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Processo n.º 636/2000 Conselheiro Messias Bento
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. J & COMPANHIA, LDA interpõe o presente recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º
1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (Secção de Contencioso Tributário), de 27 de Setembro de
2000, para que – conforme esclareceu na resposta ao convite para aperfeiçoamento do requerimento de interposição do mesmo – o Tribunal aprecie a constitucionalidade da norma constante do artigo 86º, nºs 1 (in fine) e 2, do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (CIVA), na redacção vigente em
1986.
A RECORRENTE concluiu como segue a alegação que apresentou neste Tribunal:
1ª) A norma jurídica cuja não conformidade com os preceitos da nossa Lei Fundamental se pretende venha a ser reconhecida e decretada é a do então artº
86º, nºs 1- e 2- do CIVA.
2ª) Nomeadamente, na parte do nº 1- daquele preceito em que se prescreve que a fixação definitiva do IVA não é susceptível de reclamação nem de impugnação judicial nos termos do Código de Processo das Contribuições e Impostos e dentro do prazo normal de 90 dias prescrito no artº 89º do C.P.C.I..
3ª) Ou seja, quando e na medida em que, dentro daquele prazo normal, se recusa a sindicabilidade do acto de fixação definitiva do imposto em todas as situações de ilegalidade e de inexistência ou insuficiência de facto tributário.
4ª) Portanto, também quando e na medida em que restringe anomalamente a possibilidade de se recorrer apenas e quando se esteja perante situações de preterição de formalidades legais.
5ª) E ainda quando no nº 2- daquele artº 86º se limita e condiciona a referida possibilidade restrita de sindicabilidade ao prazo anómala e desproporcionadamente curto de 8 (oito) dias.
6ª) De resto, a verdade é que o mencionado preceito do artº 86º do CIVA (após ter tido a redacção intermédia dada pelo mencionado Dec.-Lei nº 7/96), veio a ser revogado em Novembro do passado ano de 1999, pelo Dec.-Lei nº 472/99, decerto por se reconhecer e aceitar, no seguimento de alguma douta jurisprudência, a existência de inconstitucionalidade no texto daquela disposição legal.
7ª) E é indubitável que o referido prazo de 8 (oito) dias, existente em matéria de IVA, e não de outros impostos era manifesta e desproporcionadamente curto quando cotejado com o normal de 90 dias que ainda vigora entre nós (artº 102º do C.P.P.T.).
8ª) De referir que o que levou o legislador a pretender impor a vigência de um preceito tão restritivo como o do artº 86º, nºs. 1- e 2-, não foi a questão de o prazo dever ser mais ou menos curto.
9ª) O que substancialmente estava então em causa era, salvo erro, a tese do não reconhecimento e aceitação da possibilidade científica de serem reapreciadas a nível judicial as tomadas de decisão de natureza fiscal decorrentes de procedimentos de ordem técnica, alicerçados em operações de natureza aritmética, algébrica ou outras de índole matemática.
10ª) É claro que a situação alterou-se na sequência da publicação do C.P.T. e do reconhecimento e aceitação da impugnabilidade do acto de exigência do imposto, com base em errónea quantificação de rendimentos, lucros, e outros valores e factos tributários, a posição do legislador alterou-se nesta matéria [artº 120º, a) daquele diploma legal].
11ª) Não surpreende assim que o preceito do mencionado artº 86º do CIVA tenha acabado por ser integralmente banido daquele Código, no passado ano de 1999, como foi salientado.
12ª) Até porque, com o tempo, foi-se reconhecendo que o IVA não era um imposto à parte que devesse ser sujeito a regras muito distintas das dos outros.
13ª)Por outra parte, importa frisar que, face ao princípio da igualdade, não existe um direito à fixação indefinida da jurisprudência ou à não mudança da corrente jurisprudencial formada sem ou à margem das decisões do Tribunal Constitucional (veja-se a Constituição da República Portuguesa Anotada por Gomes Canotilho e Vital Moreira, em anotação ao preceito do artº 13º da nossa Lei Fundamental).
14ª) Impõe-se assim que o artº 86º, nºs 1- e 2- do CIVA, em análise, na redacção anterior à que lhe foi dada pelo Dec.-Lei nº 198/90, de 19/6, venha a ser considerado inconstitucional, por violação dos preceitos dos artºs 13º, 18º, nº
2, 20º, nº 1 e 268º, nº 4 da C.R.P., na medida em que, de forma anómala, desigual e desproporcionada limitava quer o âmbito material quer o prazo dentro do qual poderia ser impugnado ou objecto de reclamação o acto9 de fixação definitiva do imposto.
15ª) O douto acórdão do S.T.A., de que se recorreu, violou ou não aplicou devidamente o disposto nos preceitos dos mencionados artºs 86º, nºs 1- e 2- do CIVA, 89º do C.P.C.I., e 13º 18º, nº 2, 20º, nº 1 e 268º, nº 4 da C.R.P..
16ª) Face ao exposto, no seguimento do reconhecimento e decretação da inconstitucionalidade do mencionado artº 86º, nºs 1- e 2-ç do CIVA, deverá vir a ser revogado o douto Acórdão do S.T.A. recorrido, até porque não existe um direito à não modificação da jurisprudência, ou alterado em termos de reconhecer a existência de desconformidade substancial entre aquele preceito, que deve ser aproximado do artº 89º do C.P.C.I. e os mencionados artigos da nossa Lei Fundamental, com a inerente consequência de dar provimento ao recurso interposto para aquele Supremo Tribunal, como é de justiça.
A FAZENDA NACIONAL disse na sua alegação:
(a) - Quanto ao nº 1 do artigo 86º do CIVA, que como a recorrente afirma, foi integralmente banido do CIVA, não foi o mesmo aplicado no douto Acórdão recorrido, sendo ainda que, constitua, ao tempo da sua vigência, entendimento jurisprudencial unânime que a norma nele contida – fundamentos da impugnação judicial – era inconstitucional por ser incompatível com o disposto no artigo
268º, nº 4 da CRP.
(b) – Assim, com a invocação conjunta dos nºs 1 e 2 do artigo 86º do CIVA, a recorrente mais não pretende do que confundir o cerne dos dois preceitos, pretendendo que as razões que estiveram na base do reiterado entendimento da jurisprudência quanto ao nº 1 do artigo 86º do CIVA, se estendem ao nº 2 do mesmo preceito.
(c) – Mas não tem razão:
(d) – Com efeito, a unidade do sistema jurídico e as circunstâncias em que a lei foi elaborada bem como as condições específicas em que á aplicável, conduz ao cotejo com os preceitos processuais que contêm um prazo de oito dias para impugnação do acto de resolução definitiva da reclamação ordinária.
(e) – Este prazo de oito dias, tal como o prazo do nº 2 do artigo 86º do CIVA, colhem a razão de ser da sua especificidade da circunstância de o contribuinte, pelo decurso de um anterior prazo administrativo, já ter obtido conhecimento idóneo dos elementos do processo.
(f) – E, assim, o nº 2 do artigo 86º do CIVA em nada colide com os alegados preceitos constitucionais.
(g) – Aliás, o venerando Tribunal Constitucional , no douto Acórdão de 24 de Novembro de 1999, proferido no recurso nº 597/98 – 2ª Secção, no qual nos louvamos julgou no sentido da não inconstitucionalidade da norma do artigo 86º, nº 2 do CIVA. Termos em que não ocorre a arguida inconstitucionalidade, devendo ser mantido o douto Acórdão recorrido.
2. Cumpre decidir.
II. Fundamentos:
3. A norma sub iudicio:
3.1. O caso dos autos apresenta-se assim:
(a). A recorrente impugnou judicialmente a liquidação adicional do IVA (Imposto sobre o Valor Acrescentado) relativa ao ano de 1986, no montante de 2.880.845$00
(acrescido de 946.652$00 de juros compensatórios), que fora fixado definitivamente pela comissão distrital de revisão, com recurso a métodos presuntivos, na sequência de uma fiscalização tributária da respectiva escrita.
(b). O Juiz do 4º Juízo do Tribunal Tributário de 1ª Instância de Lisboa, por sentença de 22 de Setembro de 1999, absolveu a FAZENDA NACIONAL do pedido e manteve 'na ordem jurídica a liquidação impugnada'. Para concluir desta maneira, o Juiz argumentou que, como a recorrente foi notificada para pagar o imposto liquidado, em 15 de Maio de 1990, e apenas deduziu a impugnação em 21 de Agosto de 1990 – portanto, 98 dias depois da notificação, ou seja, muito depois de expirado o prazo de oito dias previsto, para esse efeito, no artigo 86º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado
(CIVA) – 'a liquidação tornou-se efectiva, formando caso julgado ou decidido', como já tinha sido julgado, entre outros, no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 14 de Outubro de 1992 (publicado no Suplemento do Diário da República, página 2.525).
(c). A recorrente interpôs recurso dessa sentença para o Supremo Tribunal Administrativo, dizendo, na alegação, entre o mais, que o artigo 86º do CIVA não respeitava à impugnação judicial, mas a recurso por preterição de formalidades legais, pois à impugnação devia aplicar-se o artigo 89º do Código de Processo das Contribuições e Impostos, que fixa em noventa dias o prazo para esse efeito. E acrescentou que 'o efeito do reconhecimento da inconstitucionalidade não atingiu apenas a vigência do n.º 1 do artigo [refere-se ao artigo 86º do CIVA], pois inquinou outrossim o preceituado no seu n.º 2'.
(d). O Supremo Tribunal Administrativo, pelo acórdão de 27 de Setembro de 2000, negou provimento ao recurso. Para assim concluir, o acórdão recorrido, recordou que ao caso era aplicável o artigo 86º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (na redacção anterior
à que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 198/90, de 19 de Junho). Referiu, depois, que tal normativo (recte, o seu n.º 1), no ponto em que restringia os fundamentos da impugnação judicial à 'preterição de formalidades legais', era incompatível com a Constituição, por isso que era pacífico o entendimento de que a impugnação podia basear-se em qualquer ilegalidade do acto tributário, e não apenas na 'preterição de formalidades legais'. Disse, a seguir, que o dito artigo 86º do CIVA (recte, o seu n.º 2) não ofende a Constituição, na parte em que reduz o 'prazo geral de noventa dias para impugnar, assinado no artigo 89º do Código de Processo das Contribuições e Impostos, aos oito dias estabelecidos no artigo 86º do CIVA, contados a partir da notificação da decisão que fixe definitivamente o imposto'. Concluiu, por último, que a impugnação judicial foi apresentada fora de prazo, uma vez que, dispondo a recorrente, para o efeito, de oito dias, 'contados a partir de 16 de Maio de 1990, data da notificação', estes
'estavam, há muito, transcorridos em 21 de Agosto do mesmo ano, data da apresentação da petição'.
3.2. É deste acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 27 de Setembro de
2000, que vem interposto o presente recurso.
Como se disse logo no início, a recorrente esclareceu na resposta ao convite que lhe foi feito para aperfeiçoar o requerimento de interposição do recurso que pretende se aprecie a constitucionalidade da norma constante do artigo 86º, nºs
1 (in fine) e 2, do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (CIVA), na redacção vigente em 1986 (ou seja, na redacção anterior ao Decreto-Lei n.º
198/90, de 19 de Junho, que é a do Decreto-Lei n.º 394-B/84, de 26 de Dezembro, que aprovou o dito Código), que rezava assim:
1. A fixação definitiva do imposto efectuada nos termos dos artigos 84º e 85º não é susceptível de reclamação nem de impugnação judicial nos termos do Código de Processo das Contribuições e Impostos, salvo se tiver havido preterição de formalidades legais, caso em que o contribuinte poderá recorrer para o Tribunal de 1ª Instância das Contribuições e Impostos.
2. O recurso não tem efeitos suspensivos e só poderá ser interposto dentro do prazo de oito dias a contar da data da notificação referida no artigo anterior.
Na alegação, como objecto do recurso, a recorrente indicou, no entanto, todo o citado n.º 1 do artigo 86º, e não apenas a parte final do mesmo (cf. as conclusões 1ª e 4ª). Ou seja: alargou esse objecto. Isso, porém, não é legalmente admissível, pois que a recorrente apenas podia restringir o objecto inicial do recurso. Nunca alargá-lo (cf. artigo 684º, n.º
3, do Código de Processo Civil).
Aliás, como decorre do que acaba de dizer-se, o Tribunal nem sequer pode conhecer da questão de constitucionalidade que tem por objecto a parte final do dito n.º 1. Apenas o pode fazer quanto ao n.º 2 do referido artigo 86º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado, na parte em que fixa em oito dias, contados da data da notificação do acto de fixação definitiva do imposto (IVA) efectuada nos termos dos artigos 84º e 85º do mesmo Código, o prazo para impugnar judicialmente a liquidação adicional desse imposto, mesmo que essa impugnação tenha outro fundamento que não o da preterição de formalidades legais. De facto, só nessa parte (e com essa interpretação) o preceito legal foi aplicado pelo acórdão recorrido. O n.º 1 do artigo 86º, no ponto em que restringia os fundamentos da impugnação judicial à 'preterição de formalidades legais', não foi aplicado nesse aresto. Efectivamente, não foi porque a impugnação se fundava em vícios diferentes da
'preterição de formalidades legais' que o acórdão recorrido a não apreciou. Isso apenas aconteceu, porque ela foi apresentada fora de prazo. E mais: o acórdão recorrido disse expressamente que, nessa parte (ou seja: na parte em que o n.º 1 do artigo 86º restringia os fundamentos da impugnação judicial à 'preterição de formalidades legais') o dito normativo era incompatível com a Constituição, por isso que era pacífico o entendimento de que a impugnação podia basear-se em qualquer ilegalidade do acto tributário, e não a apenas na 'preterição de formalidades legais'.
3.3. A inclusão pela recorrente da parte final do n.º 1 do artigo 86º no objecto do recurso resulta, ao cabo e ao resto, da circunstância de ela sustentar que, no n.º 2, o que se prevê é um recurso que se manteve 'restrito à preterição de formalidades legais', que 'passou a coexistir (até à respectiva supressão legal) com os outros meios de defesa do contribuinte, quais sejam a reclamação e a impugnação', que – disse – 'passaram a poder ser deduzidas com o âmbito e nos termos do disposto no artigo 89º, desde que não se limitassem a ter por fundamento a preterição de formalidades legais, situação em que caberia apenas recurso no referido prazo de oito dias' [cf. as alíneas e) e g) da dita resposta].
É o que decorre do teor da resposta da recorrente ao convite para aperfeiçoamento, que ela concluiu como segue: 'assim, ao decidir-se, no douto acórdão de que se recorreu, que em quaisquer circunstâncias (e mesmo que não se limitasse à preterição de formalidades legais) haveria que respeitar-se o mencionado prazo de oito dias, previsto no dito artigo 86º, n.º 2, do CIVA e a forma obrigatória de recurso (e não a de reclamação ou impugnação), aquele douto aresto fez interpretação e aplicação do mencionado artigo 86º, nºs 1, 'in fine', e 2, de molde a violar os princípios constitucionais contidos, nomeadamente, nos artigos 13º, n.º 1, 18º, n.º 2, 20º, n.º 1, 103º, n.º 3, e 268º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa' [cf. a alínea h) da mesma resposta].
Acontece, porém, que o acórdão recorrido não decidiu que, 'em quaisquer circunstâncias (e mesmo que não se limitasse à preterição de formalidades legais) haveria que respeitar-se [...] a forma obrigatória de recurso (e não a de reclamação ou impugnação)'. O que, nesse aresto, se decidiu – depois de nele se dizer que 'não colhe o argumento especioso de que a apontada disposição do artigo 86º do CIVA curava da tramitação de recurso inominado, sendo que o meio processual escolhido pela ora recorrente foi a impugnação' – foi que, para impugnar judicialmente a liquidação, e mesmo que essa impugnação 'não se limitasse à preterição de formalidades legais', 'haveria que respeitar-se o mencionado prazo de oito dias, previsto no dito artigo 86º, n.º 2, do CIVA'. O acórdão recorrido decidiu nesses termos, porque – tal como nele se sublinhou, citando ALFREDO JOSÉ DE SOUSA e JOSÉ DA SILVA PAIXÃO (Código de Processo das Contribuições e Impostos. Comentado e Anotado, 2ª edição) – 'a melhor doutrina concebe a impugnação judicial como recurso contencioso de anulação que tem por objecto, em princípio, o acto tributário e que visa, em primeira linha, a declaração da sua ilegalidade com base no vício expressamente alegado pelo impugnante'. E acrescentou: '[...] caso em que o contribuinte poderá recorrer para o tribunal tributário de 1ª instância, forma outra de dizer impugnar junto do tribunal tributário de 1ª instância' (itálico acrescentado).
Ora, não tendo o acórdão recorrido interpretado (e aplicado) o citado artigo
86º, n.º 1, com o sentido, que a recorrente tem por inconstitucional, de que,
'em quaisquer circunstâncias (e mesmo que não se limitasse à preterição de formalidades legais) haveria que respeitar-se [...] a forma obrigatória de recurso (e não a de reclamação ou impugnação)', o normativo em causa não pode, também nestoutra dimensão, constituir objecto do recurso.
3.4. Em conclusão: Resta, por isso, para ajuizar ratione constitutionis, a norma constante do dito artigo 86º, n.º 2, com o único sentido com que o mesmo foi interpretado e aplicado pelo acórdão sob recurso – sentido que é o de que o contribuinte, para impugnar judicialmente a liquidação adicional do imposto (IVA), mesmo que essa impugnação tenha fundamento diferente do da preterição de formalidades legais, dispõe do prazo de oito dias, contados da data da notificação do acto de fixação definitiva desse imposto efectuada nos termos dos artigos 84º e 85º do mesmo Código (ou seja: efectuada no âmbito de uma liquidação adicional do imposto, subsequente a uma fiscalização tributária a que foi submetida a escrita da ora recorrente).
Resta esta norma para ajuizar ratione constitutionis, porque, como é sabido, o Tribunal também não pode apreciar sub specie constitutionis a decisão do Supremo Tribunal Administrativo, que consistiu em submeter à disciplina do artigo 86º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado a impugnação da liquidação do IVA, que, com fundamento diverso do da preterição de formalidades legais, foi levada até si, em via de recurso: é que, o controlo de constitucionalidade, que a Constituição e a lei lhe cometem, é um controlo exclusivamente normativo, dele estando, por isso, excluídos actos de outra natureza, como são as operações de subsunção dos casos aos diferentes preceitos legais (no caso, ao dito artigo 86º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado, em vez de, como pretendia a recorrente, ao artigo 89º do Código de Processo das Contribuições e Impostos).
4. A questão de constitucionalidade: Embora a recorrente diga, na conclusão 15ª da alegação, que o acórdão recorrido viola o disposto nos artigos 13º, 18º, n.º 2, 20º, n.º 1, e 268º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, decorre do discurso da mesma alegação que ela imputa a violação de tais normativos constitucionais à norma aqui sub iudicio.
4.1. A recorrente argumenta (tudo indica que para fundar a afirmação de que existe violação do princípio da igualdade) que 'não existe um direito à fixação indefinida da jurisprudência ou à não mudança da corrente jurisprudencial sem ou
à margem das decisões do Tribunal Constitucional'.
Não se descobre, porém, qualquer pertinência ao argumento, pois não é pelo facto de não haver um direito à imodificabilidade da jurisprudência, que um tribunal, quando segue a jurisprudência anterior, adopta uma interpretação violadora do princípio da igualdade. Tal apenas sucederá, se essa interpretação implicar a adopção de um regime diferenciado para determinada situação idêntica a outra, sem que exista fundamento material para lhe dar tratamento distinto.
Poderia, no entanto, pretender-se que a violação do princípio da igualdade decorre do facto de o prazo de oito dias para impugnar a liquidação adicional do imposto – prazo fixado na norma sub iudicio (dito artigo 86º, n.º 2, do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado) – ser diferente e sensivelmente mais curto do que o prazo de noventa dias, fixado no artigo 89º do Código de Processo das Contribuições e Impostos para dedução da generalidade das impugnações.
Uma tal impostação do problema teria, naturalmente, subjacente a ideia de que, por imposição constitucional, teria sempre que haver um único prazo para a impugnação dos actos da Administração Fiscal. Ora, tal não sucede. De facto, o preceito constitucional, que consagra o direito ao recurso contencioso (artigo 268º, n.º 4, da Constituição), garante aos administrados (no caso, aos contribuintes) a possibilidade de impugnarem judicialmente os actos ilegais da Administração, que lesem os seus direitos ou interesses, mas, como vai ver-se adiante, não proíbe o legislador de fixar prazos para a interposição dos recursos.
Claro é que o legislador, na fixação de prazos diferenciados para a impugnação contenciosa dos actos administrativos ilegais, não pode proceder arbitrariamente: desde logo, porque a ideia de igualdade reclama se tratem identicamente as situações que forem essencialmente iguais. A igualdade não proíbe, porém, a fixação de regimes diferenciados; ela apenas proíbe o arbítrio legislativo, ou seja, e como já se disse, a adopção de soluções carecidas de fundamento racional ou material bastante.
Pois bem: no presente caso, a fixação pela norma sub iudicio de um prazo para a impugnação da liquidação adicional do imposto, que é diferente e relativamente mais curto do que o previsto no artigo 89º do Código de Processo das Contribuições e Impostos, não se apresenta como irrazoável, nem é arbitrária, pois que há razões bastantes para tal suceder. Na verdade, escreveu-se no acórdão n.º 646/99 (publicado no Diário da República, II série, de 15 de Novembro de 2000), em que o Tribunal (2ª Secção) apreciou a norma aqui sub iudicio sub specie constitutionis, tendo concluído pela sua não inconstitucionalidade: 'na hipótese normativa que abrange o caso o impugnante terá em princípio elementos suficientes para tomar rápida e fundamentadamente a decisão de impugnar a fixação do imposto. Com efeito, tendo a liquidação adicional resultado de um exame à contabilidade do impugnante, este disporá dos elementos necessários para, em confronto com os valores constantes das liquidações adicionais, infirmar a pretensão da administração fiscal'. E acrescentou-se ainda: Nessa medida, e à semelhança do que acontece noutros casos, a necessidade de definição das situações jurídicas, decorrente do valor segurança, conjugada com as particularidades deste tipo de casos, não permite concluir pela desrazoabilidade ou desproporcionalidade de um prazo curto que, não obstante, ainda permite a activação, de modo eficaz, do respectivo mecanismo processual de impugnação.
Regista-se, aliás, que também no Código de Processo das Contribuições e Impostos existiam normas que fixavam prazos de impugnação relativamente reduzidos: era o caso do artigo 84º, que fixava um prazo de oito dias para a impugnação da resolução definitiva da reclamação ordinária, e o do artigo 175º, que fixava um prazo de dez dias para a oposição à execução fiscal.
A norma sub iudicio não viola, pois, o princípio da igualdade.
4.2. A recorrente alega ainda que a norma sub iudicio viola o direito de acesso aos tribunais (artigo 20º, n.º 1, da Constituição) – recte, o direito ao recurso contencioso (artigo 268º, n.º 4, da Constituição) -, porque a fixação de um prazo de oito dias para impugnar a liquidação adicional do imposto limita, 'de forma anómala, desigual e desproporcionada [...] o prazo dentro do qual poderia ser impugnado ou objecto de reclamação o acto de fixação definitiva do imposto'; e que, assim, viola também o artigo 18º, n.º 2, da Constituição.
Pois bem: a existência de um prazo de caducidade – escreveu-se no acórdão n.º
70/2000 (publicado no Diário da República, II série, 11 de Dezembro de 2000) –
'não constitui restrição do direito de acesso aos tribunais [...], pois que não encurta ou estreita o conteúdo e alcance desse direito. A existência de um tal prazo apenas condiciona, regulamentando-o, o exercício do direito em causa, sem diminuir as faculdades que o integram'. Nesse aresto acrescentou-se: O prazo de caducidade mais não é, pois, do que um condicionamento ou uma condição do exercício daquele direito de acesso à justiça administrativa, para reconhecimento dos direitos constituídos com o deferimento tácito de um pedido de licenciamento de um loteamento [cf., identicamente: quanto ao prazo de caducidade das acções de investigação de paternidade, os acórdãos nºs 99/88,
413/89, 451/89 370/91, (publicados no Diário da República, II série, de 22 de Agosto de 1988, 15 de Setembro de 1989, 21 de Setembro de 1989 e 2 de Abril de
1992, respectivamente); e quanto ao prazo de caducidade das acções de declaração de nulidade do despedimento, o acórdão n.º 140/94 (publicado no Diário da República, II série, de 6 de Janeiro de 1995)].
Não constituindo o prazo de caducidade uma restrição do mencionado direito de acesso à justiça administrativa, para a impugnação contenciosa de actos administrativos lesivos de direitos ou interesses legalmente protegidos dos administrados, não tem, obviamente, que observar-se, quanto a ele, a exigência do artigo 18º, nº 2, da Constituição relativa à existência de credencial constitucional expressa a autorizar o legislador a prevê-lo.
Claro é, no entanto, que – tal como se observou no referido acórdão n.º 70/2000
–, para concluir pela legitimidade constitucional da norma que fixa um prazo de caducidade, 'não basta constatar que, numa perspectiva estrutural, esse prazo se não apresenta como uma restrição do direito, mas tão-só como uma sua regulamentação ou condicionamento. Como se frisou no citado acórdão n.º 99/88, necessário se torna ver as coisas de um ponto de vista material ou substantivo. Ora, deste último ponto de vista, o que então interessa apurar é se esse prazo se mostra necessário e proporcionado' De facto, como se acentuou no citado acórdão n.º 140/94, se o prazo de caducidade for inadequado ou desproporcionado, 'em termos de dificultar gravemente o exercício concreto do direito', estar-se-á 'perante uma restrição ao direito de acesso aos tribunais, e não em face de um simples condicionamento ao exercício desse direito'.
É que, como escreve J.C. VIEIRA DE ANDRADE, 'a distinção entre condicionamento e restrição é fundamentalmente prática, já que não é possível definir com exactidão, em abstracto, os contornos das duas figuras. Muitas vezes, é apenas um problema de grau ou de quantidade' (cf. Os Direitos Fundamentais na Constituição da República Portuguesa de 1976, Coimbra, 1987, página 228, nota
2).
Mas, como se recordou no dito acórdão n.º 70/2000, há que confiar na sabedoria do legislador, já que, no exercício da sua liberdade de conformação, normalmente, ele sabe encontrar as melhores soluções. Por isso, com fundamento em violação do princípio da proporcionalidade, o Tribunal só deve censurar as decisões legislativas manifestamente arbitrárias ou excessivas [cf., por último, o acórdão n.º 108/99 (publicado no Diário da República, II série, de 1 de Abril de 1999)].
Apreciada a esta luz, a norma aqui sub iudicio só seria constitucionalmente ilegítima, se a fixação em oito dias do prazo para a impugnação fosse, de todo, desnecessária ou irrazoável, por não existirem razões que tal justificasse. Ou, então, se esse prazo fosse de tal modo exíguo que inviabilizasse ou tornasse particularmente oneroso o exercício do direito.
Tal, porém, não acontece no caso.
Na verdade – e repetindo o que se disse no citado acórdão n.º 646/99 –, nada permite concluir 'pela desrazoabilidade ou desproporcionalidade' do prazo fixado pela norma sub iudicio, pois, não obstante ser um prazo curto, 'ainda permite a activação, de modo eficaz, do respectivo mecanismo processual de impugnação', sendo que a justificação para a curteza desse prazo se encontra na 'necessidade de definição das situações jurídicas, decorrente do valor segurança, conjugada com as particularidades deste tipo de casos'. Por isso, e repetindo, uma vez mais, o que se escreveu nesse aresto: a fixação pela norma sub iudicio do prazo de oito dias, para impugnar a liquidação adicional do imposto, não implica, assim, 'uma compressão desproporcionada do exercício do direito ao recurso'.
Dizendo de outro modo: a fixação de prazos para a impugnação contenciosa de actos administrativos, que os interessados considerem lesivos dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, tem a justificá-la os valores da certeza e da segurança e jurídicas - valores objectivos que se encontram intimamente conexionados com o direito à protecção jurídica, que o Estado de Direito deve assegurar. Há, na verdade, situações que não devem manter-se por muito tempo em estado de indefinição: o interesse público exige que elas se estabilizem rapidamente. Ora, uma das situações que reclama a sua rápida estabilização – e, assim, a fixação de um prazo curto para impugnação da liquidação, o qual deve, no entanto, permitir que tal impugnação possa ser deduzida em termos de assegurar a sua eficácia – é aquela em que, como no caso dos autos, está em causa saber quanto é que determinado contribuinte tem de pagar a mais de imposto sobre o valor acrescentado: é que, seria de todo irrazoável e contrário ao interesse público que isso permanecesse por muito tempo numa situação de indefinição, já que não condiria com a ideia de Estado de Direito, em que a certeza e a segurança jurídica assumem relevo constitucional.
A norma sub iudicio também não viola, assim, o direito de acesso aos tribunais – recte, o direito ao recurso contencioso.
4.4. Em conclusão: A norma sub iudicio – ou seja: a norma constante do artigo 86º, n.º 2, do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado, na redacção vigente em 1986, interpretado no sentido de que o contribuinte, para impugnar judicialmente a liquidação adicional do imposto (IVA), mesmo que essa impugnação tenha fundamento diferente do da preterição de formalidades legais, dispõe do prazo de oito dias, contados da data da notificação do acto de fixação definitiva desse imposto efectuada nos termos dos artigos 84º e 85º do mesmo Código (ou seja: efectuada no âmbito de uma liquidação adicional do imposto subsequente a uma fiscalização tributária a que foi submetida a escrita da ora recorrente) – não é, pois, inconstitucional. III. Decisão: Pelos fundamentos expostos, decide-se:
(a). negar provimento ao recurso; e, em consequência, confirmar o acórdão recorrido quanto ao julgamento da questão de constitucionalidade;
(b). condenar a recorrente nas custas, com quinze unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 28 de Março de 2001 Messias Bento José de Sousa e Brito (com a declaração que continua a manter a posição que defendeu na declaração de voto no acórdão 681/95, quanto à inconveniência de distinção entre condicionamento e restrição) Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Alberto Tavares da Costa Luís Nunes de Almeida