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Proc. nº 778/00
3ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizaro Beleza Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. M foi condenada, por acórdão do Tribunal Colectivo da Comarca de Aveiro, de 5 de Junho de 2000 (de fls. 1139 e segs.), na pena de 10 anos de prisão, pela prática, em concurso real, de vários crimes de burla e de burla qualificada, cometidos em Aveiro e Monção.
Inconformada, recorreu para o Tribunal da Relação de Coimbra, que, por acórdão de 8 de Novembro de 2000 (de fls. 1291 e segs.), confirmou a condenação. De novo inconformada, M veio interpor recurso para o Tribunal Constitucional
(requerimento de fls. 1343), ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, afirmando que
'1. O douto acórdão de fls., que negou provimento ao recurso interposto pela Recorrente, interpretou e aplicou o artigo 127º do CPP, no sentido de que ‘a restrição nele estabelecida, quanto à apreciação da prova, não abrange o reconhecimento promovido sem observância das formalidades estabelecidas pelo artigo 147º do Código de Processo Penal’.
2. Contudo, salvo o devido respeito, a recorrente destaca para fins do n.º 2, do artigo 75-A, da Lei 28/82, de 15 de Novembro, que desde logo no seu recurso interposto, suscitou a inconstitucionalidade material do citado artigo 127º do CPP, na referida interpretação e aplicação, promovidas pelo douto acórdão.
3. E isto, salvo sempre o devido respeito, por considerar que tal interpretação e aplicação caracterizam a inconstitucionalidade material do referido artigo
127º do CPP, por violação do disposto pelos artigos 2º, 16º, 17º, 32º, 202º,
203, todos da Constituição da República, do artigo 11º, 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do artigo 6º, 2, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, bem como do princípio da separação e interdependência dos poderes.
4. E o douto acórdão de fls., que negou provimento ao recurso interposto pela recorrente, interpretou e aplicou o artigo 147º do CPP, no sentido de que ‘o reconhecimento de um arguido tem valor como meio de prova, mesmo quando não observadas as formalidades estabelecidas no mesmo artigo 147º do Código de Processo Penal’.
5. Contudo, salvo o devido respeito, a recorrente destaca para fins do n.º 2, do artigo 75-A, da Lei 28/82, de 15 de Novembro, que desde logo no seu recurso interposto, suscitou a inconstitucionalidade material do citado artigo 147º do CPP, na referida interpretação e aplicação, promovidas pelo douto acórdão.
6. E isto, salvo sempre o devido respeito, por considerar que tal interpretação e aplicação caracterizam a inconstitucionalidade material do referido artigo
147º do CPP, por violação dos artigos 2º, 16º, 17º, 32º, 202º, 203º, todos da Constituição da República, do artigo 11º, 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do artigo 6º, 2, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, bem como do princípio da separação e interdependência dos poderes.
7. Pretende a Recorrente, que as referidas inconstitucionalidades dos artigos
127º e 147º, ambos do CPP, sejam apreciadas pelo Venerando Tribunal Constitucional.'
O recurso foi admitido, em decisão que não vincula este Tribunal (nº
3 do artigo 76º da Lei nº 28/82).
2. Notificada para o efeito, a recorrente apresentou as suas alegações (fls. 1348 e segs). Em síntese, sustenta que a sua condenação relativa aos factos praticados em Monção teve como único fundamento um seu reconhecimento, realizado sem as formalidades prescritas no artigo 147º do Código de Processo Penal, pelas ofendidas A e G; o que significa que o referido artigo 147º foi interpretado e aplicado no sentido de que 'o reconhecimento de um arguido tem valor de meio de prova, mesmo quando não observadas as formalidades estabelecidas no mesmo artigo
147º do CPP'.
Ora 'tal interpretação e aplicação, não encontrando qualquer correspondência verbal no texto do referido dispositivo, implicam em violação dos artigos 2º, 16º, 17º, 32º, 202º, e 203º, todos da Constituição da República, do artigo 11º,1 da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do artigo 6º, nº
2, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, eis que prejudicado o princípio da separação e interdependência dos poderes, inerente ao Estado de Direito Democrático (uma vez que os tribunais, ao administrar a justiça, estão sujeitos
à lei), com diminuição das garantias de defesa, nomeadamente daquela que exige que a culpabilidade penal seja legalmente provada, ou seja, provada em conformidade com a lei' (fls. 1349). E, quanto a este ponto, concluiu do seguinte modo:
'21º A norma do artigo 147º do CPP é clara em sua redacção, estabelecendo um formalismo que, salvo o devido respeito, é vinculativo para os tribunais, pois o
‘reconhecimento’ que não o observa não tem qualquer valor como meio de prova e, portanto, não pode servir de fundamento para uma condenação, não podendo do mesmo modo o tribunal excluir qualquer convicção.
22º O douto acórdão recorrido interpretou e aplicou o artigo 147º do CPP, do referido modo que caracteriza a sua inconstitucionalidade material, uma vez que teve por válido o ‘reconhecimento’ promovido pelas ofendidas e pelo marido de uma delas, sem observância das formalidades legais.
23º E assim, salvo o devido respeito, não encontrando a mínima correspondência verbal no referido texto do artigo 147º do CPP, a dispensa do formalismo nele estabelecido, para o ‘reconhecimento’ promovido pelas ofendidas e pelo marido de uma delas, que serviu de fundamento para a manutenção da condenação da Recorrente, as referidas interpretação e aplicação que dele fez o acórdão recorrido, são violadoras dos artigos 2º, 16º, 17º, 32º, 202º e 203º, todos da Constituição da República.
24º Isto porque, salvo o devido respeito, a ausência de correspondência verbal para afastar-se o formalismo estabelecido no artigo 147º do CPP, implica na quebra do princípio da separação e interdependência dos poderes públicos, inerente ao Estado de Direito Democrático (art. 2º da CRP).
25º O douto acórdão recorrido, salvo o devido respeito, ultrapassou a fronteira interpretativa, acabando por actuar como verdadeiro legislador, revogando a disciplina estabelecida pelo artigo 147º do CPP, o que não poderia ter feito, senão também em prejuízo do quanto estatuído nos artigos 202º e 203º, da CRP, que também determinam a sua sujeição à lei e à legalidade democrática.
26º E ainda com prejuízo das garantias de defesa do arguido asseguradas no artigo 32º da CRP, que simplesmente não tem qualquer defesa ou recurso, quando resta condenado com base no facto de ter sido ‘reconhecido’ em desacordo com o formalismo estabelecido na lei (aliás, neste aspecto o douto acórdão recorrido nem mesmo tentou explicar a contradição de o procedimento ter sido observado no processo da Comarca de Aveiro e não na Comarca de Monção, quando o CPP é um diploma que tem validade em todo o território nacional).
27º Em decorrência de não ter sido observado o formalismo prescrito no artigo
147º do CPP, a Recorrente restou prejudicada no exercício de seu direito de defesa consagrado no artigo 32º da CRP, pois restou impedida de demonstrar que, caso fosse colocada ao lado de outras pessoas, nos termos da lei, tanto as ofendidas quanto o marido de uma delas não teriam qualquer condição de afirmar, sem margem para dúvida, ter sido esta a autora dos factos imputados (isto ainda sem considerar que tanto o senhorio, como a vizinha da pessoa autora dos factos, terem afirmado não ser a Recorrente a pessoa que lá esteve).
28º E a inconstitucionalidade material da referida interpretação e aplicação do artigo 147º do CPP, também se verifica por violação dos artigos 11º, 1 da Declaração Universal dos Direitos do Homem e 6º, nº 2, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que exigem seja a culpabilidade penal legalmente provada, ou seja, provada em conformidade com a lei. '
Quanto à alegada inconstitucionalidade da norma contida no artigo
127º, por violação das mesmas regras constitucionais e de Direito Internacional
(artigos 2º, 16º, 17º, 32º, 202º e 203º da Constituição, bem como o nº 1 do artigo 11º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e o nº 2 do artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem), a recorrente afirma:
'32º O douto acórdão recorrido dedicou nada menos que duas páginas inteiras, apenas reportando-se ao artigo 127º do CPP, para ao depois justificar o facto de ter formado a sua convicção, com base em um ‘reconhecimento’ que não observou o disposto pelo artigo 147º do CPP.
33º E por ter mantido a condenação da Recorrente, com base nos referidos ‘reconhecimentos’, acabou por interpretar e aplicar o artigo 127º do CPP, no sentido de que ‘a restrição nele estabelecida, quanto à apreciação da prova, não abrange o reconhecimento promovido sem observância das formalidades estabelecidas pelo artigo 147º do CPP’, pois validou a condenação exactamente com base naqueles reconhecimentos’'.
3. Contra-alegou, apenas, o Ministério Público (fls. 1368 e segs).
Começando por se debruçar sobre a delimitação do objecto do recurso, o Ministério Público observa, quanto ao artigo 127º do Código de Processo Penal, que a recorrente não questiona 'a vigência, como regra em processo penal, do princípio da livre apreciação da prova'. A questão que coloca respeita, tão somente, à realização de um 'acto de reconhecimento' da arguida sem o cumprimento dos requisitos previstos no artigo 147º do Código de Processo Penal. Assim, o objecto 'normativo' do presente recurso seria 'a interpretação segundo a qual não é aplicável o regime de ‘proibição de prova constante do nº 4 daquele preceito legal, sempre que não tenha ocorrido a produção do ‘autónomo e material’ meio de prova regulado no referido artigo 147º, transparecendo a identificação da arguida pela ofendida – realizada na fase do inquérito – das simples ‘declarações pessoais’ por esta prestadas acerca da identidade daquela, no momento em que a autoridade policial procedeu à respectiva detenção'.
Para além disso, considera o Ministério Público ser 'duvidosa, no caso dos autos a existência de interesse processual na dirimição de tal questão, por a decisão que sobre ela viesse a ser proferida não poder ter repercussão no teor e no sentido da decisão recorrida'. E isto, em primeiro lugar, porque a condenação da arguida não se teria baseado 'tão-somente' nessa identificação, mas também em elementos outros probatórios autónomos. Em segundo lugar, porque, não tendo a arguida suscitado 'adequada e tempestivamente' a nulidade do meio probatório consistente na não aplicação do artigo 147º à sua identificação por declarações das ofendidas, terá tal questão de se considerar precludida, por força do disposto no artigo 120º do Código de Processo Penal.
Lembra também o Ministério Público que não cabe ao Tribunal Constitucional qualificar o meio probatório que efectivamente foi utilizado, por se tratar de uma questão situada 'exclusivamente no âmbito da interpretação e aplicação do direito infraconstitucional'; e que, segundo jurisprudência maioritária deste Tribunal, não constitui 'verdadeira questão de constitucionalidade de normas a que se traduz em apurar se as instâncias se conformaram ou não com o sentido possível daquele artigo 147º (ou se, porventura realizaram ‘extensão analógica’ ou interpretação ‘extensiva’ do mesmo (cfr. Ac.
674/99)'.
De qualquer forma, sustenta que 'não existe qualquer inconstitucionalidade na interpretação normativa, realizada pelas instâncias, e que se traduz em dissociar o verdadeiro e próprio acto de ‘reconhecimento de pessoas’, sujeito à disciplina do artigo 147º– da mera identificação do arguido pelo ofendido, emergente de declarações por este prestadas (ou do concurso ou cooperação que ele foi chamado a prestar à autoridade policial, no momento da detenção)'.
Conclui pois o Ministério Público no sentido de que falta interesse processual para apreciar a questão da constitucionalidade da norma do artigo
147º do Código de Processo Penal, não devendo conhecer-se do recurso interposto. Se assim não se entender, deverá o recurso ser julgado improcedente, já que 'não viola o princípio constitucional das garantias de defesa a interpretação normativa que dissocia o verdadeiro e próprio ‘acto de reconhecimento de pessoas’ da simples identificação do arguido pelo ofendido, decorrente de declarações por este prestadas – estando perfeitamente ressalvado o contraditório e a possibilidade de, nas fases subsequentes do processo, se poder questionar tal identificação e proceder, quando necessário, ao verdadeiro e próprio acto de reconhecimento, quando subsistam dúvidas razoáveis acerca da referida identificação'.
4. Notificada para se pronunciar sobre os obstáculos ao conhecimento do objecto do recurso, suscitadas pelo Ministério Público, a recorrente – para além de outras considerações, atinentes ao mérito do recurso, e que aqui não podem ser tomadas em consideração – veio responder. Quanto à alegada falta de interesse processual, sustenta que a afirmação de que a sua condenação teria assentado 'na valoração de outros meios probatórios, produzidos em audiência', se explica porque o Ministério Público 'entendeu, por equívoco, que a Recorrente estava a referir-se ao processo que teve a sua origem na Comarca de Aveiro', o que não seria correcto, já que, quanto ao processo originário da comarca de Monção, a condenação da recorrente teria tido exclusivo fundamento no 'reconhecimento extrajudicial' sem observância do artigo 147º do Código de Processo Penal, tendo ainda o Tribunal da Relação de Coimbra procurado valer-se de outro 'reconhecimento extrajudicial', perante o 'marido de uma das ofendidas, igualmente sem observância do artigo 147º do CPP (...)'. Relativamente à falta de arguição tempestiva da nulidade processual em causa, a recorrente entende, baseando-se no nº 4 do artigo 147º do Código de Processo Penal, que é desnecessária essa arguição, porquanto decorre da lei a 'completa ineficácia jurídica' – e não nulidade – como meio de prova do referido reconhecimento.
Acresce, na perspectiva da recorrente, que mesmo 'que tivessem sido produzidas outras provas em audiência, que pudessem justificar a condenação da Recorrente', tais 'elementos de prova (se existentes) deveriam no mínimo ser reapreciados à luz da ineficácia do aludido reconhecimento'.
Relativamente à norma contida no artigo 127º, a recorrente reafirma que o recurso 'merece ser conhecido e provido'.
5. Cabe, então, começar por analisar as questões colocadas quanto à delimitação do objecto do presente recurso e à sua admissibilidade.
Sustenta o Ministério Público, em primeiro lugar, que deve ser excluída do seu âmbito a norma constante do artigo 127º do Código de Processo Penal. Em seu entender, a recorrente não impugnou a constitucionalidade do princípio da livre apreciação da prova, nela enunciado, mas a sua aplicabilidade ao caso, dada a interpretação que reputa correcta do artigo 147º do Código de Processo Penal. A verdade, todavia, é que é a recorrente questiona efectivamente a constitucionalidade de uma determinada interpretação da norma que o define – a de que o princípio da livre apreciação consente a valoração, em julgamento, de um meio de prova proibido por lei, como é o caso de um reconhecimento efectuado com violação dos requisitos definidos pelo artigo 147º do Código de Processo Penal.
E é à apreciação desta norma que se reduz o objecto deste recurso, já que a recorrente não suscita nenhuma questão de constitucionalidade que se possa reconduzir a uma norma extraída do referido artigo 147º. O que a recorrente afirma, em rigor, é que este preceito foi violado, na medida em que foi valorado um reconhecimento realizado sem observância dos requisitos legais definidos para a sua admissibilidade como meio de prova.
6. Em segundo lugar, cumpre apreciar a questão da falta de interesse processual, igualmente suscitada pelo Ministério Público. De acordo com a jurisprudência constante deste Tribunal, só pode conhecer-se do objecto do recurso de constitucionalidade normativa quando a decisão que nele vier a ser proferida puder projectar-se no sentido da decisão recorrida, atento o carácter instrumental daquele recurso (cfr. por exemplo, o acórdão nº 463/94, publicado no Diário da República, II Série, de 22 de Novembro de 1994).
Para a recorrente, 'o douto acórdão recorrido acabou por inaugurar a não prevista figura do ‘reconhecimento para fins de identificação e detenção’, ou seja, nada mais fez do que interpretar e aplicar o artigo 147º do CPP, no sentido de que ‘o reconhecimento de um arguido tem valor como meio de prova, mesmo quando não observadas as formalidades estabelecidas nos mesmo artigo 147º do CPP’, pois foi exactamente com base nesse ‘reconhecimento’ que manteve a condenação da Recorrente'.
Para o Ministério Público, 'o objecto ‘normativo’ do presente recurso' seria 'a interpretação segundo a qual não é aplicável o regime de
‘proibição de prova’ constante do nº 4 daquele preceito legal, sempre que não tenha ocorrido a produção do ‘autónomo e material’ meio de prova regulado no referido artigo 147º, transparecendo a identificação da arguida pela ofendida – das simples ‘declarações pessoais’ por esta prestadas acerca da identidade daquela, no momento em que a autoridade policial procedeu à respectiva detenção'.
Ora o acórdão recorrido, por um lado, começou por afirmar que o
'reconhecimento' em causa não se efectuou 'no âmbito das diligências de prova em que se encontra aquele normativo, mas apenas nos termos e para os efeitos consignados no mandado de detenção e condução da arguida (...)', ou seja, para
'identificação da suspeita'. Assim, 'ao ‘reconhecimento’ em causa não era aplicável o regime previsto no referido artº 147º, do C. Pr.Penal, por manifestamente não se enquadrar no âmbito deste, que é o da 'prova por reconhecimento'(...)'. Por outro, no que toca ao relevo dado pelo acórdão recorrido ao 'reconhecimento' em causa, o Tribunal da Relação de Coimbra afirmou que não era legítima a conclusão da recorrente de que teria sido condenada 'pela razão única de que teria sido ‘reconhecida’ pelas ofendidas G e A', já que a condenação se encontraria também fundamentada em outros depoimentos. E concluiu do seguinte modo a sua apreciação deste ponto: 'E aliás, como já resulta do exposto, nem pode dizer-se, como refere a recorrente, que a sua condenação teve apoio tão somente nesse ‘reconhecimento’ promovido pelas ofendidas, sendo certo que, como claramente sobressai da fundamentação da decisão da matéria de facto, no que respeita a estas ofendidas, o Tribunal se convenceu pela credibilidade dos respectivos depoimentos no seu todo'. Não cabe ao Tribunal Constitucional, apesar do que sustenta a recorrente, pronunciar-se sobre o modo como a prova foi produzida ou apreciada pela decisão da 1ª Instância, ou a forma como veio a ser analisada pelo Tribunal de recurso. Do mesmo modo, não lhe compete apreciar a coerência interna das decisões, ou a consistência destas relativamente à prova produzida. Cumpre-lhe, apenas, averiguar se a norma impugnada foi efectivamente aplicada – e com que interpretação –, e apurar se um eventual julgamento de inconstitucionalidade de tal norma viria a produzir efeitos concretos, mediante a possibilidade da sua repercussão no sentido da decisão recorrida. Da leitura do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra resulta que o artigo
147º foi interpretado no sentido de que o seu âmbito de aplicação não abrange o
'reconhecimento' de um arguido realizado com objectivos exclusivos da sua
'identificação e consequente detenção', e de que o teor do mesmo artigo não exclui que tal 'reconhecimento' venha a ser ponderado como um dos fundamentos – ao lado de outros – da condenação do arguido, no âmbito da livre apreciação da prova que ao tribunal incumbe fazer. Quanto ao relevo atribuído na decisão recorrida ao 'reconhecimento' efectuado, verifica-se, por um lado, que não é exacto que, na óptica de tal decisão, a arguida tenha sido condenada, quanto aos factos praticados em Monção, exclusivamente com base naquele reconhecimento, como pretende a recorrente. Mas, por outro, também se não pode acolher a afirmação do Ministério Público no sentido de que 'concorrem elementos probatórios que suportam inteiramente, na
óptica da Relação, a decisão condenatória proferida – os quais se revelam perfeitamente autónomos relativamente à questão suscitada face ao artigo 147º do Código de Processo Penal'.
É exacto que há outros elementos probatórios também invocados como fundamento da condenação; mas não é possível, a partir do texto da decisão recorrida, afirmar com suficiente segurança que tais elementos, por si só – ou seja, com total autonomia relativamente ao 'reconhecimento' – seriam suficientes para conduzir à mesma decisão. Finalmente, também não colhe a alegada preclusão da apreciação da questão do
'reconhecimento', nos termos do artigo 120º do Código Processo Penal, por a arguida não ter suscitado 'adequada e tempestivamente' a nulidade do meio probatório consistente na não observância do artigo 147º, quando da identificação por declaração da ofendida. É que, por força do disposto no nº 3 do artigo 118º do mesmo Código, as disposições do Título V do referido diploma legal, respeitantes às 'nulidades', 'não prejudicam as normas deste Código relativas a proibições de prova'. Ora, o artigo 147º estabelece uma proibição de prova, ao determinar que 'o reconhecimento que não obedecer ao disposto neste artigo não tem valor como meio de prova'. Não sendo possível excluir que um eventual julgamento de inconstitucionalidade da norma impugnada se possa projectar no sentido da decisão recorrida, desatende-se a alegação de falta de interesse processual.
7. A última das questões suscitadas pelo Ministério Público relativamente ao conhecimento do recurso é a de que, segundo jurisprudência maioritária deste Tribunal, não constitui 'verdadeira questão de constitucionalidade de normas a que se traduz em apurar se as instâncias se conformaram ou não com o sentido possível daquele artigo 147º (ou se, porventura realizaram ‘extensão analógica’ ou interpretação ‘extensiva’ do mesmo (cfr. Ac. 674/99)'. Importa ter presente que a recorrente considera ter havido uma interpretação e aplicação do artigo 147º que não encontraria 'a mínima correspondência verbal no referido texto do artigo 147º do CPP'. Desta 'ausência de correspondência verbal' decorreria: uma 'quebra do princípio da separação e interdependência dos poderes públicos, inerente ao Estado de Direito Democrático (art. 2º da Constituição)'; uma actuação 'como verdadeiro legislador, revogando a disciplina estabelecida pelo artigo 147º do CPP', com violação dos artigos 202º e 203º da CRP, 'que também determinam a sua sujeição à legalidade democrática'; um
'prejuízo das garantias de defesa do arguido asseguradas no artigo 32º da CRP, que simplesmente não tem qualquer defesa ou recurso, quando resta condenado com base no facto de ter sido ‘reconhecido em desacordo com o formalismo estabelecido na lei (...)'; um prejuízo 'no exercício de seu direito de defesa consagrado no artigo 32º da CRP, pois restou impedida de demonstrar que, caso fosse colocada ao lado de outras pessoas, nos termos da lei, tanto as ofendidas quanto o marido de uma delas não teriam condições de afirmar, mês margem para dúvida, ter sido esta a autora dos factos imputados (...)'; e 'uma inconstitucionalidade material da referida interpretação e aplicação do artigo
147º do CPP', 'por violação dos artigos 11º, 1 da Declaração Universal dos Direitos do Homem e 6º, nº 2, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que exigem seja a culpabilidade penal legalmente provada, ou seja, provada em conformidade com a lei'. A verdade, todavia, é que esta questão não releva, tendo em conta o âmbito do presente recurso.
8. Deste modo, circunscreve-se o objecto do presente recurso à apreciação da constitucionalidade da interpretação normativa extraída do artigo 127º do Código de Processo Penal, segundo a qual o princípio da livre apreciação da prova consente a valoração, em julgamento, de um meio probatório por lei, como é o caso de um reconhecimento efectuado com violação dos requisitos definidos pelo artigo 147º do Código de Processo Penal.
É o seguinte o teor do artigo 127º: Artigo 127º
(Livre apreciação da prova) Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente. A formulação de um juízo de constitucionalidade sobre esta norma exige que se transcenda a perspectiva formal da inobservância de requisitos legais definidos para a prova por reconhecimento, para se procurar descobrir a finalidade a que se destinam, substancialmente, tais formalidades. Ora, se, em termos gerais, 'a salvaguarda da rectidão das decisões judiciais há-de encontrar-se no respeito por princípios jurídicos fundamentais de prova'
(CAVALEIRO DE FERREIRA, Curso de Processo Penal, II, reimp., Lisboa, 1981), a observância de regras básicas que garantam a fidedignidade do acto de reconhecimento é pressuposto da atribuição de valor como meio de prova a tal reconhecimento. 'A validade do acto de reconhecimento é directamente proporcional à observância das formalidades: o acto vale assim tanto menos quanto mais ‘seja hetero-dirigido’' (FRANCESCO M. PAOLA, Ricognizioni, in
'Digesto delle Discipline Penalistiche', XII, Torino, 1997, pág. 222). Referindo-se ao artigo 243º do Código de Processo Penal anterior, o acórdão nº
408/89 (que julgou inconstitucional a norma que permitia 'a realização de actos de reconhecimento do arguido sem a presença do juiz', publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 13º vol., tomo II, págs. 1147 e segs.) pronunciou-se nos seguintes termos sobre o acto de reconhecimento:
'A importância do acto de reconhecimento decorre logo e patentemente da frase inicial deste preceito: ‘se houver dúvida sobre a pessoa do culpado[...]’. Do que se trata é pois de reconhecer no arguido o responsável pelo crime que lhe é imputado. O ‘reconhecimento do culpado’ é , por isso, de importância decisiva e o resultado do reconhecimento pode, portanto, ser fatal para o arguido.
É por isso que a lei rodeia tal acto de certas cautelas, que a doutrina sublinha e sistematiza num conjunto de regras práticas a observar como condições de genuinidade e seriedade do acto. Entre essas conta-se a regra de que a pessoa a ser sujeita a reconhecimento deve ser apresentada no meio de outras e a regra de que essas pessoas devem ser o mais possível semelhantes à pessoa a reconhecer
(...). Compreendem-se estas cautelas. Elas visam minorar os perigos ínsitos em todo o reconhecimento da identidade. (...) E, uma vez cometido o erro de reconhecimento, difícil será não o repetir na audiência de julgamento, já que ele se converteu numa realidade psicológica para quem procedeu ao reconhecimento. (...) Embora submetido ao princípio da livre apreciação da prova, o auto de reconhecimento da identidade do arguido tende a merecer, na prática judiciária, um valor probatório reforçado funcionando quase como uma presunção de culpabilidade do suspeito, pelo menos na fase indiciária'.
Em suma, dada a relevância que na prática assume para a formação da convicção do tribunal, e os perigos que a sua utilização acarreta, um reconhecimento tem necessariamente que obedecer, para que possa valer como meio de prova em sede de julgamento, a um mínimo de regras que assegurem a autenticidade e a fiabilidade do acto.
Dir-se-á que nem todas as regras definidas como condição de admissibilidade da prova por reconhecimento assumem a mesma relevância. A verdade, todavia, é que se não torna necessário proceder a nenhuma distinção, porque a norma aplicada no caso presente as considerou, a todas, desnecessárias.
Deste modo, é claramente lesivo do direito de defesa do arguido, consagrado no nº 1 do artigo 32º da Constituição, interpretar o artigo 127º do Código de Processo Penal no sentido de que o princípio da livre apreciação da prova permite valorar, em julgamento, um acto de reconhecimento realizado sem a observância de nenhuma das regras previstas no artigo 147º do mesmo diploma.
Nestes termos, decide-se: a. Não conhecer do recurso, no que toca ao artigo 147º do Código de Processo Penal; b. Julgar inconstitucional, por violação das garantias de defesa do arguido, consagradas no nº 1 do artigo 32º da Constituição, a norma constante do artigo 127º do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de admitir que o princípio da livre apreciação da prova permite a valoração, em julgamento, de um reconhecimento do arguido realizado sem a observância de nenhuma das regras definidas pelo artigo 147º do Código de Processo Penal; c. Determinar a reforma do acórdão recorrido, em conformidade com o decidido quanto à questão de constitucionalidade.
Lisboa, 28 de Março de 2001- Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Alberto Tavares da Costa Messias Bento José de Sousa e Brito Luís Nunes de Almeida