Imprimir acórdão
Processo n.º 210/02
2ª Secção Relator - Cons. Paulo Mota Pinto (Cons. Maria Fernanda Palma)
Acordam na 2ª secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.A, recorrente no presente processo, em que figura como recorrida B, S.A., intentou no Tribunal do Trabalho de Lisboa acção de impugnação de despedimento colectivo, alegando que a ora recorrida e então ré estaria destituída de competência para promover esse despedimento, dado que o diploma que permitira a sua transferência da C., E.P., para a B, E.P. – o Decreto-Lei n.º 198/92, de 23 de Setembro – seria inconstitucional. A demandada apresentou contestação, defendendo a improcedência da acção e a sua absolvição do pedido. No despacho saneador, a 1ª Secção do 5º Juízo do Tribunal do Trabalho de Lisboa entendeu que haviam sido cumpridas as formalidades legais do despedimento colectivo e que procediam os fundamentos invocados para esse despedimento. Posteriormente, em 12 de Agosto de 1998, proferiu sentença em que julgou improcedente a questão de a ré, ao promover o despedimento do autor, não ser considerada a sua entidade patronal, por ele ser ainda empregado da C., E.P., com manutenção do vínculo laboral. O autor apelou desta sentença para o Tribunal da Relação de Lisboa, suscitando a questão da incompetência da ré para promover o despedimento colectivo. Para tanto, sustentou que o artigo 6º do Decreto-Lei n.º 198/92, de 23 de Setembro, que permitiu a sua transferência da C., E.P., para a B, E.P., era inconstitucional, discriminatório e contrário ao disposto na alínea e) do artigo
21º do Regime Jurídico do Contrato Individual de Trabalho, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 49.408, de 21 de Novembro de 1969. Por Acórdão de 31 de Janeiro de 2001, o Tribunal da Relação de Lisboa negou provimento ao recurso, dizendo que o n.º 1 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º
198/92, considerado inconstitucional pelo recorrente, não viola a Constituição porque se limita a atribuir competência ao órgão de gestão de uma empresa pública, que é o conselho de administração da C., E.P., para determinar os contratos de trabalho a transferir para outra empresa pública (a B, E.P.). A circunstância de a mesma norma não definir critérios a utilizar na determinação dos trabalhadores a transferir não consubstanciaria uma violação de princípios constitucionais, já que a Administração Pública está vinculada ao respeito quer do princípio da legalidade quer do princípio da igualdade, dispondo o n.º 1 do artigo 18º da Constituição que os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas. O recorrente interpôs recurso de revista deste acórdão para o Supremo Tribunal de Justiça, questionando novamente, na parte que interessa ao julgamento do presente recurso de constitucionalidade, a competência da recorrida para promover o despedimento colectivo, uma vez que o artigo 6º do Decreto-Lei n.º
198/92, que permitiu a transferência do recorrente para a recorrida, seria inconstitucional, por violar o princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição. Para sustentar tal tese, alegou o recorrente que a norma legal conferiu um poder ilegítimo – porque discricionário e unilateral – de escolha dos trabalhadores a transferir ao Conselho de Administração da C, E.P.. E acrescentou que a norma legal em causa seria ainda igualmente inconstitucional por violar o direito à segurança no emprego, consagrado no artigo 53º da Constituição. Por Acórdão de 9 de Janeiro de 2002, o Supremo Tribunal de Justiça concluiu também que o artigo 6º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 198/92 não viola o princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição, uma vez que se limita a atribuir a um órgão de gestão competência para determinar quais os contratos de trabalho a transferir. A haver violação do princípio da igualdade, ela seria directamente imputável ao acto de gestão traduzido na transferência ou na manutenção dos contratos (e não à norma legal), e o recorrente jamais indicou a ocorrência de tratamento desigual de situações idênticas ou de uso arbitrário da faculdade de selecção pelo Conselho de Administração da C., E.P.. Por outro lado, o Supremo Tribunal de Justiça concluiu que aquela norma não viola o direito à segurança do emprego, consagrado no artigo 53º da Constituição, porque tal direito não inviabiliza a transmissão de contratos de trabalho imposta pela cisão de empresas por destaque de um seu departamento, e porque, além disso, o próprio legislador acautelou a posição dos trabalhadores, ao dispor que “os trabalhadores transferidos mantêm perante a B, E.P., todos os direitos e obrigações de que eram titulares face à C, EP” (artigo 6º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 198/92), e que “os trabalhadores e pensionistas da B, E.P., mantêm, perante a B, S.A. (sociedade anónima em que foi transformada a B, E.P., por força do n.º
1 do artigo 7º), todos os direitos e obrigações que detinham à data da entrada em vigor do presente diploma” (artigo 10º, n.º 1, do mesmo decreto-lei). O Supremo Tribunal de Justiça observou ainda, por fim, que se não alegou ou provou que o recorrente houvesse impugnado judicialmente a transferência pelo que a recorrida era, de facto e de direito, a sua entidade empregadora e detinha competência para desencadear o processo de despedimento.
2.O recorrente interpôs recurso para o Tribunal Constitucional deste Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, em 24 de Janeiro de 2002. No Supremo Tribunal de Justiça, o Conselheiro Relator proferiu despacho convidando o recorrente a indicar a norma cuja inconstitucionalidade pretendia ver apreciada, e, no caso de o recurso ter sido interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, a norma ou o princípio constitucional que considerava violados e a peça processual em que havia suscitado a questão de constitucionalidade. Em cumprimento deste despacho, o recorrente veio, em 4 de Março de 2002, dizer que pretendia ver apreciada a inconstitucionalidade do artigo 6º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 198/92, que considerava que tal norma viola o artigo 13º da Constituição, e que havia suscitado a questão de inconstitucionalidade logo na petição inicial, no recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa e em várias outras peças processuais. No Tribunal Constitucional, o recorrente apresentou alegações em que concluiu que a norma impugnada é inconstitucional por “contrariar o princípio da legalidade e, subsequente e automaticamente, o da igualdade”. O recorrente entende que o princípio da legalidade é violado na medida em que a norma sub judicio atribui ao Conselho de Administração da C., E.P., “o poder de, com eficácia externa, interpretar ou integrar este preceito permitindo a violação do princípio da igualdade”. Por conseguinte, seria violado o artigo 112º, n.º 6, da Constituição, segundo o qual “nenhuma lei pode criar outras categorias de actos legislativos ou conferir a actos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos”. E desta violação da legalidade resultaria, também, uma violação do princípio da igualdade – artigo 13º da Constituição –, na medida em que se permitiu à C., E.P., “proceder sem qualquer restrição ou limites” (à escolha dos trabalhadores a transferir). Notificada para tal, a recorrida não apresentou alegações. Após mudança de relator, por vencimento, cumpre decidir. II. Fundamentos A) Questão prévia
3.No seu acórdão de 9 de Janeiro de 2002, o Supremo Tribunal de Justiça observou, na parte final, que o recorrente não impugnou judicialmente a sua transferência pelo que a recorrida era, de facto e de direito, a sua entidade empregadora e detinha competência para promover o despedimento colectivo. Todavia, anteriormente, o Supremo Tribunal de Justiça confrontou-se com a questão da inconstitucionalidade da norma ora impugnada, e aplicou-a. Com efeito, do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça não resulta que, só por si, a não impugnação da transferência pelo ora recorrente constitua fundamento bastante para a improcedência da acção de impugnação do despedimento colectivo. E o Tribunal Constitucional não pode, procedendo a uma verdadeira aplicação do direito infraconstitucional, concluir pela suficiência de tal fundamento. Em face do teor da decisão recorrida, há, assim, que deixar agora em aberto a questão de saber se o ora recorrente deveria ter reagido antes à sua transferência para a nova empregadora. É que, analisando essa decisão, não se conclui que a não impugnação prévia da transferência pelo ora recorrente funcionou como verdadeiro fundamento alternativo do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça. Antes tal questão é apenas referida como argumento de reforço de uma decisão que teria já como fundamento explícito a não inconstitucionalidade da norma do artigo 6º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 198/92. Por conseguinte, não se pode concluir pela não aplicação da norma em crise como ratio decidendi, e também não se pode entender que um eventual juízo de inconstitucionalidade esteja destituído de utilidade no presente processo. B) Questão de constitucionalidade
4.O Decreto-Lei n.º 198/92, de 23 de Setembro, em que se contém a norma impugnada, iniciou o processo de privatização da B, então inserida no seio da D, E.P.. Para tanto, criou a B, E. P., e promoveu a sua transformação em sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos. Assim, o artigo 1º, n.º 1, veio criar a B, E. P., definida no n.º 2 como uma “empresa pública constituída por destaque de parte do património da C, E. P.” Segundo o artigo 6º do Decreto-Lei n.º 198/92, de 23 de Setembro, cujo n.º 1 está em questão no presente recurso de constitucionalidade:
“1 – O conselho de administração da C, E. P., determinará os contratos de trabalho a transferir para a B, E. P.
2 – Os trabalhadores transferidos mantêm, perante a B, E P., todos os direitos e obrigações de que eram titulares face à C, E. P.”. O recorrente sustenta que este artigo 6º, n.º 1, é inconstitucional por violar os artigos 13º e 112º, n.º 6, da Constituição. Como é sabido, o Tribunal Constitucional não está, porém, impedido de apreciar a constitucionalidade da norma impugnada à luz de outras normas e princípios constitucionais. No caso vertente, há que apreciar a constitucionalidade de uma norma segundo a qual a determinação de quais os contratos de trabalho a transferir para a B, E.P. seria efectuada pelo conselho de administração da C, E.P., na sequência da criação daquela primeira empresa, por destaque de parte do património da segunda. Relativamente a situação paralela no direito privado – a da cisão de sociedades comerciais –, prevê o artigo 119º, alínea p) do Código das Sociedades Comerciais, a elaboração de um projecto da cisão pela administração da sociedade a cindir, projecto, esse, do qual há-de resultar a “atribuição da posição contratual da sociedade ou sociedades intervenientes, decorrente dos contratos de trabalho celebrados com os seus trabalhadores, os quais não se extinguem por força da cisão”. Ora, num caso relativo à cisão de sociedades comerciais também de capitais públicos, e que tinham como antecessoras uma empresa pública, este Tribunal Constitucional pronunciou-se já sobre a conformidade constitucional desta disposição, entendida “como permitindo que a R.N.I.P. pudesse ordenar a mudança do autor para a nova sociedade resultante da cisão, a ‘Rodoviária do Sul do Tejo’”, a qual vinha impugnada por violação do princípio da segurança no emprego, consagrado no artigo 53º da Constituição da República, quando entendida no sentido “de se considerar que a mudança do trabalhador deriva de uma decisão unilateral da entidade empregadora”. Fê-lo no Acórdão n.º 119/99 (publicado no Diário da República, II série, n.º 152, de 2 de Julho de 1999), que não julgou inconstitucional esta norma. E cumpre recordar o que então se disse a propósito do confronto com a garantia da segurança no emprego, não só por tal garantia ter sido invocada pelo ora recorrente perante o tribunal recorrido, como por as considerações então expendidas se afigurarem em grande medidas transponíveis para a análise da norma ora em apreço à luz do artigo 53º da Constituição:
“A Constituição, no seu artigo 53º estabelece que ‘é garantida aos trabalhadores a segurança no emprego, sendo proibidos os despedimentos sem justa causa ou por motivos políticos ou ideológicos.’ Esta garantia demonstra a natureza essencial do direito ao trabalho e a sua ligação à dignidade do homem, interferindo de modo directo com a ordenação das relações contratuais de trabalho. A garantia constitucional da segurança no emprego pressupõe, desde logo, a garantia da estabilidade da posição do trabalhador na relação de trabalho e a sua não funcionalização aos interesses do empregador. Daí que sejam proibidos os despedimentos sem justa causa, não podendo o trabalhador ser privado do seu trabalho por mero arbítrio patronal. Todavia, a garantia constitucional em apreço não obsta à consagração legal de certas causas de rescisão unilateral do contrato de trabalho pela entidade patronal com base em fundamentos objectivos. Também aquela garantia, se obsta a que o trabalhador seja despedido contra sua vontade, já não impede que ele se despeça unilateralmente, desde que fique ressalvado o direito da entidade empregadora a um adequado aviso ou ao ressarcimento de eventuais prejuízos. Ora, uma norma como aquela que está em causa nos autos e que se limita a estabelecer a obrigatoriedade de um projecto de cisão no qual se atribua a posição que para as sociedades envolvidas decorre dos contratos de trabalho e que expressamente se determine que tais contratos de trabalho se não extinguem por força da cisão, não pode, de todo em todo, violar a garantia da segurança no emprego, tal como resulta da norma do artigo 53º da Constituição. Com efeito, garantida que está, por força da parte essencial do referido comando normativo, a manutenção dos contratos de trabalho, que não poderão cessar pelo facto da cisão, desta transformação da entidade empregadora apenas pode resultar a transmissão dos mesmos contratos: ou de todos eles, no caso de a empresa cinditária se dissolver ou extinguir ou de parte para a ou para as novas empresas formadas pela cisão. O que significa que a mera mudança de entidade patronal continuando garantida a continuação das relações laborais, não pode violar a garantia de segurança no emprego, uma vez que não só persiste o contrato de trabalho, mantendo os trabalhadores o direito à antiguidade, à retribuição e às regalias de que gozava, como também a própria lei ordinária, ao impor a transmissão dos contratos de trabalho, não pode deixar de significar que a modificação da entidade empregadora não constitui um facto que, de per si, impossibilite a subsistência do vínculo laboral. Não ocorre, por conseguinte, a inconstitucionalidade material da norma da alínea p) do artigo 119º do Código das Sociedades Comerciais, que a decisão recorrida considerou verificada por violação da segurança no emprego, constante do artigo
53º da Constituição.” Como já se referiu, estas considerações são transponíveis para o confronto do artigo 6º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 198/92, de 23 de Setembro com o artigo 53º da Constituição, pois está também aqui em questão a possibilidade de o conselho de administração da C, E.P. determinar quais os contratos de trabalho a transferir para a B, E.P., na sequência da criação desta empresa, por destaque de parte do património da primeira. E nesse mesmo artigo ficou igualmente garantida a continuação das relações laborais, por força do n.º 2, no qual se prevê expressamente a manutenção pelos trabalhadores transferidos, perante a B, E, P., de “todos os direitos e obrigações de que eram titulares face à C, E. P.” Também aqui não só persiste o contrato de trabalho, como os trabalhadores mantêm, por exemplo, o direito à antiguidade, à retribuição e às regalias de que gozavam, não sendo sequer discutido que a modificação da entidade empregadora não impossibilita, de per si, a subsistência do vínculo laboral. Antes este vínculo continua com a nova empresa, sendo insuficiente o argumento de que a mudança de empregador é um facto relevante, que pode afectar, no futuro, a situação dos trabalhadores, pois é preciso não esquecer que a transmissão da posição contratual se dá como consequência da cisão da anterior empresa, com constituição de uma nova, constituída por destaque da primeira, e que parcialmente lhe sucede. Não se vislumbra, pois, qualquer violação do direito à segurança no emprego na norma em causa.
5.Defende o recorrente que o artigo 6º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 198/92, de 23 de Setembro viola o princípio da igualdade, na medida em que se teria permitido ao Conselho de Administração da C., E.P., o exercício de um poder discricionário. Aquele princípio da igualdade em sentido material, enquanto princípio dirigido ao legislador, imporia que este definisse critérios para a transferência de trabalhadores. Ora, é certo que o princípio da igualdade se dirige, efectivamente, tanto ao legislador como ao aplicador e ao intérprete da lei. Tal princípio tanto proíbe que situações de relevância jurídica igual sejam tratadas diversamente, sem justificação razoável, como que não sejam realizadas diferenciações impostas pela necessidade de tratar desigualmente o que é diverso. Proíbe-se, pois, que o legislador preveja tratamentos jurídicos diferenciados sem justificação razoável, ou que uniformize a disciplina jurídica em violação de imposições de diferenciação. No presente caso, a alegação de violação do princípio da igualdade não resulta da violação de uma alegada imposição de diferenciação – de se tratar igualmente o que é desigual –, que não se vislumbra qual poderia ser no presente caso. Inversamente, porém, logo se vê ainda que da norma em apreço também não resulta qualquer tratamento diverso para os trabalhadores da C, E. P., mas apenas a atribuição ao conselho de administração da C, E. P. da competência para determinar os contratos de trabalho a transferir para a nova empresa. Não se retira, na verdade, da norma do artigo 6º, n.º 1, qualquer distinção de tratamento jurídico entre os trabalhadores em causa, mas apenas a previsão de que os contratos de trabalho a transferir para a B, E.P. seriam determinados pelo conselho de administração. Não há, pois, sequer que entrar na análise de eventuais justificações para a distinção de tratamento, pura e simplesmente porque esta não resulta da norma em causa. Não pode, assim, deixar de concordar-se com o tribunal recorrido, quando afirmou que, a haver violação do princípio da igualdade, ela apenas poderia ser directamente imputável a actos do conselho de administração – aos actos traduzidos justamente na determinação de transmissão ou não dos contratos para a nova empresa – mas nunca à norma legal em causa (acrescentando, ainda, o tribunal a quo que, mesmo nesse plano, o recorrente não indicou a ocorrência de tratamento desigual de situações idênticas ou de uso arbitrário da faculdade de selecção). Como é evidente, da pura e simples atribuição ao conselho de administração do poder de decidir quais as posições contratuais que se transmitem e quais as que permanecem na C, E.P. não resulta, na verdade, qualquer ofensa ao princípio da igualdade, desde logo, porque não há aí qualquer tratamento diferenciado. Este tratamento diferenciado só poderia resultar dos actos praticados no exercício desta competência, e não da norma, podendo, aliás, a entidade empregadora utilizar critérios razoáveis, relacionados com as necessidades de gestão e os objectivos da nova empresa, ao proceder à determinação da transmissão dos contratos.
6.Na perspectiva do recorrente, a violação do princípio da igualdade ocorreria como consequência da falta de indicação, na norma, de critérios, ou do seu processo de definição, para a determinação dos contratos de trabalho a transferir. A norma em causa, por não conter tais critérios, não garantiria o respeito pelo princípio da igualdade. Trata-se, assim, como se vê, de um argumento que se situa, não no plano da falta de justificação de um tratamento diferenciado pela própria norma, mas no de uma omissão, que impediria que a observância da igualdade ficasse assegurada – ou, por outras palavras, de uma omissão que permitiria a violação do princípio da igualdade. Este argumento é, porém, improcedente, não só porque o princípio da igualdade não vincula apenas o legislador, mas também os órgãos da administração que actuam no exercício de competências legalmente atribuídas, como porque, se consequente, levaria à afirmação da violação do princípio da igualdade por todas as normas que atribuem a tais órgãos competência para tomar decisões mais ou menos discricionárias, sem desde logo fixarem critérios que garantam que as decisões a tomar observarão o princípio da igualdade.
Trata-se, pois, de um argumento que transpõe para o plano das exigências à norma aquilo que o princípio da igualdade só pode exigir ao aplicador do direito, no momento da concretização da lei, pelo exercício da competência que esta lhe atribui, e que não pode acolher-se.
O mesmo pode, aliás, dizer-se da alegação de que a norma em crise violaria o artigo 112º, n.º 6, da Constituição da República, que veda que a lei atribua “a actos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos”.
Na verdade, essa norma confere ao conselho de administração competência para determinar os contratos de trabalho que se transferem. Mas não pode acompanhar-se a afirmação de que, com essa determinação, se está a interpretar ou a integrar a norma, tal como quando se exerce uma competência legalmente conferida se não está a preencher qualquer lacuna ou por outra forma a integrar ou interpretar a norma atributiva de competência. A escolha de quais os contratos de trabalho que se transferem representa, antes, o exercício da competência atribuída pela norma em causa, que não determinou a transferência dos contratos de trabalho, e antes se limitou a atribuir ao conselho de administração competência para decidir quais se transferem – isto é, tal escolha constitui justamente a execução ou concretização que não cabe já ao legislador.
Posição diversa, segundo a qual o artigo 6º, n.º 1 contende com o artigo 112º, n.º 6, só poderia resultar do entendimento de que a norma do artigo 6º, n.º 1, previu logo a transferência de certos contratos de trabalho, e que a determinação de quais eram – ou dos critérios, técnicos ou de gestão, para tal, naturalmente ligados às características e objectivos da empresa a criar –, teria também de ser efectuada pelo legislador. A verdade, porém, é que pode mesmo duvidar-se, pelo contrário, de que o legislador, ao prever a criação da B, E.P., por destaque da C, E.P., pudesse estar em posição de, desde logo e em abstracto, determinar que contratos se deveriam transferir, ou, mesmo, os critérios decisivos para essa transmissão, pois esta deveria naturalmente obedecer a critérios técnicos e de gestão que só podem ser precisados considerando a realidade concreta dos objectivos, da situação e dos recursos humanos das empresas em causa. Seja como for quanto a esta possibilidade, é, porém, certo que a atribuição, ao conselho de administração da empresa a criar, do poder de determinar que contratos se transfeririam não pode considerar-se violadora do artigo 112º, n.º
6 da Constituição da República, pois trata-se tão-só do poder para executar a lei, no exercício da competência que esta atribuiu (e não de a interpretar, integrar ou modificar). Não se verificando a violação, pela norma em análise, nem da garantia da segurança no emprego, nem do princípio da igualdade, nem do princípio da legalidade, há, por conseguinte, que negar provimento ao presente recurso. III. Decisão Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide: a) Não julgar inconstitucional o artigo 6º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º
198/92, de 23 de Setembro; b) Consequentemente, negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida, no que à questão de constitucionalidade respeita; c) Condenar o recorrente em custas, com 15 (quinze) unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 9 de Abril de 2003 Paulo Mota Pinto Bravo Serra Maria Fernanda Palma (vencida nos termos da declaração de voto junta) José Manuel Cardoso da Costa Tem voto de vencido do Exmº Conselheiro Guilherme da Fonseca, que não assina por ter deixado de fazer parte do Tribunal. Paulo Mota Pinto
Declaração de voto
Divergi da decisão proferida no presente Acórdão, votando vencida pelas seguintes razões: Entendo que foi violada uma dimensão do princípio da igualdade que se articula com a segurança jurídica e com a própria segurança no emprego e que consiste na directa vinculação dos órgãos da administração de uma empresa à lei ou, pelo menos, a critérios por eles pré-definidos em matérias que impliquem a persistência ou a configuração da relação laboral. Sendo necessária a transferência de contratos de trabalho de uma empresa pública para uma nova empresa constituída com património da primeira, num processo de privatização, o valor da segurança do emprego não impede, em si mesmo, que tal transferência se processe através de uma decisão unilateral da entidade empregadora (tal como foi ponderado no Acórdão nº 119/99 que assinei). Todavia, entendo que isso não implica que o Conselho de Administração de uma empresa possa, independentemente de critérios objectivos e não discricionários, decidir sobre tais transferências. A necessidade da enunciação de tais critérios não é preenchida com o mero cumprimento implícito dos deveres gerais de imparcialidade dos órgãos da administração. Na verdade, estando em causa a segurança do emprego, não podem esses órgãos agir sem definição prévia, comunicável, dos critérios objectivos que fundamentam a transferência dos contratos. Se o fizerem, estará irremediavelmente violada a proibição de arbítrio. Assim, quando o legislador confere ao Conselho de Administração o poder de decidir, sem enunciar critérios, quais os contratos a transferir, autoriza o exercício de um poder discricionário – o que, nesta matéria, em que em última análise está em causa uma relação social quase vital, significa admitir a qualificação dos trabalhadores como “peças descartáveis” e transferíveis. O argumento de que o Conselho de Administração sempre estaria vinculado, nos actos praticados, à não violação da igualdade é inconsequente, pois se não é prescrito pela lei um critério na selecção dos trabalhadores a transferir não se poderá invocar tal critério dessa lei para apelar à violação da igualdade. E deste modo, o princípio da igualdade fica irremediavelmente despojado de conteúdo material. Assim, entendo como circular o discurso jurídico do mesmo Acórdão, pois transfere para um território inexistente, em que nenhum trabalhador teria possibilidade de invocar a violação da igualdade, a impugnação de um acto com aquela importância. Maria Fernanda Palma