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Processo n.º 545/03
3ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A. propôs, no Tribunal do Trabalho de Vila Nova de Gaia, uma
“acção de impugnação judicial de despedimento emergente de contrato individual de trabalho, com processo declarativo comum”, contra B., pedindo que fosse
“declarada a ilicitude do despedimento” e a ré condenada a pagar-lhe as quantias a que considera ter direito e a reintegrá-la ou a indemnizá-la.
Para o efeito, alegou, em síntese, que, tendo celebrado contrato de trabalho a termo com a ré, ao abrigo do disposto na alínea h) do n.º 1 do artigo
41º do Regime Jurídico da Cessação do Contrato Individual de Trabalho e da Celebração e Caducidade do Contrato de Trabalho a Termo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 64-A/89, de 27 de Fevereiro, e sendo nula a estipulação do termo, seria ilícita a cessação do contrato de trabalho, por iniciativa da ré, sem o prévio procedimento disciplinar e sem qualquer justa causa.
Por sentença de 24 de Junho de 2003, de fls. 80, a acção foi julgada procedente e a ré foi condenada a reintegrar a autora sem prejuízo da sua categoria e antiguidade, referida a 11 de Julho de 2001, e ainda a pagar-lhe as prestações pecuniárias vencidas desde 17 de Fevereiro de 2003 até à reintegração.
Na parte que agora releva, a sentença entendeu que a interpretação da referida alínea h) do n.º 1 do artigo 41º citado, segundo a qual “são trabalhadores à procura do primeiro emprego os que não tenham anteriormente sido contratados por contrato por tempo indeterminado”, é “inconstitucional, por violar o princípio da segurança no emprego, consagrado no artigo 53º da CRP, e o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º do mesmo diploma fundamental”
(cfr. fls. 81).
Afirma-se ainda, na mesma sentença, o seguinte:
“A norma com aquele entendimento viola o artigo 53º da C.R.P. – norma a que é aplicável o regime dos artigos 17º e 18º da Constituição – pondo em causa o princípio da segurança no emprego, na sua vertente de tendencial perenidade dos vínculos laborais, revestindo carácter excepcional a contratação a termo. Sobre esta excepcionalidade, o Acórdão º- do T. C. n.º 581/95, de
31/10!95, BMJ, n.º 451, suplemento, págs. 497 ss, onde se refere constituir essa excepcionalidade um desiderato da garantia constitucional.
(...)
A excepção que assim se consagra ao regime regra da contratação laboral (sem termo), consagrado naquele normativo constitucional, não se mostra em nosso entender suficientemente fundada do ponto de vista material.
Não se vê razão para com aquela amplitude, permitir a contratação a termo, sem qualquer tipo de justificação, que não seja a de que o trabalhador nunca trabalhou ao abrigo de um contrato por tempo indeterminado.
No limite tal interpretação permitiria que todos os trabalhadores de uma empresa o sejam a prazo, que um trabalhador labore durante toda a sua vida com vínculo precário, ao abrigo desta alínea, de mão em mão (para diversos empregadores ao longo da sua vida activa).
Não havendo razão para chamar à colação os conceitos consagrados nos diplomas relativos às políticas de emprego, a única interpretação conforme ao princípio constitucional, seria então a explanada pelo acórdão da Relação de Lisboa de 5 de Dezembro de 2002, recurso n.º 9.715/4/01, sumariado em
www.dgsi.pt/jtrl.nsf6”.
E, quanto ao princípio da igualdade, afirmou-se na sentença o seguinte:
“Assim é que dois trabalhadores desempregados (por qualquer razão que seja), poderão ser ou não contratados ao abrigo da alínea h), conforme forem ou não trabalhadores por contrato a termo.
E o trabalhador que menos tempo trabalhou bem pode ser o mais protegido, bastando para tanto que, contratado por tempo indeterminado, tenha visto o seu contrato cessar durante o período experimental. Um trabalhador admitido por contrato sem termo, com, por exemplo, apenas 15 dias de trabalho –
(por ter ocorrido a cessação do contrato de trabalho no período experimental) – em toda a sua vida, gozará de maior protecção que outro que tenha laborado por exemplo 2 anos, mas ao abrigo de um contrato a prazo.
Tal diferenciação de tratamento, baseada que se mostra tão só no tipo de contrato celebrado, quanto ao seu prazo, não se mostra materialmente fundada.
Na verdade, tão “vulneráveis”, para usar a expressão do preâmbulo do Decreto-Lei, são uns como outros.
Já se entendido no sentido de abranger aqueles que ainda não ingressaram no mundo laboral, nunca tendo trabalhado, a diferenciação se mostra fundada. Dada a completa falta de experiência, é então justificável a atribuição
à entidade patronal desta possibilidade, que para o trabalhador resulta vantajosa, na medida em que lhe vai permitir adquirir alguma experiência profissional, e poder posteriormente apresentar-se junto de uma empregadora, como alguém que já trabalhou e já possui alguma experiência (...).
A necessidade de promover o emprego, diga-se, importa aos trabalhadores desempregados, independentemente da natureza do anterior vínculo. A menos que, do ponto de vista da protecção que o trabalhador merece em termos de segurança no emprego, se queira penalizar aquele que, nas suas anteriores relações laborais, não logrou vínculo sem limite temporal, pois na verdade é nisso que redunda o normativo assim interpretado.
Aceitando a interpretação que de forma praticamente unânime ora vem sendo defendida pela instâncias superiores, concluímos pela inconstitucionalidade da alínea h) a que se vem aludindo, e consequentemente recusa-se a aplicação da mesma por inconstitucionalidade.”
2. Notificado da sentença, veio o Ministério Público, “ao abrigo do disposto nos artigos 280, n.1, al a), e n 3, da C. da R. Portuguesa, 70, n.º 1, al a), 72, n1, al a), e n.3, 75, n.1, 75-A e 78, n.2, da Lei n.º 28/82, de
15/11, com a redacção da Lei n.º 85/89, de 7/9, interpor recurso para o Tribunal Constitucional”.
Admitido o recurso, as partes foram notificadas para alegar.
O Ministério Público apresentou as suas alegações, tendo concluído da seguinte forma:
“1 – A interpretação normativa do artigo 41º, n.º 1, alínea h), do Decreto-Lei n.º 64-A789, de 27 de Fevereiro, segundo a qual se devem incluir no conceito de trabalhadores à procura de primeiro emprego aqueles que nunca trabalharam ao abrigo de uma relação contratual permanente e estabilizada, sendo, consequentemente, lícita a celebração de contrato a termo com aqueles que já trabalharam ao abrigo de uma relação temporalmente limitada, não ofende os princípios constitucionais da igualdade e da segurança no emprego.
2 – Termos em que deverá proceder o presente recurso.”
A recorrida não apresentou alegações.
3. Cabe começar por fixar o objecto do recurso.
É o seguinte o texto do artigo 41º, n.º 1, alínea h), do Regime Jurídico da Cessação do Contrato Individual de Trabalho e da Celebração e Caducidade do Contrato de Trabalho a Termo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º
64-A/89, de 27 de Fevereiro (entretanto revogado pela al. m) do n.º 1 do artigo
21º da Lei n.º 92/2003, de 27 de Agosto, que aprovou o novo Código do Trabalho):
Artigo 41º Admissibilidade do contrato a termo
1. Sem prejuízo do disposto no artigo 5º, a celebração de contrato de trabalho a termo só é admitida nos casos seguintes:
(...)
h) Contratação de trabalhadores à procura de primeiro emprego ou de desempregados de longa duração ou noutras situações previstas em legislação especial de política de emprego.
(...)
Constitui, assim, o objecto do presente recurso a norma da al. h) do n.º 1 do artigo 41º transcrito, interpretada no sentido de que se consideram trabalhadores à procura do primeiro emprego os que não tenham anteriormente sido contratados por tempo indeterminado, norma que a sentença recorrida considera que viola os princípios constitucionais da igualdade e da segurança no emprego, consagrados nos artigos 13º e 53º da Constituição.
4. Pelo Acórdão n.º 581/95 (publicado no Diário da República, I Série-A de 22 de Janeiro de 1996 e nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 32, págs. 92-93) o Tribunal Constitucional teve já oportunidade de se pronunciar sobre a referida alínea h) do artigo 41º, concluindo que a norma nela contida não viola, nem a garantia constitucional da segurança no emprego, nem o princípio da igualdade; e no mesmo sentido se julgou, depois, no Acórdão n.º 447/97, inédito.
Afirmou-se, a propósito, no aludido Acórdão n.º 581/95:
«O artigo 41º, nº 1, alínea h), determina a admissibilidade de celebração de contratos a termo com 'trabalhadores desempregados de longa duração ou noutras situações previstas em legislação especial de política de emprego'. É assim que o Governo-legislador concretiza o programa anunciado no preâmbulo, de 'absorção de maior volume de emprego, favorecendo os grupos socialmente mais vulneráveis'. Quando no pedido se afirma que aquela norma contraria a Constituição porque
'admite a contratação a termo mesmo que não haja outra justificação para tal
(...) sem que se verifique o carácter temporário da mão-de-obra' querer-se-á significar que, aqui, ao invés dos casos anteriores enunciados no artigo 41º, não está em causa a natureza do trabalho a prestar, mas, na expressão de Bernardo Xavier, uma 'causa subjectiva' do contrato a termo.
É verdade que a norma do artigo 41º, nº 1, alínea h), tem uma lógica própria, no sentido de que ela se radica numa 'ratio' que tem em conta a qualidade dos trabalhadores-destinatários. O que se pretende, está bem de ver, é estimular a celebração de contratos de trabalho pela convicção de inexistência de riscos para a entidade empregadora. Essa convicção de inexistência de riscos é induzida pela não adstrição a um vínculo de tempo indeterminado. Dir-se-á, desde logo, que a emergência de um motivo constitucionalmente válido de justificação do contrato a termo não se faz sentir apenas a partir de um quadro em que releva a 'natureza das coisas'. Também aqui é necessário um apelo
à ordem de valores da Constituição, sem perder de vista, é claro, a irredutibilidade dos direitos fundamentais. Em momento anterior, rejeitou-se uma argumentação capaz de funcionalizar os direitos fundamentais – e, neste caso, a garantia constitucional da segurança no emprego – às políticas globais do Estado. Com efeito, não é possível, sem mais, legitimar a conformação restritiva das posições jurídicas fundamentais em nome de uma concepção 'utilitarista' de 'prevalência' do 'bem-estar geral'. Daí que se haja afastado – no capítulo VI sobre a norma do artigo 5º [trabalhadores reformados] – um fundamento que pretensamente justificasse o termo do contrato para os mais velhos em nome de um contrato para os mais novos. Não valiam, pois, nesse plano, decisivamente, as razões de política de emprego. Já não é assim no caso em apreço da norma do artigo 41º, nº 1, alínea h). Aqui, não é possível afirmar, sem mais, que as posições subjectivas fundamentais dos trabalhadores destinatários da norma estão a ser 'funcionalizadas', porque aqui não nos confrontamos com os limites da inviolabilidade. Ou seja, os direitos de uns não estão a dar lugar aos direitos de outros em nome de uma política geral. O que se passa antes é que o legislador modela o contrato de trabalho sobre uma ponderação que sopesa a alternativa de limitá-lo no tempo [criando na entidade empregadora a convicção de inexistência de riscos] ou de o não proporcionar aos próprios interessados [mantendo aquela convicção do risco e as consequências da liberdade de não contratar]. Mas se a garantia de segurança no emprego está em relação com a efectividade do direito ao trabalho (C.R.P., artigo 58º) e se a Constituição comete ao Estado a incumbência de realização de políticas de pleno emprego, em nome também da efectividade desse direito [C.R.P., artigo 58º, nº 3, alínea a)], então não se pode dizer que é ilegítima aquela ponderação nem que são ultrapassados os limites de conformação que aí são postos ao legislador. Conformação que é restritiva, sem dúvida, se atendermos aos mandados de optimização das normas sobre direitos fundamentais. Mas que empreende uma ponderação justificada. Na verdade, o que está em análise é a justificação de uma norma que, assentando numa pressuposta 'menos-valia' da experiência profissional daqueles candidatos ao emprego, consagra uma opção de alargamento dos casos de contratação a termo. E não cabe ao Tribunal Constitucional sindicar o âmbito mais vasto das prognoses legislativas que com esta política porventura se entrecruzem. Por isso que não são violados nem a garantia constitucional da segurança no emprego (C.R.P., artigo 53º) nem o princípio da igualdade (C.R.P., artigo 13º).»
5. Antes de mais, cumpre observar que o julgamento feito neste Acórdão n.º
581/95 não considerou a específica interpretação que a sentença agora recorrida
“aceitou” para a alínea h) do n.º 1 do artigo 41º, Regime Jurídico, por ser a prevalecente na jurisprudência, como ali se afirma. Há, pois, que determinar se a garantia constitucional da segurança no emprego, que o Tribunal considerou, em sede de fiscalização abstracta, não ofendida pela norma do artigo 41º, n.º 1, alínea h), do mesmo Regime Jurídico, é ou não contrariada por esta concreta interpretação. Ora a verdade é que, do ponto de vista desta garantia, podem considerar-se equivalentes as situações de quem nunca conseguiu emprego e de quem nunca celebrou um contrato de trabalho por tempo indeterminado. Neste sentido, não se afigura como contrária à Constituição a norma desaplicada, interpretada no sentido de abranger no conceito de trabalhadores à procura do primeiro emprego aqueles que nunca trabalharam ao abrigo de um contrato por tempo indeterminado, permitindo dessa forma a celebração de contrato a termo com aqueles que antes já antes prestaram trabalho por tempo determinado.
6. Não procedem, assim, os argumentos utilizados pela sentença recorrida para fundamentar o juízo de inconstitucionalidade da interpretação que conduziu à desaplicação da norma do artigo 41º, n.º 1, alínea h), do Regime Jurídico da Cessação do Contrato Individual de Trabalho e da Celebração e Caducidade do Contrato de Trabalho a Termo, no segmento indicado e com a interpretação agora relevante.
Desde logo, não colhe a afirmação de que “tal interpretação permitiria que todos os trabalhadores de uma empresa o sejam a prazo, que um trabalhador labore durante toda a sua vida com vínculo precário, ao abrigo desta alínea, de mão em mão (para diversos empregadores ao longo da sua vida activa)”. Independentemente de outras considerações, a verdade é que, se a interpretação posta em crise permite que “um trabalhador labore durante toda a sua vida com um vínculo precário”, a interpretação oposta poderá permitir que uma pessoa se mantenha no desemprego durante toda a sua vida, sem qualquer vínculo, mesmo precário. Note-se, a este propósito, que a Lei n.º 18/2001, de 3 de Julho, aditou ao Regime Jurídico da Cessação do Contrato Individual de Trabalho e da Celebração e Caducidade do Contrato de Trabalho a Termo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º
64-A/89, a norma do artigo 41º-A, que impede “a celebração sucessiva ou intervalada de contratos a termo entre as mesmas partes, para o exercício das mesmas funções ou para satisfação das mesmas necessidades do empregador”, determinando que, em tal hipótese, ocorre a “conversão automática da relação jurídica em contrato sem termo”.
Uma segunda linha de argumentação constante da sentença recorrida consiste em afirmar que não há razão, no caso dos autos, “para chamar à colação os conceitos consagrados nos diplomas relativos às políticas de emprego”. E, na verdade, em tais diplomas os trabalhadores à procura do primeiro emprego surgem persistentemente definidos como aqueles que nunca prestaram a sua actividade mediante a celebração de contratos de trabalho sem termo (cfr., por exemplo, os diplomas referidos nas alegações apresentadas pelo Ministério Público: o artigo
3º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 257/86, de 27 de Agosto, entretanto revogado; o artigo 3º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 89/95, de 6 de Maio; ou artigo 2º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 34/96, de 18 de Abril, que o n.º 1 do artigo 33º da Portaria n.º 196-A/2001, de 10 de Março, afirma revogar). De resto, o próprio artigo 41º, n.º 1, alínea h), efectua uma remissão para “legislação especial de política de emprego”. Ora, se esta norma consubstancia uma medida de emprego, e se o Tribunal Constitucional a considerou legítima, não se vê por que razão não há-de o conceito de trabalhadores à procura do primeiro emprego ser interpretado uniformemente, no segmento desaplicado da norma do artigo 41º, n.º 1, alínea h) e nos diplomas relativos à política de emprego.
Assim, decide-se: a) Não julgar inconstitucional a norma da alínea h) do n.º 1 do artigo 41º do Regime Jurídico da Cessação do Contrato Individual de Trabalho e da Celebração e Caducidade do Contrato de Trabalho a Termo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 64-A/89, de 27 de Fevereiro, interpretada no sentido de que se consideram trabalhadores à procura do primeiro emprego os que não tenham sido anteriormente contratados por tempo indeterminado; b) Consequentemente, conceder provimento ao recurso, devendo a decisão recorrida ser reformada de acordo com o presente juízo de não inconstitucionalidade.
Lisboa, 24 de Março de 2004
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Vítor Gomes Gil Galvão Bravo Serra Luís Nunes de Almeida