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Proc. n.º 37/04
3ª Secção Relator: Cons. Gil Galvão
Acordam, em Conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. Por decisão do Centro Distrital de Solidariedade e Segurança Social de Santarém (ora recorrido), de 20 de Junho de 2003, foi indeferido o pedido de apoio judiciário formulado pela Massa Falida da Firma A. (ora recorrente), com fundamento em que “está legalmente excluída a possibilidade de concessão de protecção jurídica a entidades sem personalidade jurídica a que a lei atribui personalidade judiciária, como é o caso dos patrimónios autónomos”.
2. Inconformada com esta decisão a requerente do apoio judiciário recorreu dela para o Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, tendo alegado o seguinte:
“[...] Fundamentação:
1. A Decisão que vai impugnada alegadamente radica o seu fundamento numa extrapolação da anotação ao n.º 4 do art.º 7.º da Lei 30/E/00 de 20.12., in
“Apoio Judiciário”, Salvador da Costa, Almedina, 3.ª Ed. 2001, p. 36-38 e art.º
6.º do C.P.C. que aqui se dá por integrada. Ora,
3.[sic] A República Portuguesa é um Estado de Direito Democrático. – artigo 2.º da CRP.
4. São tarefas fundamentais do Estado, além do mais, garantir os direitos e liberdades fundamentais e o respeito pelos princípios do Estado de Direito Democrático - artigo 9.º, b) da C.R.P . perante a lei.
5. - 1.'Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.
2.- Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica ou condição social.'- art.º 13.°da CRP.
6. 1. 'Os direitos fundamentais consagrados na Constituição não excluem quaisquer outros constantes das leis e das regras aplicáveis de direito internacional.
2. Os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados e integrados da harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem.' - art.º 16.º da CRP.
7. 'O regime dos direitos, liberdades e garantias aplica-se aos enunciados no título II e aos direitos fundamentais de natureza análoga.'- art.° 17.º CRP
8. - 'Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas.
- A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.' - art.º 18.º da CPR.
- As leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais.' - art.º 18.º CPR.
9. – “Os órgãos de soberania não podem, conjunta ou separadamente, suspender o exercício dos direitos, liberdades e garantias, salvo em caso de estado de sítio ou de estado de emergência declarados na forma prevista na Constituição.' - art.º 19.º,nº 1 da CPR.
10. – “A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.
- Todos têm direito, nos termos da lei, à informação e consulta jurídicas, ao patrocínio judiciário e a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade.' - art. 20.º da CRP.
11. - Assim, entende o liquidatário que não está legalmente excluído o apoio judiciário peticionado para a massa falida da firma A., actualmente sem qualquer activo e que,
12. - A decisão de indeferir o pedido de apoio judiciário, fere os referidos normativos Constitucionais, consubstanciando um esboço de injustiça, pelo que se requer a respectiva reparação, reconsiderando os fundamentos e deferindo conforme peticionado (cfr. neste sentido: Ac. 89/03 do T.C., P.º 263/00, in DR. IIª Série n.º 73 de 27.03.03 p. 4821-4823 e Douta Decisão proferida no processo
4.311/03 pelo ISSS-Aveiro de que se junta cópia, que aqui se dá por integrada). TERMOS EM QUE, Nos mais de Direito e sempre com o Mui Douto Suprimento de V.Ex.ª que se invoca, conclui: a. Pela não exclusão do apoio judiciário requerido em sede dos normativos invocados; b. Pela ilegalidade e inconstitucionalidade da decisão de indeferir o pedido, por violação das normas acima enunciadas; c. Pela reapreciação dos pressupostos enunciados e pela concessão efectiva do apoio judiciário nas modalidades requeridas; d. No mais conforme for de Direito”.
3. O Tribunal da Comarca de Aveiro, por decisão de 17 de Novembro de 2003, julgou improcedente o recurso. Para concluir dessa forma, escudou-se na seguinte fundamentação:
“[...] 2° - Conforme resulta do artigo 134° n.º 4 a) do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência uma massa falida pode estar em juízo, activa ou passivamente. Então, salvo melhor juízo, o artigo 7° n.º 4 da Lei 30-E/2000 não pode deixar de ser interpretado de forma extensiva de modo a abranger a figura da massa falida. Pois, se no artigo 1º da Lei 30-E/2000 se afirma que o instituto do apoio judiciário se destina a permitir o acesso ao direito e aos tribunais, a ele tem que poder aceder uma massa falida, sob pena de estas ficarem colocadas num patamar de injustificada inferioridade em relação a todos os outros, nomeadamente às sociedades, originando-se uma infundada desigualdade de armas. Assim, contrariamente ao entendido pelo Instituto de Solidariedade e Segurança Social, a requerente beneficia da possibilidade de lhe ser concedido apoio judiciário.
3° Mas, para que o pedido de apoio judiciário possa ser deferido, nos termos da parte final do n.º 4 do artigo 7° da Lei 30-E/2000, tem a requerente que provar que se encontra na situação prevista no n.º 1 dessa mesma norma; isto é que não tem meios económicos bastantes para suportar as despesas da lide ou os honorários com mandatário ou ambos os encargos. Ora, nesta parte, verifica-se que a requerente limitou-se a alegar e juntar, como prova da sua insuficiência económica, cópia da sentença que declarou a falência. Nada alegou, nem provou, quanto à sua real situação económica, quanto
à sua capacidade ou incapacidade efectiva de suportar as despesas em questão no presente pedido de apoio judiciário. A situação de falência pressupõe que haja uma impossibilidade de cumprimento das obrigações do falido, artigo 3° do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência. Mas, o activo disponível (que segundo aquele artigo 3° tem que ser insuficiente para satisfazer o passivo exigível) não corresponde necessariamente a todo o património do falido; não é activo disponível, por exemplo, o imóvel em que se situa a sede ou estabelecimento da sociedade e que lhe pertença. Mas esse imóvel já integra o seu património. Se, como já se viu, a insuficiência de activo disponível que origina a falência não é sinónimo de insuficiência de património, então para que se possa considerar que existe uma situação de falta de meios económicos, necessária para a concessão do apoio judiciário, é preciso conhecer todo o activo e passivo concreto da requerente, para (eventualmente) se poder chegar à conclusão de que ocorre esta última situação.
À luz do exposto tem que se concluir que uma sociedade falida não está necessariamente na situação de insuficiência de meios económicos para suportar as despesas de uma lide e os respectivos honorários com mandatário. Por isso, para que se considere verificados os pressupostos do artigo 7° da Lei 3 O-E/2000 não basta (só) saber que o requerente foi declarado falido. Nessa medida, a situação de falência da requerente é per si insuficiente para que, como que automaticamente, lhe deva ser concedido apoio judiciário. Não havendo a alegação, pela requerente, da situação económica concreta (e respectiva prova) em que se encontra, não se pode afirmar que esta está na situação de carência de meios económicos que é pressuposto para a concessão do apoio judiciário; ou seja a requerente não alegou nem provou o que lhe impunha a parte final do n.º 4 do artigo 7° da Lei 30-E/2000. Então, é, necessariamente, improcedente o seu pedido de apoio judiciário, em ambas as modalidades.
4° No entanto, no que se refere ao pedido de nomeação de patrono verifica-se ainda que se indica para tais funções o próprio Liquidatário, que (também) é advogado. Nos termos do artigo 134° n.º 4 a) do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência o Liquidatário representa a massa falida em juízo. No caso dos autos, o Dr. B. Liquidatário indica para patrono o advogado Dr. B.. Se o Liquidatário Dr. B. quer que a massa falida actue neste processo através do advogado Dr. B., então basta-lhe assim agir o advogado e Liquidatário Dr. B., dado o disposto no citado artigo 134° n.º 4 a); neste caso não é necessário o recurso ao instrumento jurídico que é a nomeação de patrono para dar tal passo ou se atingir esse fim. Na verdade, a nomeação de patrono é uma forma de se conceder o acesso ao direito e aos tribunais, que constitui o objectivo do apoio judiciário. Ora, esse acesso já existe quando o indigitado patrono é o advogado que é também o Liquidatário. Quando este também é advogado não necessita de vestir as vestes de patrono para ele próprio actuar no processo, nesta última qualidade, em nome da falida. Para além de desnecessária a nomeação do Liquidatário como patrono, essa solução
é não só eticamente censurável, como também tem o efeito perverso de originar uma dupla remuneração pela mesma actividade, pois se o Liquidatário, por ser advogado, actuar como tal num processo essa sua actuação terá que ser considerada na remuneração a fixar no processo de falência, pelo que não deve nem pode ser outra vez remunerada por via da figura do patrono. Quando o Liquidatário é advogado pode, naturalmente, ou celebrar mandato ou pedir a nomeação de patrono de um (outro) advogado para actuar em juízo em nome da massa falida; o que não pode é pedir a sua própria nomeação por tal ser, para além do mais, absolutamente desnecessário. Se o Liquidatário Dr. B. entende que, para a defesa dos interesses da massa falida, é o advogado Dr. B. quem melhor está colocado para actuar neste processo basta-lhe só passar a manifestar por actos essa sua vontade. Nenhuma barreira existe para fazê-lo, não sendo preciso recorrer á figura do patrono. Então, independentemente dos outros motivos atrás expostos e que se referem a todo o pedido de apoio judiciário, o pedido na modalidade de nomeação de patrono sempre teria que ser julgado improcedente (também) pelo que agora se deixou dito. Deste modo, apesar de por diferente fundamentação, entendo que se deve manter a decisão de indeferimento do pedido de apoio judiciário.
5° Nestes termos, julgo improcedente o recurso interposto pela requerente Massa Falida de A., pelo que mantenho a decisão proferida pelo Instituto de Solidariedade e Segurança Social. Custa pela requerente, com 3 UC de taxa de justiça. Notifique a requerente. Transitado em julgado, remeta cópia da decisão ao Instituto de Solidariedade e Segurança Social de Santarém. Remeta certidão à Ordem dos Advogados das folhas 2 a 6 e desta decisão, para os fins tidos por convenientes, face ao facto de o Liquidatário Dr. B., que é advogado, ter indicado em nome da massa falida para patrono desta o advogado Dr. B..
4. Desta decisão foi interposto o presente recurso de constitucionalidade, através de um requerimento que tem o seguinte teor:
“O recurso é interposto ao abrigo da alíneas a), b), g) e i) do n.º 1 e 2 do artigo 70 da lei 28/82 de 15.11, na redacção dada pela Lei n.º 85/89 de 7 de Setembro (cfr. art.º 29 da lei 30- E/2000 de 20.12). Pretende-se ver apreciada a inconstitucionalidade das normas e dos entendimentos nelas ancorados e delas extraídos, de onde resultou
- ter sido negado apoio judiciário à recorrente;
- terem sido violadas as normas constantes dos artigos, 6.º n.º 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, artigos 1.º, 2.º, 3.º n.º 3, 9º b), 12.º,
13.º,16.º,17.º e 18.º,20.º,62.º e 205.º n.º 1 da Constituição; Esta decisão e respectivo entendimento subjacente violam o disposto nos artigos
265.º e 266.º do C. P. Civil bem como os artigos acabados de citar relativamente
à Constituição da República Portuguesa. A questão da inconstitucionalidade foi suscitada nos Autos a folhas na minuta do recurso para o T.J. de Aveiro”.
5. Na sequência, foi proferida pelo Relator do processo neste Tribunal, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decisão sumária no sentido do não conhecimento do objecto do recurso. É o seguinte, na parte decisória, o seu teor:
“Admitido o recurso no Tribunal da Comarca de Aveiro, cumpre, antes de mais, decidir se pode conhecer-se do seu objecto, uma vez que a decisão que o admitiu não vincula o Tribunal Constitucional (cfr. art. 76º, n.º 3 da LTC). O recorrente indica as alíneas a), b), g) e i), do n.º 1, do artigo 70º, da Lei do Tribunal Constitucional, como fundamento do recurso. É, porém, evidente, como vai sumariamente ver-se, que não se verificam os pressupostos de admissibilidade do recurso para o Tribunal Constitucional exigidos por qualquer daquelas alíneas.
5.1. O recurso previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da LTC. O recurso previsto na alínea a), do n.º 1, do artigo 70º, da LTC, apenas cabe das decisões dos tribunais que “recusem a aplicação de qualquer norma, com fundamento na sua inconstitucionalidade”. Ora, como resulta claro da decisão recorrida, que supra já transcrevemos integralmente, a mesma não se recusou a aplicar qualquer norma de direito ordinário com fundamento na sua inconstitucionalidade. Não pode, por isso, com fundamento nesta alínea a), conhecer-se do objecto do recurso.
5.2. O recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC. Mas também não estão preenchidos os pressupostos de admissibilidade do recurso previsto na al. b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC. Como o Tribunal Constitucional tem reiteradamente afirmado, o recurso previsto na al. b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional pressupõe, nomeadamente, que o recorrente tenha suscitado, durante o processo, a inconstitucionalidade de determinada norma jurídica - ou de uma sua dimensão normativa - e que, não obstante, a decisão recorrida a tenha aplicado, como ratio decidendi, no julgamento do caso.
Importa, pois, começar por averiguar se o recorrente suscitou, durante o processo e de modo processualmente adequado, uma questão da constitucionalidade normativa, em termos de lhe permitir o recurso para o Tribunal Constitucional que pretende interpor. Ora, é manifesto que não o fez. Se atentarmos no teor das alegações de recurso para o Tribunal da Comarca de Aveiro, verificamos que não foi aí suscitada qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, optando o recorrente por - depois de transcrever vários preceitos da Constituição - imputar à própria decisão de recusar o pedido de apoio judiciário o vício de inconstitucionalidade. Para o demonstrar basta recordar as passagens da alegação apresentada no Tribunal da Comarca de Aveiro, para que o próprio recorrente remete no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade:
“12. – (...)A decisão de indeferir o pedido de apoio judiciário, fere os referidos normativos Constitucionais, consubstanciando um esboço de injustiça, pelo que se requer a respectiva reparação, reconsiderando os fundamentos e deferindo conforme peticionado (cfr. neste sentido: Ac. 89/03 do T.C., P.º
263/00, in DR. IIª Série n.º 73 de 27.03.03 p. 4821-4823 e Douta Decisão proferida no processo 4.311/03 pelo ISSS-Aveiro de que se junta cópia, que aqui se dá por integrada). TERMOS EM QUE, Nos mais de Direito e sempre com o Mui Douto Suprimento de V.Ex.ª que se invoca, conclui: a. Pela não exclusão do apoio judiciário requerido em sede dos normativos invocados; b. Pela ilegalidade e inconstitucionalidade da decisão de indeferir o pedido, por violação das normas acima enunciadas; c. Pela reapreciação dos pressupostos enunciados e pela concessão efectiva do apoio judiciário nas modalidades requeridas; d. No mais conforme for de Direito”. (Sublinhados nossos). Ora, como resulta expressamente do disposto nas diversas alíneas do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, e tem sido por inúmeras vezes repetido por este Tribunal (cfr., a título de exemplo, o Acórdão n.º 20/96, in Diário da República, II série, de 16 de Maio de 1996), o recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade tem por objecto a apreciação da constitucionalidade de normas jurídicas e não das decisões judiciais que as apliquem. Pelo exposto, e sem necessidade de maiores considerações, por desnecessárias, torna-se evidente que também não pode, com fundamento na alínea b) do n.º 1 do art. 70º da LTC, conhecer-se do objecto do presente recurso.
5.3. O recurso previsto nas alíneas g) e i) do n.º 1 do artigo 70º da LTC. Finalmente, é totalmente descabida a invocação das alíneas g) e i) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, como fundamento do recurso. O recurso previsto na alínea g) do n.º 1 do artigo 70º da LTC cabe de decisões
“que apliquem norma já anteriormente julgada inconstitucional ou ilegal pelo próprio Tribunal Constitucional”. Por sua vez, a alínea i) refere-se aos recursos de decisões que “recusem a aplicação de norma constante de acto legislativo, com fundamento na sua contrariedade com uma convenção internacional, ou a apliquem em desconformidade com o anteriormente decidido sobre a questão pelo Tribunal Constitucional”. Ora, o essencial fundamento da improcedência do pedido foi o facto de “não havendo a alegação, pela requerente, da situação económica concreta (e respectiva prova) em que se encontra, não se pode afirmar que esta está na situação de carência de meios económicos que é pressuposto para a concessão do apoio judiciário; ou seja a requerente não alegou nem provou o que lhe impunha a parte final do n.º 4 do artigo 7° da Lei 30-E/2000”. É, então, evidente que nem a decisão recorrida aplicou qualquer norma já anteriormente julgada inconstitucional ou ilegal pelo próprio Tribunal Constitucional, nem foi pela mesma recusada a aplicação de norma constante de acto legislativo, com fundamento na sua contrariedade com uma convenção internacional, nem, finalmente, aquela decisão aplicou norma em desconformidade com o anteriormente decidido sobre esta última questão pelo Tribunal Constitucional.”.
5. Inconformada com esta decisão a recorrente apresentou a presente reclamação para a Conferência, através de requerimento do seguinte teor:
“[...], recorrente nos autos acima referenciados, notificada do teor da decisão sumária, dela vem reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no artigo
78.º-A, n.º 3 da Lei do Tribunal Constitucional, nos termos e com os seguintes fundamentos:
1. O signatário exerce regularmente a Advocacia de forma impoluta desde 22 de Janeiro de 1985, sendo titular da Cédula Profissional n.º --------, passada pelo Conselho Distrital de Coimbra da Ordem dos Advogados (Doc. 1, em anexo).
2. Paralelamente requereu junto do Tribunal da Relação de Coimbra a sua inscrição na Lista de Liquidatários Judiciais.
3. Em consequência, por deliberação de 1 de Fevereiro de 1999, foi admitido na referida Lista que anualmente vem sendo actualizada (cfr. DR. II série n.º 45 de
22 de Fevereiro de 2003, pgs. 3038-3039) - Doc. 1 em anexo que aqui se dá por integrado)
4. A firma A., foi declarada falida por Douta Sentença proferida em 22.01.02 nos autos de processo de falência n.º 459/01 que corre termos pelo Tribunal Judicial da Comarca de Benavente. S. Nesta Douta Sentença o signatário foi nomeado e por consequência, está a desempenhar as funções de Liquidatário Judicial e, apesar já há muito ter pedido a fixação e o pagamento de honorários tem vindo a desempenhar pontualmente e com rigor todas e cada uma das suas funções, sem que até à presente data lhe tenha sido arbitrado e muito menos pago sequer um cêntimo.
6. No exercício das suas funções de Liquidatário Judicial, não logrou até à presente data efectuar a localização e apreensão de bens para a massa, mas o signatário requereu a reexpedição da correspondência destinada à falida e chegou ao seu escritório a notícia proveniente dos Serviços do IVA, de que a massa falida é ' credora de 131.463,44 €., cujo reembolso para a massa já há muito foi por ele requerido, embora tal reembolso continue sem ser cumprido pela Administração Fiscal.
7. Também em consequência, foi reexpedida para o escritório do signatário uma notificação proveniente do tribunal cível de Aveiro nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 484.º do C. P. Civil na sequência do que a massa passou a ter conhecimento de que corria e corre termos pelo 3.º juízo Cível de Aveiro o processo ordinário 670/02 proposto em juízo mais cinco meses após ter sido declarada a falência da aí ré e aqui antecessora legal da recorrente.
8. A notícia da falência da R. consta de folhas 38 in fine dos autos de processo ordinário acabado de referir.
9. Apesar do conhecimento deste facto, a autora dos autos de processo ordinário
670/02 a correr termos pelo 3.º juízo do tribunal cível de Aveiro desconsiderou-o e bem assim o disposto nos artigo 147.o e seguintes do C. P. E. R. E. F. e não deduziu reclamação alguma junto dos referidos autos de falência que correm termos pelo tribunal judicial de Benavente.
10. O Liquidatário porque de acordo com o disposto no artigo 147.º n.º 2, do C.P
.E. R. E. F. 'assume a representação do falido para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à falência', foi aos referidos autos a folhas 61-62, de processo ordinário que correm termos pelo tribunal cível da comarca de Aveiro, reafirmar a notícia da falência e requer que fosse decretada a suspensão ou mesmo a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide respectivamente ao abrigo do disposto nos artigos 276.0 n.º 1, a) e 287.º e) ambos do C. P. Civil.
11. Em 6.05.04, o Senhor Juíz indeferiu o requerimento do Liquidatário e apesar da notícia da falência da ré e do disposto no artigo 152.º n.º 2 do C.P.E.R.E.F, condenou a ali Ré A. no pagamento de 16.670,92 € a título de capital; 2.434,35 € de juros de mora. vencidos e juros de mora sobre o capital contados desde 5-7-02 até efectivo pagamento da dívida, contados à taxa de 12%
12. Inconformada e na impossibilidade de encontrar Advogado disponível para aceitar o patrocínio em tempo útil, a massa decidiu interpor recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra e requereu a nomeação do signatário como patrono oficioso ao abrigo de apoio judiciário.
13. Invocando a anotação ao n.º 4 do artigo 7.º da Lei 30-E/00 de 20/12 in apoio judiciário, Salvador da Costa, Almedina, 3.a Edição, 2001, pág. 36-38 e o disposto no artigo 6.º do C. P. Civil, a Sr.ª Dr. C. - Director do Núcleo Jurídico do Centro distrital de Solidariedade e Segurança Social de Santarém, no uso de competência delegada, indeferiu totalmente o pedido de apoio judiciário com fundamento de que a Segurança Social de Santarém segue o entendimento de que
às massas falidas está 'legalmente excluída a possibilidade de concessão de protecção jurídica a entidades sem personalidade jurídica a que a lei atribui personalidade judiciária, como é o caso dos patrimónios autónomos'.
14. Por ainda não ter encontrado Advogado disponível para assumir o patrocínio o signatário reiterou o patrocínio da massa falida e subscreveu a interposição e a minuta do recurso de impugnação desta decisão nos termos dos artigo 28.º e 29.º da citada lei do apoio judiciário.
15. O Senhor Juíz titular dos referidos autos de processo ordinário que correm termos pelo Tribunal Cível da Comarca de Aveiro apreciou o recurso interposto, e se bem entendemos: reconheceu o sem sentido do entendimento da Segurança Social de Santarém; mas não deu provimento ao recurso por entender que o Advogado sendo simultaneamente Liquidatário deve assumir o patrocínio gratuito (e sem sequer se assumir como Advogado) a favor da massa falida, ou então contratar ou requer a nomeação de um Advogado outro, que não a ele mesmo, porquanto no seu entender não é ético o Liquidatário que é Advogado requer[er] a sua própria nomeação como Advogado sequer oficioso, percebendo pagamentos de uma e outra das distintas actividades desenvolvidas em benefício da massa. A isto se circunscreve o núcleo essencial do objecto destes autos.
16. O recurso foi admitido no Tribunal recorrido mas na decisão sumária foi rejeitado.
17. Com o mais elevado respeito, entende a massa falida que se deverá conhecer do recurso, ordenando-se a notificação da recorrente para apresentar as respectivas alegações ao abrigo das alíneas a) e b) do artigo 70º da LTC.
18. A massa falida entende que a leitura que o Tribunal Cível da Comarca de Aveiro, e implicitamente a decisão sumária, fizeram dos deveres do liquidatário que também é Advogado, ofende os princípios do Estado de direito democrático consagrados nos artigos 2.º, 3.º n.º3, 8.º,9.º b), 12.º 13.º,16.º 17.º, 18.º,
19.º, 20º, 25.º n.º 1, 26.º n.º1, 58.º, 59.º, 60.º e 62.º, da CRP.53.º n.º 1,
54.º 68.º do Estatuto da Ordem dos Advogados, na medida em que se sugere a um liquidatário que também é Advogado que usurpe funções de Advogado em benefício da massa falida e renuncie à dignidade e ao estatuto plenos de Advogado que tem o dever de assumir de forma clara, transparente e inequívoca.
19. Assim e em provimento desta reclamação, com o alto suprimento de Vossas Excelências, deverá ser ordenado o prosseguimento com a notificação para apresentação das alegações”
6. O recorrido, notificado da presente reclamação, nada disse.
Dispensados os vistos legais, cumpre decidir.
II – Fundamentação
7. Na decisão sumária reclamada considerou-se que não estavam preenchidos os pressupostos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade de nenhuma das quatro alíneas do n.º 1 do artigo 70º da LTC invocadas pela recorrente, sendo certo que, em relação à mesma norma, as alíneas a) e b) mutuamente se excluem. A recorrente vem reclamar desta decisão. Fá-lo, porém, em termos que revelam que não entendeu o seu verdadeiro fundamento normativo.
Com efeito, entende a reclamante “que se deverá conhecer do recurso, ordenando-se a notificação da recorrente para apresentar as respectivas alegações ao abrigo das alíneas a) e b) do artigo 70º da LTC”. Invoca, designadamente, que “a leitura que o Tribunal Cível da Comarca de Aveiro, e implicitamente a decisão sumária, fizeram dos deveres do liquidatário que também
é Advogado, ofende os princípios do Estado de direito democrático consagrados nos artigos 2.º, 3.º n.º3, 8.º,9.º b), 12.º 13.º,16.º 17.º, 18.º, 19.º, 20º,
25.º n.º 1, 26.º n.º1, 58.º, 59.º, 60.º e 62.º, da CRP.53.º n.º 1, 54.º 68.º do Estatuto da Ordem dos Advogados”.
Basta, porém, ler a reclamação, que acima se transcreveu integralmente, para verificar que nenhum argumento é aduzido para infirmar a fundamentada conclusão, a que se chegou na decisão reclamada, de que se não pode conhecer do objecto do recurso, por não estarem presentes os seus pressupostos de admissibilidade. Assim como basta ler a decisão ora reclamada, igualmente transcrita na sua parte decisória, para verificar que ela nada tem a ver com qualquer leitura “dos deveres do liquidatário que também é Advogado”.
Assim sendo, e pelas razões já constantes da decisão reclamada, que mantém inteira validade e em nada é infirmada pela presente reclamação, é efectivamente de não conhecer do objecto do recurso que a recorrente pretendeu interpor.
III - Decisão
Nestes termos, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada no sentido do não conhecimento do objecto do recurso.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 22 de Março de 2004
Gil Galvão Bravo Serra Luís Nunes de Almeida