deixar de reflectir numa inconstitucionalidade da lei infraconstitucional. O verdadeiro e relevante valor axiológico constitucional de tais princípios cinge-se, assim, em os mesmos constituírem verdadeiros limites à actividade do julgador, no que tange à interpretação e aplicação da lei infraconstitucional.
Finalmente, não é de descurar que a tarefa de interpretação de leis infraconstitucionais se apresenta como constituindo uma arte de aplicação da lei infraconstitucional que rege os seus termos e que é levada a cabo pelos tribunais. A ser assim, ela, enquanto processo, que não resultado, haverá de ser vista enquanto um acto relativo ao julgamento do caso, ainda que ferido ou atingido directamente de inconstitucionalidades e não enquanto uma questão normativa ou uma questão incluída no conceito funcional de norma, acima precisado, para efeitos de sujeição ao sistema constitucional de fiscalização da constitucionalidade pelo Tribunal Constitucional.
E o mesmo se poderá sustentar relativamente à actividade de integração de lacunas.
11. Outras das questões que a recorrente suscita são as da inconstitucionalidade do Decreto-Lei n.º 263/92 por excesso relativamente à autorização legislativa conferida pela Lei n.º 17/92, de 6 de Agosto, com ofensa do que eram, ao tempo da emissão, os artigos 106.º, n.º 2, 115.º, n.º 2, e
168.º, n.º 1, alínea i), e do que são hoje os artigos 103.º, n.º 2, 112.º, n.º
2, e 165.º, n.º 1, alínea i), da Constituição, e por violação do princípio da retroactividade fiscal, presentemente consagrado no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição.
Como decorre do acórdão recorrido, este não fez aplicação do Decreto-Lei n.º 263/92, de 24 de Novembro, tendo determinado o sentido legislativo aplicado apenas à face dos preceitos originários do CIRS e do CIRC. Assim sendo, verifica-se a falta do pressuposto do recurso interposto ao abrigo do art.º 70.º, n.º 1, alínea b), a que se referem os n.os 1 e 2 do art.º 75º-A, ambos os preceitos da LTC – o da efectiva aplicação das normas de tal diploma cuja inconstitucionalidade se pretende que este Tribunal aprecie.
Por isso não se conhece do objecto do recurso relativo a tais questões.
C – A decisão
12. Destarte, atento tudo o exposto, este Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do recurso.
Custas pela recorrente com taxa de justiça de 8 UC.
Lisboa, 10 de Abril de 2003 Benjamim Rodrigues Luís Nunes de Almeida
Artur Maurício Alberto Tavares da Costa Bravo Serra Gil Galvão Maria Helena Brito Carlos Pamplona de Oliveira Maria Fernanda Palma (vencida nos termos da declaração de voto junta) Mário José de Araújo Torres (vencido, nos termos da declaração de voto junta) Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (vencida, em parte, nos termos da declaração de voto junta) Paulo Mota Pinto (vencido ,em parte, nos termos da declaração de voto que junto) José Manuel Cardoso da Costa
Declaração de voto
Tendo sido a primitiva relatora, votei vencida por discordar da solução dada à questão prévia referente à qualificação como questão de constitucionalidade normativa da invocada violação do princípio da tipicidade fiscal. As razões que me levam a discordar da solução negativa são de três tipos. Em primeiro lugar, uma razão de coerência com a própria jurisprudência do Tribunal Constitucional, manifestada em vários Acórdãos de que fui relatora ou que subscrevi, relativos às causas de interrupção da prescrição em processo criminal após a entrada em vigor do Código de Processo Penal de 1987 e até à revisão do Código Penal de 1995. Nesses Acórdãos, foi considerado o mesmíssimo problema que agora surge a propósito da violação da tipicidade fiscal, em sede de direito penal. Questionou-se, nos referidos casos, também, se a violação da proibição da analogia em direito penal pela interpretação levada a cabo pela decisão recorrida era uma questão de constitucionalidade normativa. A resposta que o Tribunal Constitucional deu a tal problema foi afirmativa por, naquelas situações, ter surgido uma interpretação de normas penais (com efeito incriminador em sentido amplo, isto é, não extintivo da responsabilidade penal) que se autoqualificava como interpretação actualista e que suscitava a dúvida sobre a violação da proibição de analogia – resultante do artigo 29º, nºs 1, 3 e
4, da Constituição. Assim, no Acórdão nº 205/99, o Tribunal Constitucional iniciou uma linha jurisprudencial segundo a qual, onde existisse com clareza um critério normativo na interpretação de “norma penal jurisprudencial” que, por si só, revelasse autonomia relativamente a uma mera subsunção, nos termos da qual a norma penal positiva pudesse atingir uma nova categoria de casos não compreendidos literalmente na formulação legislativa, estar-se-ia perante uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa relacionada com o princípio da legalidade. Não se confundia, nesse Acórdão, a questão de constitucionalidade normativa consistente na violação do princípio da legalidade com a simples interpretação incorrecta de uma norma legal em que, no entanto, não estivesse em causa uma potencial analogia. Admitia-se, isso sim, que o critério jurisprudencial generalizável seria uma norma para efeitos de controlo de constitucionalidade, mesmo quando apenas estivesse em causa a violação do princípio da legalidade. Acentuava-se que a norma seria o resultado interpretativo e não o próprio modo de interpretação do Direito, embora o confronto entre o resultado interpretativo e o princípio da legalidade tivesse, necessariamente, de averiguar se teria sido utilizada a analogia e, portanto, passar pela análise do processo interpretativo. Esta última verificação não era identificada com o directo controlo de decisão judicial, por apenas ser o meio – inequivocamente legítimo – de verificação de um processo de produção do Direito infraconstitucional, similar ao que ocorre no controlo da constitucionalidade orgânica.
2. A esta razão de coerência, que me levou a votar vencida, acresce uma razão de dogmática jurídica (ou de metodologia jurídica). Com efeito, sendo admitido o controlo da constitucionalidade de meras dimensões ou interpretações normativas desde que esteja em causa o confronto com normas e princípios constitucionais diversos da proibição de analogia, aceitando-se, deste modo, que o critério normativo de decisão de um caso concreto seja “norma” para efeitos do controlo de constitucionalidade, não se compreende por que passa a considerar-se decisão e deixa de ser norma um critério normativo referente a um processo interpretativo que culmina num certo resultado. Na verdade, se os próprios preceitos legais que estabelecem métodos interpretativos não deixam de ser normas (como acontecerá com os artigos 9º e
10º do Código Civil), não se descortina por que razão, num plano lógico-normativo, não serão normas os critérios (apreensíveis com alguma generalidade) que orientaram um concreto processo interpretativo subjacente à decisão judicial, cujo resultado possa ter culminado com uma analogia, numa matéria legal em que a Constituição veda a analogia. Do ponto de vista dos conceitos jurídicos de norma e de dimensão e interpretação normativa, utilizados abundantemente pela jurisprudência constitucional, não há, estruturalmente, qualquer diferença essencial que impeça que os critérios normativos relativos ao processo interpretativo que orientaram o intérprete para alcançar um certo resultado sejam normas e que possam, nessa medida, contrariar os critérios conformadores do processo interpretativo previstos na Constituição em certas matérias – tal como, precisamente, a proibição de analogia no direito penal ou no direito fiscal. Aliás, a distinção entre norma e decisão não é material mas lógica e depende, sobretudo, da perspectiva em que se entende e descreve uma concreta interpretação jurídica. A ideia de uma pura aplicação do Direito distinta da sua interpretação e de uma determinação de critérios normativos corresponde apenas a uma visão diferente do mesmo processo decisório e é duvidosamente aceitável como descrição correcta dos juízos jurídicos decisórios. De todo o modo, se um processo decisório for analisado à luz dos critérios e sub-critérios que levaram o julgador a comparar os abstractos casos legais com o caso concreto realçar-se-á, necessariamente, uma questão de constitucionalidade normativa. Assim, por exemplo, se uma certa norma proibisse que determinadas pessoas usassem chapéus azuis, seria uma questão normativa a que se referisse ao critério que levava a considerar como azul certa cor concreta, mas já não seria uma questão normativa a que invocasse que o juiz teria considerado, erradamente, como azul um chapéu verde – e que apenas pretendesse discutir a existência de um erro do juízo. A existência de uma norma reguladora no caso concreto do processo interpretativo que obrigue a um determinado resultado interpretativo e, portanto, uma norma violadora de proibição constitucional da analogia não é, assim, senão uma perspectiva sobre a decisão (não tem uma verdadeira substancialidade) e, sempre que tal perspectiva se suscite, consistentemente, qualquer tribunal constitucional está, irremediavelmente, confrontado com uma verdadeira norma.
3. Finalmente e de modo decisivo, há uma terceira razão, de natureza jurídico-constitucional, que me leva a entender que a possível violação por uma norma, quer no seu resultado quer no seu processo criativo, da proibição constitucional da analogia é uma questão susceptível de controlo pelo Tribunal Constitucional. Na verdade, a razão metodológica anterior ainda não seria decisiva, quanto a mim, se a Constituição vedasse, de modo claro, ao Tribunal Constitucional o controlo da constitucionalidade nas situações sob análise. E isto, nomeadamente, por se entender que ao Tribunal Constitucional apenas competiria um controlo das normas emitidas pelo legislador em qualquer dimensão interpretativa das mesmas e que o controlo das normas emanadas pelo juiz, ainda que sem autorização constitucional, nunca caberia nas funções do Tribunal Constitucional, mas apenas no controlo constitucional difuso que, em última instância, seria exercido pelo Supremo Tribunal de Justiça. Ora, um tal ponto de vista, a ser coerentemente aplicado, excluiria do controlo de constitucionalidade todas as normas meramente enunciadas pelo julgador, fossem elas analisadas como processo interpretativo ou como resultado interpretativo. Uma tal orientação não é a do Tribunal Constitucional que, em decisões unânimes, sempre entendeu que uma norma meramente jurisprudencial seria objecto de controlo pelo Tribunal. Aliás, o Acórdão nº 674/99 citado pelo presente Acórdão concede que um resultado interpretativo analógico ou de criação jurisprudencial seja uma questão de constitucionalidade normativa em face de normas e princípios constitucionais diversos do princípio de legalidade e da proibição da analogia. Mas, independentemente da coerência com que se desenvolva a perspectiva que se analisa, o certo é que ela é constitucionalmente inaceitável por várias razões: a) Desde logo, por, em conflito com o princípio da separação de poderes, levar a que seja mitigado o controlo de constitucionalidade relativamente a normas jurisprudenciais, privando-o de uma instância extrínseca de controlo – o Tribunal Constitucional, o qual não pertence à organização judicial comum. b) Por outro lado, na perspectiva do acesso à justiça, privar-se-á os recorrentes da possibilidade de aceder ao Tribunal Constitucional em situações de exercício abusivo da função jurisdicional em que estejam em causa um processo produtivo de uma norma e um resultado normativo constitucionalmente vedados. Na verdade, negar-se-á o acesso ao Tribunal Constitucional em situações idênticas
às de uma inconstitucionalidade orgânica, oriundas do poder judicial.
c) Por último, esta solução enfraquece, nitidamente, o princípio do Estado de direito democrático (artigo 2º da Constituição). É precisamente por razões de segurança jurídica e segurança democrática que se impõe tanto a reserva de lei como a proibição de analogia quanto às normas penais positivas e às normas fiscais geradoras da obrigação de imposto. A diferente possibilidade de controlar a constitucionalidade nos casos de violação da reserva de lei e de violação da proibição de analogia escamoteia que a segunda corresponde, no plano da vinculação do juiz, ao sentido da primeira enquanto injunção dirigida ao legislador. Mas tal diferenciação desvaloriza ainda o facto de que a violação da proibição de analogia corresponde, em última análise, também a uma violação da reserva de lei. Em suma, impedir o Tribunal Constitucional, sem qualquer explícita indicação da Constituição, de controlar as violações do princípio da legalidade, na vertente de proibição da analogia, é retirar ao Tribunal Constitucional a função angular da jurisdição constitucional relativamente à violação de princípios e normas conformadores da produção do Direito. Uma tal interpretação pelo Tribunal Constitucional das suas competências nem é imposta pela Constituição nem decorre da natureza das coisas ou da essência da separação dos poderes no Estado de direito democrático e reduz, significativamente, um direito pleno à justiça constitucional. Por todas estas razões, tomaria conhecimento da questão de constitucionalidade suscitada.
II
Propugnando o conhecimento do objecto do recurso, concluiria pela inconsti-tucionalidade da norma do artigo 6º, nº 1, alínea c), do C.I.R.S. pelas razões constantes de declaração de voto aposta ao Acórdão nº 244/2000, a qual retrata, quanto ao fundo, a forma como analiso o problema. É pois para essa outra declaração de voto que remeto.
Maria Fernanda Palma
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido, por entender que o Tribunal Constitucional devia tomar conhecimento do objecto do recurso. Mais sustentei que, conhecendo do objecto do recurso, o mesmo merecia provimento. Cumpre agora indicar sinteticamente as razões desse entendimento.
1. Quanto à questão do conhecimento do objecto do recurso:
Constitui hoje entendimento pacífico que, sendo embora o sistema português de fiscalização da constitucionalidade a cargo do Tribunal Constitucional um sistema de fiscalização de constitucionalidade normativa, nele cabem, a par da aferição da conformidade constitucional da directa estatuição das disposições legais, também o controlo das interpretações normativas efectuadas pelos tribunais. Quando das disposições legais em causa se podem extrair diferentes proposições normativas ou diferentes interpretações, devem ser tomadas como objecto de verificação de constitucionalidade as normas aplicadas de acordo com o sentido normativo decisivamente aceite e aplicado pelo tribunal recorrido.
Não questionando a correcção deste entendimento, sustenta, porém, a posição que fez vencimento que a “interpretação normativa” já não é passível de constituir objecto do recurso de constitucionalidade quando o fundamento invocado para questionar a sua conformidade constitucional seja o princípio da legalidade ou da tipicidade penal ou fiscal, pois então estar-se-ia a questionar o próprio processo interpretativo seguido pela decisão judicial recorrida, e não o resultado desse processo, passando o Tribunal Constitucional a ter de controlar todas as interpretações normativas arguidas de
“erróneas”. A isto acresceria que aqueles princípios constitucionais são dirigidos ao julgador, que não ao legislador.
Salvo o devido respeito, nenhum desses argumentos procede, radicando a posição maioritária na confusão entre objecto passível de recurso de constitucionalidade e fundamento da inconstitucionalidade invocada.
No caso do presente recurso, o que se questiona é o critério normativo acolhido na decisão recorrida, com carácter de generalidade e, por isso, susceptível de aplicação a outras situações, e não a decisão judicial impugnada, em si mesma considerada, na estrita dimensão de aplicação dos critérios normativos tidos por relevantes às particularidades do caso concreto. Trata-se, obviamente, de um objecto idóneo à fiscalização da constitucionalidade de normas a cargo do Tribunal Constitucional.
Deste modo, o que cumpre apurar é se a norma assim judicialmente definida viola, ou não, os invocados princípios constitucionais, isto é, se a mesma ultrapassa o sentido possível das palavras da lei, criando situações imprevisíveis (em termos de razoabilidade) para os destinatários das normas penais ou tributárias em causa e privando estas normas da possibilidade de cumprir a sua função específica de orientar condutas humanas, prevenindo a lesão de relevantes bens jurídicos. Não se trata, pois, de admitir recurso de constitucionalidade com base em qualquer pretensa interpretação errónea da lei acolhida na decisão judicial recorrida (posição que ninguém sustenta mas que a posição maioritária escolheu como alvo), mas tão-só de controlar o eventual extravasamento de limites à criação, por via interpretativa ou integrativa, de normas ao arrepio dos princípios constitucionais da legalidade ou da tipicidade penal ou fiscal. Não é realidade diversa da que ocorre, por exemplo, no controlo da inconstitucionalidade orgânica de normas incluídas em decretos-leis do Governo não parlamentarmente autorizados, versando matéria de reserva de competência legislativa da Assembleia da República, em que o juízo de inconstitucionalidade se funda, muitas vezes, no carácter inovatório das soluções acolhidas.
Não faz, assim, sentido distinguir entre processo interpretativo e resultado desse processo e pretender que inconstitucionalidade só ocorreria se o resultado da interpretação fosse, em si mesmo, constitucionalmente intolerável, isto é, que inconstitucionalidade só existiria se, supondo que o legislador houvesse definido directamente a solução jurisdicionalmente alcançada, tal solução se mostrasse, do ponto de vista material, constitucionalmente intolerável. No caso concreto, a violação da Constituição não decorre da pretensa inconstitucionalidade material da tributação dos “juros decorridos” se esta tivesse sido clara e directamente prevista na lei, mas antes da sujeição dos contribuintes a um tributo com base numa interpretação com a qual eles não podiam razoavelmente contar porque insusceptível de ser suportada na letra da lei.
Por último, também não procede o argumento de que os invocados princípios constitucionais são dirigidos ao julgador, que não ao legislador, e, por isso, não seriam idóneos a sustentar uma questão de inconstitucionalidade normativa. Os princípios da legalidade ou da tipicidade penal ou fiscal são dirigidos aos criadores de normas, que pretendam orientar a conduta dos respectivos destinatários, independentemente da sua origem ou fonte. As decisões dos tribunais, enquanto criadoras de normas por via interpretativa ou integrativa, estão sujeitas a esses princípios, cuja alegada violação integra manifestamente uma questão de constitucionalidade normativa, que ao Tribunal Constitucional incumbe apreciar.
2. Tendo votado no sentido do conhecimento do objecto do recurso, votaria igualmente no sentido do provimento do mesmo, pelas razões proficientemente desenvolvidas no parecer de José Casalta Nabais.
Mário José de Araújo Torres
Declaração de voto
Votei vencida quanto à parte em que se decidiu não conhecer do objecto do recurso por não estar em causa uma questão de constitucionalidade normativa, susceptível de apreciação pelo Tribunal Constitucional, pelas razões constantes da declaração de voto que juntei ao Acórdão n.º 383/2000, na qual apenas vou introduzir as adaptações estritamente necessárias.
1. É sabido que o objecto do recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade previsto na alínea b) do nº 1 da Lei do Tribunal Constitucional é constituído por normas efectivamente aplicadas durante o processo. E, de acordo com a jurisprudência corrente deste Tribunal, a norma jurídica cuja constitucionalidade há-de ser apreciada é tomada com o sentido que lhe foi interpretativamente atribuído pela decisão recorrida. Assim se escreveu, por exemplo, no Acórdão nº 168/99 (não publicado): 'Quando das disposições legais em causa se extraem, ou podem extrair, diferentes proposições normativas, ou diferentes interpretações, devem ser tomadas como objecto da verificação de constitucionalidade as normas legais aplicadas, de acordo com o sentido normativo decisivamente aceite e aplicado pelo tribunal recorrido'. Noutros termos, objecto do recurso é a 'norma, interpretativamente mediatizada pela decisão recorrida, porque a norma deve ser apreciada no recurso segundo a interpretação que lhe foi dada dessa decisão' (Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 6ª edição, Coimbra, 2002, pág. 981). A norma efectivamente aplicada pelo tribunal recorrido é a que o Supremo Tribunal Administrativo extraiu, por interpretação, do disposto nos artigos 1º e 6º, n.º 1, alínea c) (na versão originária) e 91º do CIRS e nos artigos 75º, n.ºs 1, alínea c) e 6 do CIRC, segundo a qual “os juros de títulos de dívida negociados, decorridos antes do vencimento ou reembolso, pagos pelo adquirente ao alienante aquando da transacção efectuada, são rendimentos de capitais tributáveis e sujeitos a retenção na fonte no acto de pagamento”. Não releva agora na parte relativa à retenção na fonte, uma vez que não foram incluídos no objecto do recurso os preceitos contidos nos dois últimos artigos citados. Deste modo, é a norma aplicada, interpretativamente extraída da respectiva fonte legal – e não a fonte em si mesma considerada, como acto legislativo ou como disposição legal –, que constitui objecto do recurso de constitucionalidade previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional. Como afirma ARMINDO RIBEIRO MENDES (no Relatório apresentado na I Conferência da Justiça Constitucinal da Ibero-América, Portugal e Espanha – Os órgãos de fiscalização da constitucionalidade: Funções, competências, organização e papel no sistema constitucional perante os demais poderes do Estado, separata de Documentação e Direito Comparado, nº 71/72, Lisboa, 1997, pág. 719), 'objecto de controlo de constitucionalidade são as normas jurídicas e não os preceitos normativos que as contêm'. Não tem assim autonomia – não podendo assumir-se como questão diferenciada de constitucionalidade – o problema de saber se o teor dos preceitos indicados ofende a Constituição por insuficiente definição dos pressupostos da tributação. O que não impede que a análise das disposições legais em causa possa configurar-se como um momento relevante do juízo de constitucionalidade normativa a realizar.
2. É incontroverso que os poderes do Tribunal Constitucional em matéria de fiscalização concreta da constitucionalidade se dirigem a normas jurídicas e não a decisões judiciais. Já não é isenta de dúvidas a resposta à questão de saber como deve traçar-se a fronteira entre umas e outras, para o efeito de delimitar o âmbito do poder de fiscalização da constitucionalidade normativa pelo Tribunal Constitucional [sobre a questão, em termos genéricos, cf. RUI MEDEIROS, A decisão de inconstitucionalidade – os autores, o conteúdo e os efeitos da decisão de inconstitucionalidade da lei, Lisboa, 1999, págs. 336-34, que afirma:
'A competência do Tribunal Constitucional deve, pois, abranger a fiscalização da constitucionalidade de uma regra abstractamente enunciada para uma aplicação genérica e não simplesmente o controlo da concreta decisão de um caso jurídico'
(pág. 339)]. O problema colocado no presente recurso é o de saber se deve afastar-se do
âmbito da fiscalização pelo Tribunal Constitucional a apreciação da constitucionalidade, por violação do princípio da legalidade fiscal, de normas interpretativamente obtidas (ou, o que é dizer o mesmo, de determinadas interpretações normativas) que foram aplicadas na decisão recorrida. Deve lembrar-se antes de mais que o Tribunal Constitucional se tem considerado em geral competente para julgar a constitucionalidade de interpretações normativas, ou de normas interpretativamente obtidas (entendida aqui interpretação no seu sentido amplo, abrangendo o processo de detecção da norma por via de analogia ou de interpretação em sentido estrito), apesar da dificuldade prática, por vezes experimentada, da distinção entre norma e decisão judicial. Como se afirmou no Acórdão 612/94 (publicado no Diário da República, II Série, de 11 de Janeiro de 1995), 'O Tribunal Constitucional vem entendendo, numa jurisprudência longamente firmada, que invocar a inconstitucionalidade de uma dada interpretação de certa norma jurídica é invocar a inconstitucionalidade da própria norma, nessa interpretação - hipótese que não se confunde com aquelas em que pura e simplesmente se invocou a inconstitucionalidade da própria decisão, e só desta'. Indispensável é que esteja em causa um critério normativo de decisão, em que o Tribunal recorrido se tenha baseado como ratio decidendi. Independentemente da questão de saber em que termos se coloca a distinção entre interpretação e aplicação, não pode obviamente o Tribunal Constitucional sindicar o acto de julgamento, que envolve a ponderação decisiva da singularidade do caso concreto, ou a decisão, como resultado da conjugação indissociável do facto e do critério normativo utilizado. Mas pode e deve aferir a constitucionalidade desse critério normativo. Não são, pois, sindicáveis, nem a aplicação a uma dada situação concreta de um critério normativo – isto é, a subsunção, operada pelo aplicador do direito, do caso concreto à norma–, nem a obtenção, pelo julgador, de uma solução não decorrente de critérios estritamente normativos.
À luz das considerações indicadas, o objecto do presente recurso é inegavelmente uma norma jurídica, que pode enunciar-se com generalidade e abstracção, como se viu já.
3. Esta afirmação, por si só, não resolveria totalmente o problema, na medida em que, residindo a questão de constitucionalidade suscitada na alegada violação do princípio da legalidade fiscal pela interpretação adoptada, há quem entenda (e foi esta a solução que fez vencimento no caso presente) não poder tal vício ser conhecido por este Tribunal, que, aliás, tem proferido decisões de sentido não unívoco (cf. designadamente os acórdãos citados no Acórdão nº 674/99, no âmbito do direito criminal). Debruçou-se sobre a questão RUI MEDEIROS (ob. cit., págs. 340-342), que, relativamente às hipóteses em que o tribunal obtém uma norma penal através do mecanismo da integração de lacunas por analogia, considera que não é possível conhecer do recurso de constitucionalidade por violação da legalidade criminal, já que o que verdadeiramente seria fiscalizado seria não a norma mas o 'próprio processo de obtenção da regra aplicável' (ob. cit., pág. 341). Assim, por considerar estar em causa o acto de julgamento e não a inconstitucionalidade de uma norma jurídica, não seria possível ao Tribunal Constitucional conhecer do recurso sempre que o próprio legislador pudesse, sem ofender a Constituição, estabelecer por via legislativa solução idêntica àquela que resulta da interpretação ou integração inconstitucional da lei realizada pelo Tribunal a quo. Está conforme com esta doutrina o Acórdão nº 674/99 (embora aparentemente como obiter dictum, já que afirmou que no caso 'nem sequer ocorreu uma integração analógica ou 'operação equivalente', mas uma mera interpretação da lei que vem contestada pelo recorrente'), julgando-a aplicável aos casos de normas penais obtidas por via de 'integração analógica' ou de 'formas não admissíveis de interpretação extensiva'.
4. Apesar de assentar em argumentação ponderosa (cf., para além da citada obra de RUI MEDEIROS, os pontos 49 a 53 do Acórdão nº 674/99 do Tribunal Constitucional), tal doutrina não parece ser procedente. Antes de mais, importa ter presente que a tese em apreciação afasta certas questões de constitucionalidade da fiscalização do Tribunal Constitucional não em função do seu objecto (constituído por uma verdadeira norma), mas em função do seu fundamento: a saber, a circunstância de a norma obtida resultar de determinado processo interpretativo desconforme com o princípio da legalidade penal (ou fiscal). Ora, não se encontra base constitucional ou legal para excluir da fiscalização da constitucionalidade de normas (posto que se trate de efectivas normas, ainda que interpretativamente construídas, como no presente recurso) a apreciação de um específico fundamento dessa inconstitucionalidade. Na verdade, se a norma em causa pode ser confrontada com a Constituição com fundamento na violação de outras normas ou princípios constitucionais (o que não
é posto em causa pela doutrina que agora se analisa), não se vê porque deva ser excluído o fundamento consistente na violação da legalidade criminal (ou fiscal). Não se diga que, se o legislador formulasse directamente uma norma com o conteúdo que lhe foi interpretativamente atribuído pelas instâncias, tal norma não violaria a Constituição. Este argumento não vale, já que a norma cuja constitucionalidade se aprecia é a que foi aplicada no processo, e não uma norma hipoteticamente criada por acto legislativo. De resto, a inconstitucionalidade da norma pode resultar da violação da Lei Fundamental não pelo seu próprio conteúdo, mas pelo processo da sua obtenção: basta pensar nas hipóteses de inconstitucionalidade orgânica e formal, resultantes da violação, no processo de formação da norma, de preceitos constitucionais de competência e de forma. Também nestas últimas hipóteses, seria possível ao legislador elaborar uma norma de conteúdo idêntico, sem violar a Constituição. Mas essa seria uma outra norma, e não aquela cuja inconstitucionalidade orgânica ou formal se suscita. Não parece também procedente o argumento de que basear o juízo de constitucionalidade na natureza do processo de interpretação ou integração usado
é sindicar o 'acto de julgamento'. Na verdade, em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade normativa, há que distinguir – apesar das inevitáveis dificuldades teóricas e práticas suscitadas – entre tudo o que é resultado da ponderação do caso concreto submetido ao Tribunal, e que releva da decisão, daquilo que é a adopção de critérios normativos, e que releva da norma aplicada. Ora, quando um tribunal extrai, a partir de uma fonte, um critério normativo válido para uma série de casos, utilizando um processo hermenêutico também considerado válido para esses casos, não é o singular acto de julgamento que está em causa, nem a concreta decisão do tribunal em que esse acto se consubstancia. Pelo contrário, nessas hipóteses, a questão é manifestamente de constitucionalidade normativa. Acresce que, em bom rigor, averiguar da violação do princípio da legalidade penal ou fiscal não supõe necessariamente a exacta qualificação do procedimento metódico usado (analogia, interpretação extensiva), mas tão só apurar se a norma obtida 'ultrapassa o sentido possível das palavras da lei penal' (ou fiscal, pode acrescentar-se) –cf. a declaração de voto do Conselheiro Sousa Brito no Acórdão 674/99 e o Acórdão nº 205/99, Diário da República, II Série, de 5 de Novembro de 1999. Ou, noutros termos, 'independentemente de estar em causa uma interpretação extensiva ou aplicação analógica desta norma legal, o que se pergunta é se a norma, dimensão, sentido ou interpretação obtidos contrariam ou não, na sua génese, o princípio da legalidade e, em concreto, a exigência de lex certa que lhe é ínsita' (Acórdão nº 205/99, seguido pelo Acórdãos nº 285/99 e
122/00, publicados no Diário da República, II Série, de 21 de Outubro de 1999 e de 6 de Junho de 2000, respectivamente). Mas deve ainda ponderar-se o argumento, utilizado no Acórdão nº 674/99, de que admitir o recurso em hipóteses como as do caso então em apreciação seria aceitar que o Tribunal Constitucional procedesse ao controlo da interpretação judicial das normas penais, pois 'a todas as interpretações consideradas erróneas pelos recorrentes poderia ser assacada a violação do princípio da legalidade em matéria penal (...)'. Assim, 'seria sempre possível atacar uma norma legislativa, quando interpretada de forma a exceder o seu 'sentido natural' (e qual é ele, em cada caso concreto), com base em violação do princípio da separação de poderes', bem como, se 'uma tal interpretação atingisse norma sobre matéria da competência legislativa reservada da Assembleia da República', com base na 'existência de uma inconstitucionalidade orgânica'. Este argumento não deve também aceitar-se, já que pressupõe que o entendimento criticado implicaria entender como violação do princípio da legalidade uma interpretação 'errónea', qualquer que ela fosse, por corresponder à adopção de um sentido normativo divergente do seu 'sentido natural', ou seja da interpretação 'correcta'. Semelhante argumento não pode proceder, porque é dirigido contra uma posição cuja defesa, em boa verdade, ninguém adopta. Na verdade, uma coisa é a bondade de uma dada interpretação, e outra, bem distinta,
é a contrariedade à Constituição dessa mesma interpretação. Uma disposição penal
(ou fiscal) pode ser objecto de diferentes interpretações compatíveis com o princípio da legalidade. O que este princípio proíbe é que o julgador alcance, contra o princípio nullum crimen sine lege, ou nullum tributum sine lege, uma norma cujo conteúdo ultrapassa o sentido possível das palavras da lei. Quanto à possibilidade – alegadamente proporcionada pela doutrina criticada no Acórdão nº 674/99 – de assacar a determinada interpretação outras causas de inconstitucionalidade (como a orgânica), deve lembrar-se que o Tribunal Constitucional tem, por diversas vezes, apreciado a constitucionalidade orgânica de interpretações adoptadas pelas instâncias, em hipóteses em que há interpretações alternativas não violadoras das regras constitucionais de competência. Referindo apenas acórdãos tirados em matéria penal, cabe mencionar o Acórdão nº 609/95 (publicado no Diário da República, II Série, de 19 de Março de 1996), que, confrontado com o alcance de uma dada norma revogatória, afastou a interpretação que conduziria à sua inconstitucionalidade orgânica (tratava-se da revogação por um Decreto-Lei não autorizado de uma norma penal), impondo uma interpretação que considerou conforme com a Constituição. De modo semelhante, o Acórdão nº 41/00 (Diário da República, II série, de 20 de Outubro de 2000) impôs determinada interpretação do artigo 199º do Código de Processo Penal (contrária
à adoptada na decisão recorrida), de modo a afastar a sua inconstitucionalidade orgânica, afirmando: 'a norma constante do artigo 199º do Código de Processo Penal, se fosse interpretada no sentido de abranger os titulares de cargos políticos, maxime os titulares de órgãos representativos autárquicos, entraria em colisão com o disposto no citado artigo 164º, alínea m), da Constituição'. Já no Acórdão nº 520/99, não publicado, (estava em causa o respeito por uma lei de autorização legislativa em sede de direito de mera ordenação social), onde se reconheceu a 'dificuldade tão amiudadamente sentida de estabelecer, de modo inequívoco e resposta fácil, a linha de demarcação entre uma questão de interpretação normativa constitucionalmente sindicável e um mero reexame da matéria fáctica apurada e do enquadramento jurídico que lhe foi dado nas instâncias, mormente no tribunal a quo', a razão pela qual não se veio a conhecer do objecto do recurso, foi a de que não se suscitava uma 'questão de constitucionalidade normativa - ou de sua interpretação'.
5. Tomando então como norma a apreciar a que atrás se definiu, caberia observar que o apuramento de uma violação do princípio da legalidade fiscal, na sua vertente de tipicidade, não corresponde a saber se a disposição em causa foi bem ou mal interpretada, mas a saber se a norma aplicada (com a interpretação que lhe foi dada), por exceder o sentido possível das palavras da lei, se revela imprevisível para os destinatários. Como se afirmou no Acórdão nº 168/99,
'averiguar da existência de uma violação do princípio da tipicidade, enquanto expressão do princípio constitucional da legalidade, equivale a apreciar da conformidade da norma penal aplicada com o grau de determinação exigível para que ela possa cumprir a sua função específica, a de orientar condutas humanas, prevenindo a lesão de relevantes bens jurídicos'. O mesmo se deve dizer para a lei fiscal.
6. A Constituição, no seu artigo 103º, n.º 2 (a que correspondia o artigo 106º, n.º 2, à data dos factos) estabelece a obrigatoriedade de os impostos serem
“criados por lei, que determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes”. Esta norma constitucional não esgota o seu alcance, como se sabe, na dimensão de “reserva de lei parlamentar”, mas impõe igualmente que “as leis de imposto se revistam de um certo grau de especificação, determinação e precisão, de tal modo que, do seu enunciado, cada figura tributária resulte suficientemente caracterizada, e nítida nos seus contornos” (J. M. Cardoso da Costa, O Enquadramento Constitucional do Direito dos Impostos em Portugal: A Jurisprudência do Tribunal Constitucional, in Jorge Miranda (ed.), Perspectivas Constitucionais, Nos 20 Anos da Constituição de 76, vol. II, Coimbra, 1997, p. 408). Trata-se, justamente, do princípio da tipicidade tributária. Ora, como ali se adverte, o Tribunal, no modo como tem entendido o princípio da tipicidade, não foi ao ponto de proscrever, por inteiro, a utilização pelo legislador, no domínio da incidência real dos impostos, de conceitos indeterminados ou de cláusulas gerais (cfr. ob. cit., p. 411).
A este propósito, escreveu-se no Acórdão n.º 756/95 (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 32º vol., p. 783 e Diário da República, II série, de 27 de Março de 1996) o seguinte:
“A justificação de qualquer destas realidades (conceitos amplos/exigências de determinabilidade) não deixa de ser possível face a regras ou princípios constitucionalmente relevantes: se a determinabilidade se acolhe na defesa dos contribuintes contra o arbítrio da Administração Fiscal, que subjaze aos artºs nºs 2 e 3, do artº 106º, o emprego de conceitos amplos e por vezes indeterminados – os únicos que garantem a plasticidade que possibilite a adaptação ao constante aparecimento de novas situações que, substancialmente iguais a outras já tributadas, não estejam ainda formalmente descritas com precisão – não deixa, o emprego desse tipo de conceitos, de se poder louvar no cumprimento do mandato de igualdade em sentido material, não permitindo o aparecimento constante de refúgios de evitação fiscal.
Só a harmonização entre estas duas realidades, potencialmente conflituantes, é susceptível de fornecer soluções equilibradas que, sacrificando o menos possível dos valores subjacentes a cada uma, garanta o essencial desses valores.
Esta harmonização vem sendo prosseguida, nomeadamente no plano das jurisdições constitucionais, excluindo as cláusulas gerais que operem como que uma transferência da 'criação da obrigação fiscal' para a 'discricionariedade da administração', mas não inviabilizando liminarmente certas 'cláusulas gerais',
'conceitos jurídicos indeterminados', 'conceitos tipológicos' (...) 'tipos discricionários' (...) e certos conceitos que atribuem à administração uma margem de valoração, os chamados 'preceitos poder' (...).
Todas estas figuras, guardadas certas margens de segurança, flexibilizam o sistema tornando-o apto a abranger, através da interpretação,
'circunstâncias novas, porventura imprevisíveis ao tempo da formulação da lei'
(JL Saldanha Sanches, ob. cit., pág. 297 e 299/300 [A segurança jurídica no Estado social de direito, in Ciência e Técnica Fiscal, n.ºs 310/312]).
Ganha, assim, a tipicidade tributária, concretizada no princípio da determinabilidade, um valor específico, aquele que (e citamos de novo JL Saldanha Sanches) 'tem o seu núcleo essencial na reserva da competência da lei para a selecção dos factos da vida social que devem ser objecto de tributação, na manutenção do dictum do legislador ordinário quanto à determinação dos factos tributáveis', mas que não inviabiliza 'que este se sirva de uma formulação suficientemente ampla para abranger factos da mesma natureza e igualmente indicadores de capacidade tributária, ainda que com características que entre si os diferenciem' (ob. cit., pág. 299).”
As considerações que precedem têm sobretudo em vista a própria formulação da norma pelo legislador fiscal, mas delas resultam também exigências dirigidas ao intérprete da norma fiscal. Por outras palavras, o princípio da tipicidade impõe também limites à actividade do intérprete. Não será constitucionalmente aceitável, assim, um resultado interpretativo que, ao arrepio dos elementos da interpretação, frontalmente contrarie o quadro legal delimitador das situações sujeitas a imposto, tributando uma realidade que se encontra claramente fora da zona de abrangência da norma de incidência. Não pode, porém, deixar-se de salientar aqui, como se afirmou no Acórdão n.º
59/95 (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 30º vol., p. 105 e Diário da República, I Série-A, de 10 de Março de 1005) que a existência de um princípio de tipicidade não afecta a validade de argumentos por maioria ou identidade de razão, e de raciocínios por analogia, para interpretar, apenas proíbe a integração de lacunas e, portanto, o uso desses ou outros argumentos, para as integrar. Significa isto que tal como o princípio da tipicidade tributária não proscreve ao legislador o uso de conceitos indeterminados e de cláusulas gerais, não proscreve também ao intérprete o uso de raciocínios por analogia para efeitos de interpretação desses conceitos e cláusulas.
7. É em face das considerações que precedem que deve ser analisada a norma que constitui o objecto do presente recurso. A recorrente sustenta que a interpretação adoptada pelo Supremo Tribunal Administrativo para a norma viola ostensivamente o princípio da legalidade tributária, ao considerar que “os juros de títulos de dívida negociados, decorridos antes do vencimento ou reembolso, pagos pelo adquirente ou alienante aquando da transacção efectuada, são rendimentos de capitais tributáveis e sujeitos a retenção na fonte no acto de pagamento”, porque da alínea a) do n.º 3 do artigo 8º do CIRS resultava que “a obrigação de imposto se constituía no momento do vencimento”; e que, para assim não entender, o Supremo Tribunal Administrativo teve de adoptar uma interpretação restritiva desta alínea a), não considerando ali incluídos os juros decorridos e sendo, então, obrigado a criar uma norma – com o conteúdo que o Decreto-Lei n.º 263/92 veio conferir
àquela alínea c) –não existente na versão originária do CIRS. A recorrente não questiona, verdadeiramente, que os “juros decorridos” se possam considerar abrangidos na alínea c) do n.º 1 do artigo 6º; questiona é que se possa chegar a essa conclusão conjugando tal alínea c) com a al. a) do n.º 3 do artigo 8º, ambos na redacção originária do CIRS. Ora, como se disse, não cabe ao Tribunal Constitucional, nem verificar a correcção da interpretação adoptada pelo Supremo Tribunal Administrativo, nem substituir-se-lhe na fixação de qualquer outra que devesse eventualmente ter sido seguida; nem, naturalmente, tecer considerações sobre qual terá sido o percurso interpretativo seguido para o efeito. Compete-lhe antes, tão somente, verificar, à luz da apontada razão de ser do referido princípio da legalidade tributária, na sua vertente de tipicidade, se pode ou não tal interpretação ser suportada pelo sentido possível das palavras da lei. E a verdade é que não se pode considerar infringido tal princípio. No fundo, a interpretação adoptada pelo Supremo Tribunal Administrativo significa, apenas, interpretar o termo vencimento de modo adequado à hipótese peculiar dos “juros decorridos”. Com efeito, tendo presente que tais “juros decorridos” deviam ser pagos pelo adquirente dos títulos, para além do capital mutuado, ao respectivo alienante
(que, portanto, via o seu rendimento correspondentemente acrescido), e que eram calculados de forma a corresponderem à parcela do juro “global” correspondente ao tempo já “decorrido”, pode entender-se que, do ponto de vista do alienante, se verificava um verdadeiro vencimento (parcial) antecipado da obrigação de juros.
Tal interpretação da lei apenas reflecte o significado corrente do pagamento dos “juros decorridos”, não podendo afirmar-se que põe em causa a função da tipicidade fiscal enquanto garantia de previsibilidade e de segurança na definição da actuação dos agentes económicos.
Ter-me-ia, assim, pronunciado no sentido do não provimento do recurso.
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Declaração de voto
1.Votei vencido por entender que se deveria ter tomado conhecimento do presente recurso, já que estava em causa a apreciação da constitucionalidade, não de uma decisão judicial, mas de uma norma, tal como aplicada pelo tribunal recorrido. A questão cifra-se em saber se, nos termos dos artigos 280º, n.º 1, alínea b), da Constituição e do artigo 70º, n.º 1, alínea b) da Lei do Tribunal Constitucional, compete ao Tribunal Constitucional apreciar, no julgamento de recursos de decisões dos tribunais “que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo”, a conformidade ao princípio da legalidade (criminal ou, como no presente caso, fiscal) de dimensões interpretativas de normas adoptadas como ratio decidendi pelo tribunal recorrido. Como se dá conta no acórdão, nem sempre a jurisprudência deste Tribunal tem sido uniforme quanto a tal questão. Se nos Acórdãos n.ºs 353/86, 634/94, 756/95,
221/95, (publicados respectivamente nos Acórdãos do Tribunal Constitucional
[ATC], vol. 8º, p. 571, vol. 29º, p. 243, e vol. 32, p. 775, e no Diário da República, II série, de 27 de Junho de 1995), 682/95 e 154/98, ainda inéditos, se recusou tomar conhecimento da questão, já nos acórdãos n.ºs 141/92, 205/99,
285/99, 122/00 (publicados, respectivamente, em ATC, vol. 21º, p. 599, vol. 43º, pp. 225 e 477, e vol. 46º, p. 449), 317/00, 494/00, 557/00 e 585/00 (inéditos), foi apreciada e decidida a conformidade ao princípio da legalidade criminal de normas enquanto “resultado do processo de interpretação ou de criação normativa”. Entendo que este segundo entendimento é o que devia ter sido seguido pelo Tribunal, nada impondo, ou autorizando, a restrição dos poderes de controlo concentrado da constitucionalidade de forma a subtrair a este a aferição segundo um específico (e tão relevante) parâmetro constitucional.
2.Constitui, na verdade, jurisprudência constante deste Tribunal (vejam-se, por exemplo, os Acórdãos n.ºs 238/94 e 336/94, o primeiro publicado no Diário da Repúbica, II série, de 28 de Julho de 1994) que a questão de inconstitucionalidade a apreciar no julgamento de recursos de constitucionalidade tanto se pode referir a uma norma, ou a um seu segmento normativo, considerados “em si mesmos”, como apenas a uma sua determinada interpretação. Esta dimensão normativa, correspondente a um sentido interpretativo, é susceptível de impugnação autónoma e de controlo pelo Tribunal Constitucional, enquanto norma aplicada pelo tribunal recorrido, devendo distinguir-se entre a fonte ou preceito (legal ou não) e a norma cuja apreciação
é objecto do recurso de constitucionalidade.
É, aliás, evidente que tem de ser assim, não só por as normas não existirem na prática, enquanto aplicadas em decisões dos tribunais – e é destas que se recorre para o Tribunal Constitucional –, a não ser na interpretação com que foram aplicadas, como porque a solução contrária conduziria, por conseguinte, ao esvaziamento da competência deste Tribunal para julgar recursos de constitucionalidade: a interpretação de uma norma é uma actividade sempre necessária, antes da sua aplicação, e o seu confronto com a Constituição também pressupõe sempre essa interpretação. Ora, a interpretação de uma norma é, no processo metodológico de obtenção da solução do caso – previamente à sua “aplicação” –, uma actividade que incumbe aos tribunais. A intervenção dos órgãos jurisdicionais na determinação da norma que o Tribunal Constitucional aprecia é, pois, iniludível em todos os recursos de constitucionalidade, não só no casos em que está em causa essa norma “em si mesma” – rectius, na sua interpretação declarativa, ou em todas as suas interpretações possíveis –, mas também, e sobretudo, quando apenas é impugnada uma sua específica dimensão interpretativa.
3.Também não é, portanto, correcta a afirmação de que o Tribunal Constitucional, mesmo quando julga recursos de constitucionalidade, apenas controla a actividade do legislador, e não dos tribunais. E isto, mesmo deixando de lado considerações especificamente metodológicas, ou seja, independentemente da posição que se adopte sobre a indispensável convocação de critérios normativos construídos pelo julgador (partindo deste para a determinação da norma, ou desta para o caso) em ligação com o caso concreto – a “norma do caso” da metodologia fikentscheriana
–, ou independentemente da questão da natureza “normativa” do “direito dos juízes” (“Richterrecht”) – sobre estas questões, cfr. António Castanheira Neves, Metodologia jurídica. Problemas fundamentais, Coimbra, 1993, pp. 142 e ss. e Karl Larenz/Claus-Wilhelm Canaris, Methodenlehre der Rechtswissenschaft, 3ª ed., Berlim, 1995, pp. 133 e ss. e 252 e ss.. Este Tribunal tem, na verdade, considerado que lhe compete apreciar também a conformidade constitucional de normas criadas pelo julgador como critério para integração de lacunas, nos termos do artigo 10º, n.º 3, do Código Civil (assim, no Acórdão n.º 150/86, in ATC, 7º vol., tomo I, p. 287), deixando claro que a
“autoria” da norma pelo tribunal recorrido ou pelo legislador não é decisiva para o objecto do recurso de constitucionalidade. A ideia de que o Tribunal Constitucional apenas controla a actividade do legislador – subjacente, em última instância, ao afastamento do parâmetro do princípio da legalidade, que se dirigiria ao tribunal e não àquele legislador – será procedente em sistemas que apenas conhecem um controlo abstracto da constitucionalidade de normas, mas não corresponde, seguramente, ao figurino constitucional e legal das competências do Tribunal Constitucional português, que inclui o julgamento de recursos de decisões dos tribunais. Não deve, na verdade, confundir-se a fiscalização da constitucionalidade da actividade do legislador com o controlo da constitucionalidade de normas, pois este não se reduz àquele. Antes pelo contrário, pode mesmo dizer-se que o controlo da conformidade constitucional de normas, tal como aplicadas pelos tribunais, é o correlato necessário do controlo da actividade de produção normativa do legislador, pois apenas os órgãos jurisdicionais podem conferir às normas pleno conteúdo, determinando o seu sentido e criando, portanto, law in action, em contraposição à law in the books. É pois, perfeitamente coerente que o nosso sistema de controlo da constitucionalidade, ao prever recursos de decisões dos tribunais que apliquem normas, atribua ao Tribunal Constitucional o controlo concentrado da constitucionalidade de normas tal como são aplicadas na prática pelos tribunais, nos casos concretos, e não apenas “nos livros”, desligado desses casos. Aliás, se não fosse assim, a repartição da competência para fiscalização da constitucionalidade entre o Tribunal Constitucional e os restantes tribunais ficaria dependente dos acasos da técnica legislativa – da existência, ou não, de uma norma aprovada pelo legislador que fosse de “aplicar” no caso concreto, ou da sua criação ou convocação por analogia, para preenchimento de uma lacuna.
4.Pode, pois, assentar-se em que o Tribunal Constitucional é em geral competente para apreciar a constitucionalidade de interpretações normativas – ou normas em determinada interpretação –, e em que, no julgamento de recursos de constitucionalidade, com essa apreciação não controla apenas a actividade do legislador, mas também dos tribunais. O acórdão de que discordei, tal como vários outros que perfilham a posição de que ao Tribunal Constitucional não compete conhecer do respeito da norma pelo princípio da legalidade, baseia-se, porém, na consideração de que, neste controlo, estariam em causa apenas
“inconstitucionalidades dos actos judiciais propriamente ditos ou, dito de outro modo, de inconstitucionalidades que atinjam directamente decisões judiciais.” Efectivamente, ao Tribunal Constitucional não compete controlar a conformidade à Constituição das decisões jurisdicionais – aqui sim – “em si mesmas”, mas apenas das normas que constituíram sua ratio decidendi. E é evidente que, por várias razões – entre as quais avulta o reconhecimento metodológico de que a interpretação e a determinação da “norma aplicável” são momentos indissociáveis da realização do direito concreta e problemático-decisória –, nem sempre é fácil apurar como deve traçar-se a fronteira entre norma e decisão, tendo a consciência dessas dificuldades ficado definitivamente adquirida, no plano metodológico, com a superação do esquema subsuntivo característico do clássico
“método jurídico”. Não pode assim, o Tribunal Constitucional sindicar o acto de julgamento, na singularidade do caso concreto, ou a decisão judicial. A qualificação dos factos e a conjugação entre o facto e o(s) critério(s) normativo(s) mobilizado(s) para a decisão escapam ao controlo de constitucionalidade pelo Tribunal Constitucional. E também o processo de concretização de certas cláusulas gerais na decisão judicial se afigura
“destituído do sentido normativo com independência da sua decisão concretizadora necessário a poder constituir objecto de sindicância por parte deste Tribunal” – assim, para o “juízo aplicativo do critério sindicante do abuso do direito concretizado numa decisão judicial em face de um particular conjunto concreto de circunstâncias (e para a concepção dominante segundo um determinado critério valorativo)”, o Acórdão n.º 655/99, publicado in ATC, vol. 45º, p. 559. Em todos estes casos, está em questão apenas a decisão judicial, e não o critério normativo por ela convocado para resolver o caso concreto.
5.Diversamente, porém, um determinado sentido de uma norma, obtido por interpretação – isto é, uma norma, numa certa interpretação – pode e deve ter um tratamento autónomo da decisão judicial, como objecto de fiscalização de constitucionalidade à luz do princípio da legalidade. Com efeito, não se vê, desde logo, como pode qualificar-se diversamente o objecto a apreciar pelo Tribunal Constitucional em recurso de constitucionalidade – como “norma” ou como “decisão” (ou “processo de interpretação” ou equivalente) –, ou, sequer, o tipo de questão de constitucionalidade em causa (como “normativa” ou não), consoante o parâmetro constitucional à luz do qual ele é controlado. Ou aquele objecto é a apreciação de uma norma, ou não é – mas não pode não o ser à luz do princípio da legalidade e já o ser para efeitos de aferição segundo um qualquer outro princípio ou norma constitucional. Ora, a posição seguida no acórdão não pretende, aliás, excluir do domínio da fiscalização concentrada de constitucionalidade efectuada pelo Tribunal Constitucional o controlo de resultados normativos de interpretação por razões atinentes ao objecto a apreciar, mas, antes, por motivos relativos ao fundamento constitucional invocado: o princípio da legalidade. No entanto, diversamente do que acontece noutros sistemas, o nosso sistema de controlo de constitucionalidade não conhece limitações segundo o parâmetro constitucional, mas, apenas, relativas ao seu objecto. Desde que se trate efectivamente de normas, ainda que apenas numa certa interpretação aplicada pelo tribunal recorrido, não pode excluir-se a sua apreciação por estar em causa o seu confronto com um específico fundamento dessa inconstitucionalidade. Por outro lado, ainda que o princípio da legalidade incida também sobre o processo de obtenção do critério normativo, o resultado interpretativo pode, e deve, ser considerado autonomamente, e também em relação a ele se põe o problema do respeito pelo princípio da legalidade. Faz, com efeito, todo o sentido perguntar também se a norma – e não a decisão –, numa sua interpretação, vista enquanto resultado da actividade judicial interpretativa, respeita esse princípio, e logo esta circunstância deixa ver que se não está perante um mero controlo da decisão judicial (ou do processo de obtenção da decisão), mas antes perante um controlo de normas, no sentido com que estas são (e, como se disse, têm de ser) consideradas como objecto de apreciação no recurso de constitucionalidade. Está em causa determinado resultado interpretativo que é uma norma, por vezes formulada, aliás, como elevada abstracção do caso concreto e discutida, aceite ou rejeitada em controvérsias doutrinais e jurisprudenciais. Como se salienta na declaração de voto aposta pelo Cons. Sousa e Brito no citado Acórdão n.º 674/99, para o efeito do controlo de constitucionalidade da dimensão normativa em causa, é “irrelevante se esse resultado interpretativo foi obtido por interpretação extensiva ou por integração por meio de analogia ou havendo integração de lacuna por qualquer outro meio de preenchimento desta”, pois essa
é “questão de mera construção jurídica no sentido de que não tem consequências práticas” (a autonomização do resultado interpretativo em relação ao processo de interpretação foi, aliás, também salientada, por exemplo, nos citados Acórdãos n.ºs 205/99, 285/99 e 122/00). Não procede, por outro lado, o argumento de que, se o legislador formulasse directamente uma norma com o conteúdo interpretativamente atribuído pelo tribunal a quo, tal norma não violaria a Constituição. Tal objecção parte do princípio de que o controlo de constitucionalidade pelo Tribunal Constitucional se dirige, não aos tribunais, e antes apenas ao legislador, e esquece que o controlo do resultado interpretativo à luz do princípio da legalidade se pode fazer com independência do controlo do processo de obtenção da decisão judicial, pelo mero confronto entre a norma impugnada e o círculo dos “sentidos possíveis” da lei, para apurar se aquela ultrapassa o limite da letra (a “Wortsinngrenze”). Nem pode, por último, considerar-se decisivo o argumento de que a possibilidade de controlo de normas à luz do princípio da legalidade levaria, no limite, a que o Tribunal Constitucional controlasse, sempre, a interpretação judicial das normas penais (ou fiscais), ou mesmo de todas as normas, já que a todas as interpretações consideradas erróneas pelos recorrentes poderia ser assacada a violação do princípio da legalidade em matéria penal (ou fiscal) ou do princípio da separação de poderes. Nem tal posição é defendida com esta largueza por ninguém, nem pode dizer-se que todas as interpretações erradas da lei violam aqueles princípios. E, seja como for, bem mais grave é, a meu ver, que, com base em tal argumento verdadeiramente ad terrorem, o Tribunal Constitucional abdique de controlar normas, no sentido com que estas têm sido consideradas na sua jurisprudência constante, sempre que – e porque – é invocado um específico, e tão fundamental, parâmetro constitucional, quando é claro que lhe compete apreciar a sua conformidade constitucional tal como, e no sentido com que, são aplicadas pelos tribunais.
6.Diversamente da posição que fez vencimento, teria, pois, tomado conhecimento do presente recurso, passando a indagar se a norma em causa – o artigo 6°, n.°
1, alínea c), do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, na versão anterior ao Decreto-Lei n.° 263/92, de 25 de Novembro, interpretado no sentido de abranger os chamados “juros decorridos”, enquanto ganhos resultantes da alienação de títulos em data anterior ao respectivo vencimento – era inconstitucional, por violação do princípio da legalidade tributária. Paulo Mota Pinto