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Processo n.º 312/02
2ª Secção Relator - Cons. Paulo Mota Pinto (Cons. Guilherme da Fonseca)
Acordam na 2ª secção do Tribunal Constitucional I. Relatório
1.A veio interpor recurso para este Tribunal Constitucional, “ao abrigo da al. b) do n.º 1 do artº 70º da Lei 28/82, de 15 de Novembro (com as alterações introduzidas pelas Leis 143/85 de 26 de Novembro, 85/89, de 7 de Setembro,
88/95, de 1 de Setembro e 13-A/98, de 26 de Fevereiro)”, do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (2ª Secção), de 19 de Março de 2002, que negou o recurso de revista por ela interposto, mantendo o julgamento de improcedência da acção ordinária em que peticionava “a condenação do Centro Nacional de Pensões, nos termos do DL 322/90, de 18 de Outubro e do Dec. Reg. 1/94, de 18 de Janeiro, a prestar-lhe uma pensão mensal e vitalícia, ou, em alternativa, a reconhecer-lhe a qualidade de titular do direito às prestações por morte do referido B”, com quem vivia, desde há 28 anos, pelo menos, em condições análogas às dos cônjuges. No requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, a recorrente pede a “apreciação da inconstitucionalidade do artº 8º do DL 322/90, de 18 de Outubro, por violação do disposto no artº n.º 26º da Constituição da República Portuguesa”, dizendo que suscitou a questão “já nas alegações de recurso interpostas para o Supremo Tribunal de Justiça”. Nas alegações de recurso a recorrente adianta as seguintes conclusões:
“1. O Dec-Lei n° 322/90, de 18 de Outubro, regula a protecção genérica a favor do agregado familiar, por morte dos beneficiários abrangidos pelo regime da segurança social, estipulando pensões de sobrevivência.
2. Esta protecção destina-se a compensar a perda dos rendimentos de trabalho determinada pela morte, sem necessidade, para que tal seja reconhecido, de qualquer requisito de insuficiência económica ou vencimento pessoal.
3. No espirito do legislador ao criar este diploma está a continuação, no agregado familiar, de alguma da estabilidade económica auferida por aquele que faleceu.
4. Assim, este diploma, também tenta consagrar e proteger aqueles que vivem em união de facto, estipulando no seu artº 8° que o direito às prestações por morte
é extensivo às pessoas que se encontrem na situação prevista no n° 1 do artº
2020 do CC.
5. Ora, do espírito do diploma em análise e da forma como as prestações de sobrevivência são atribuídas genericamente ao cônjuge sobrevivo – na medida em que este é uma parte da relação desfeita pela morte –, resulta que o legislador ao referir-se ao artº 2020° do CC, pretendia apenas identificar aquilo que se deveria entender por união de facto, ou seja, ‘aqueles que há mais de dois anos vivem em condições análogas à dos cônjuges’.
6. Esta posição foi posteriormente assumida pelo próprio legislador no artigo 2° do Dec-Regulamentar n° 1/94, de 18 de Janeiro, no qual refere o âmbito pessoal de aplicação do diploma.
7. Qualquer interpretação do artigo 8° do Dec-Lei 322/90, fora deste contexto está forçosamente ferida de inconstitucionalidade, por violadora, dos direitos e garantias dos cidadãos para atribuição de pensões por morte.
8. Fazer depender a atribuição de prestações de sobrevivência prevista no artigo
8° deste diploma da verificação de todos os requisitos do artº 2020º do CC, tem de se concluir pela inconstitucionalidade do mesmo, pois está a violar o direito de igualdade entre todos os cidadãos, enquanto partes de uma mesma situação concreta de perda de rendimentos de trabalho auferidos pelo de cujus para o seu agregado familiar e sem que da referida atribuição de prestações às uniões de facto nestas condições possa resultar um qualquer prejuízo cujos interesses o legislador pretendesse especialmente proteger.
9. A contra-argumentação de que a protecção jurídica das uniões de facto não é igual à protecção jurídica do casamento, e que, por conseguinte, não se pode pretender que do casamento e da união de facto resulte o mesmo efeito jurídico, fica ultrapassada pelo facto de na união de facto e para aplicação do presente diploma sempre será necessário fazer prova da já referida vivência há mais de dois anos em condições análogas ás dos cônjuges. Pelo exposto,
10. Deverá ser declarada a inconstitucionalidade do artº 8º na medida em que faz depender a atribuição das pensões por morte da total aplicação do artº 2020º do CC,
11. Ou, quando se entenda que a vontade do legislador era apenas indicar o que pretendia que se entendesse por união de facto, considerar inconstitucional a interpretação desse artigo que considera necessário para a atribuição das prestações a verificação de todos os requisitos do artigo 2020° do CC.
12. Pelo exposto, deverá ser declarada a inconstitucionalidade do artigo 8° do DL 322/90 de 18 de Outubro, por violadora do artº 26 da Constituição”. Respondeu às alegações o recorrido, terminando com as seguintes conclusões para sustentar a improcedência do “presente recurso de apreciação da inconstitucionalidade do artº 8º do DL n.º 322/90 de 18/10”:
“1. Face ao vigente quadro jurídico-constitucional regulamentador da família não merecem acatamento os argumentos aduzidos pelo recorrente tendentes a equiparar o casamento à união de facto.
2. Ao contrário do defendido pelo recorrente, e tal como resulta de todo o quadro legal, a atribuição de prestações de sobrevivência nas situações de união de facto, depende da verificação de todos os requisitos do art° 2020° do CC, e, não apenas, da prova de que o requerente no momento da morte de beneficiário não casado ou separado judicialmente de pessoas e bens, vivia com ele há mais de dois anos em condições análogas às dos cônjuges, sem que daqui se tenha de concluir pela inconstitucionalidade do n.º 8° do DL n° 322/90 de 18/10.
3. Não existe uma equiparação absoluta entre uniões de facto e de direito na questão da atribuição do direito a pensão de sobrevivência, mas tão só relativa, não se vislumbrando injustiça flagrante nas limitações de tal equiparação já que distintos são os acervos de direitos e deveres (nomeadamente de cariz sucessória) que caracterizam cada uma das situações.
4. Donde, a distinta caracterização de cada uma destas situações afasta, cremos nós, qualquer pecado de inconstitucionalidade da norma em causa, tal como é propugnado pelo Recorrente, por violador do artº 26° da Constituição.” Após mudança de relator, por vencimento, cumpre decidir. II. Fundamentos A) Objecto do recurso
2.O presente recurso tem por objecto a apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 8º do Decreto-Lei n.º 322/90, de 18 de Outubro (diploma que definiu a protecção na eventualidade da morte dos beneficiários do regime geral de segurança social). Sob a epígrafe “situação de facto análoga à dos cônjuges”, dispõe este artigo 8º:
“1 – O direito às prestações previstas neste diploma e o respectivo regime jurídico são tornados extensivos às pessoas que se encontrem na situação prevista no n.º 1 do artigo 2020.º do Código Civil.
2 – O processo de prova das situações a que se refere o n.º 1, bem como a definição das condições de atribuição das prestações, consta de decreto regulamentar.” Segundo o n.º 1 do artigo 2020º do Código Civil (na redacção do Decreto-Lei n.º
496/77, de 25 de Novembro):
“1. Aquele que, no momento da morte de pessoa não casada ou separada judicialmente de pessoas e bens, vivia com ela há mais de dois anos em condições análogas às dos cônjuges, tem direito a exigir alimentos da herança do falecido, se os não puder obter nos termos das alíneas a) a d) do artigo 2009º.
(...)” O artigo 2009º, n.º 1, do Código Civil, por sua vez, enuncia as “pessoas obrigadas a alimentos”, indicando nas alíneas a) a d) o cônjuge ou o ex-cônjuge, os descendentes, os ascendentes e os irmãos. Com interesse para o caso, e citados na decisão recorrida, importa ainda referir os preceitos dos artigos 2º e 3º do Decreto Regulamentar n.º 1/94, de 18 de Janeiro (que veio regular o acesso às prestações por morte por parte das pessoas que se encontram na situação de união de facto):
“Artigo 2.º
Âmbito pessoal Tem direito às prestações a que se refere o número anterior a pessoa que, no momento da morte de beneficiário não casado ou separado judicialmente de pessoas e bens, vivia com ele há mais de dois anos em condições análogas às dos cônjuges. Artigo 3.º Condições de atribuição
1 – A atribuição das prestações às pessoas referidas no artigo 2.º fica dependente de sentença judicial que lhes reconheça o direito a alimentos da herança do falecido nos termos do disposto no artigo 2020.º do Código Civil.
2 – No caso de não ser reconhecido tal direito, com fundamento na inexistência ou insuficiência de bens da herança, o direito às prestações depende do reconhecimento judicial da qualidade de titular daquelas, obtido mediante acção declarativa interposta, com essa finalidade, contra a instituição de segurança social competente para a atribuição das mesmas prestações.”
3.A recorrente defende a inconstitucionalidade da norma do citado artigo 8º “na medida em que faz depender a atribuição das pensões por morte da total aplicação do artº 2020º do CC”. Como ela própria salientou perante o tribunal a quo:
“apesar de o artº 8º prever as situações de união de facto, ofende os direitos dos cidadãos abrangidos, quando faz depender a atribuição das pensões de sobrevivência da verificação dos requisitos do artº 2020º do CC, em vez de unicamente condicionar essa atribuição à verificação dos requisitos previstos nos artº 2º do decreto regulamentar 1/94 de 18/01, ou seja, a viver há mais de dois anos nas condições análogas às dos cônjuges, assim como é suficiente fazer prova do matrimónio.” O Acórdão ora recorrido começou por enunciar as questões a solucionar como as seguintes:
“1ª – Requisitos para a atribuição da pensão de sobrevivência na situação de união de facto;
2ª – (In)verificação desses requisitos no caso sob recurso;
3ª – Aplicação do disposto no n.º 2 do artigo 508 do Código de Processo Civil;
4ª – Inconstitucionalidade do artigo 8º do DL 322/90, de 18/10”. Sobre a primeira questão, discreteou assim:
“Como se sabe, atento o disposto no artigo 220º do Código Civil com referência ao artigo 2090º, n.º1, alíneas a) a d), ambos do Código Civil, na situação de união de facto, tem direito a exigir alimentos à herança do falecido aquele que:
- com ele vivia há mais de dois anos em condições análogas às dos cônjuges;
- e que não possa obter os alimentos ou do cônjuge ou do ex-cônjuge, ou dos descendentes, ou dos ascendentes, ou dos irmãos. Tem-se discutido se o pretendente às prestações em causa tem que propôr duas acções – em primeiro lugar contra a herança e depois contra a instituição de segurança social – ou se basta uma destas (desde que procedente, como é óbvio). Continuamos a entender que basta uma – cfr. acórdão da Relação de Lisboa, de
14/5/98, CJ, ano XXIII, tomo III, página 100, relatado pelo aqui também relator, e citado pelo acórdão do STJ, de 9/2/99, CJSTJ, ano VII, tomo I, página 89 – como claramente flui do artigo 5º do DR 1/94.:
‘O requerimento das prestações por morte, a conceder ao abrigo do disposto neste diploma, deve ser acompanhado de certidão da sentença judicial que fixe o direito a alimentos ou declare a qualidade de titular das prestações por morte.’
(sublinhado nosso). A questão que se coloca é a de saber se, no caso previsto no n.º 2 do artigo 3º do DR 1/94, ou seja, quando a acção contra a herança improceder por falta ou insuficiência de bens, o pretendente às prestações terá de alegar e provar, na acção a intentar contra a instituição de segurança social, os requisitos exigidos para a acção de alimentos (concretamente os de que não os pode obter das pessoas referidas nas als. a) a d) do n.º 1 do artigo 2009 do Código Civil), ou se lhe basta alegar e provar a convivência há mais de dois anos, em condições análogas às dos cônjuges, com o falecido beneficiário.
É este entendimento que defende a recorrente, com um argumento meramente literal
– o de que o n.º 2 do artigo 3º do DR 1/94, contrariamente ao que acontece com o seu n.º 1, não faz qualquer referência o artigo 2020. Comprova-se, no entanto mais uma vez que a interpretação da lei não pode (não deve) cingir-se à sua letra, como adverte o artigo 9º do Código Civil. E é quanto basta, obviamente, para que qualquer subsequente diploma regulamentar
– por mais deficiente que seja a sua redacção – fique irremediavelmente vinculado a esta estatuição da titularidade do direito às prestações nos casos de união de facto. Ora, o que se verifica é que o DR 1/94 desdobra os elementos que compõem este conceito de titularidade – definido no diploma-mãe (com força de lei) – pelos seus artigos 2º e 3º por forma a que naquele se defina o «Âmbito pessoal» e neste se prevejam as «Condições de atribuição», conforme se lê nas respectivas epígrafes. Estas condições de atribuição são, nem mais nem menos, uma das duas sentenças judiciais exigidas pelo referido artigo 5º do mesmo DR:
- ou que reconheça o direito a alimentos da herança do beneficiário falecido nos termos do disposto no artigo 2020º do Código Civil (n.º1 do artigo 3º do DR);
- ou (no caso de inexistência ou insuficiência de bens da herança) a que reconheça a qualidade de titular das prestações (n.º 2 do mesmo artigo), titularidade esta que – repete-se – só é reconhecida «às pessoas que se encontrem na situação prevista no n.º 1 do artigo 2020 do Código Civil», como expressamente se lê no n.º 1 do artigo 8º do DL 322/90. Por conseguinte, parafraseando os dois citados acórdãos, do conjunto de todas as disposições legais acabadas de analisar, conclui-se o direito às prestações em causa depende da verificação de todos os requisitos previstos no n.º 1 do artigo
2020º, com referência ao artigo 2009º, n.º 1, als. a) a d), ambos do Código Civil, a alegar e provar em qualquer das duas referidas acções judiciais”. Em relação à segunda questão, a decisão recorrida examinou a alegação da recorrente, de que estariam provados os requisitos exigidos no artigo 2020º, n.º
1, por remissão para o artigo 2009º, ambos do Código Civil, concluindo, na sequência do entendimento da especificação dos factos provados efectuado pelo Tribunal da Relação do Porto, não estarem provados esses requisitos, “com referência às alíneas a) a d) do artigo 2009” do Código Civil.. Quanto à inexistência de inconstitucionalidade, “por violação do disposto no artigo 26º da Constituição da República Portuguesa e dos direitos e garantias dos cidadãos que vivem em união de facto face aos casados para efeito de atribuição de pensão por morte”, entendeu o tribunal a quo que “não merecem acatamento estes argumentos tendentes a equiparar o casamento à união de facto”:
“não se pode equiparar ao casamento, pois daquela não decorrem os deveres e os efeitos exclusivos deste”. E daqui que
“quando o legislador resolve intervir na área da união de facto, o faz sempre de uma forma específica e rigorosamente delimitadora. Como o fez recentemente a Assembleia da República, no âmbito em apreço, com a publicação da Lei 7/2001, de
11 de Maio, sobre a adopção de medidas de protecção das uniões de facto, onde se constata que o regime de acesso às prestações por morte do beneficiário, estabelecido no seu artigo 6º, continua a depender da verificação das «condições constantes no artigo 2020º do Código Civil» (n.º 1), ficando também agora claro
- em confirmação da orientação jurisprudencial que perfilhamos -- que, no caso de inexistência ou insuficiência de bens da herança, a acção deve ser logo dirigida contra a instituição competente (n.º 2 ). Inexiste, portanto, a apontada inconstitucionalidade”
4.Da análise do requerimento de recurso, que se refere apenas à “apreciação da inconstitucionalidade do artº 8º do DL 322/90, de 18 de Outubro”, e da decisão recorrida pode, pois, concluir-se que está em causa esta norma no entendimento, aplicado nesta decisão, segundo o qual a atribuição da pensão de sobrevivência por morte do beneficiário da segurança social, a quem com ele convivia em união de facto, depende da verificação de todos os requisitos previstos no n.º 1 do artigo 2020º – designadamente, não apenas a convivência há mais de dois anos, em condições análogas às dos cônjuges, com o falecido, mas também não poder obter alimentos das pessoas referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 2009º do Código Civil. B) Apreciação da questão de constitucionalidade
5.Importa começar por salientar que no presente recurso não está em causa – nem pode estar, atenta a natureza da intervenção do Tribunal Constitucional, restrita à questão de constitucionalidade – apurar qual é o melhor entendimento da norma que se contém no artigo 8º do Decreto-Lei n.º 322/90, de 18 de Outubro, quanto ao sentido que deve ser atribuído à remissão para os requisitos previstos no n.º 1 do artigo 2020º do Código Civil. Há, apenas, que apurar se a exigência, por via dessa remissão, não apenas da convivência da demandante há mais de dois anos, em condições análogas às dos cônjuges, mas também da impossibilidade de obter alimentos das pessoas referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo
2009º desse Código, deve considerar-se violadora de alguma norma ou princípio constitucional – se ela é inconstitucional. Estas são questões indubitavelmente diferentes, sendo que, para resolver a primeira, de interpretação do direito ordinário, podem relevar logo, por exemplo, argumentos retirados da diversa natureza e fundamento dos direitos (à pensão de sobrevivência por morte do beneficiário da segurança social e a alimentos, respectivamente) em questão, enquanto a segunda apenas tem consequências vinculativas no plano da interpretação quando estiver em causa o respeito pela Lei Fundamental (a hipótese da “interpretação conforme à Constituição”). Não é, por outro lado, também este o meio para apurar se, no plano do direito a fazer – ou mesmo, considerando a evolução legislativa ocorrida nos últimos anos
–, a solução adoptada pelo tribunal recorrido é a melhor. Vindo impugnada a conformidade constitucional de uma norma da qual resulta uma distinção de tratamento jurídico entre o cônjuge e a pessoa que vivia com a vítima em união de facto, importa, na verdade, recordar sumariamente o enquadramento legal destas duas situações, podendo para tal seguir-se o Acórdão n.º 275/2002, deste Tribunal (publicado no Diário da República [DR], II Série, n.º 169, de 24 de Julho de 2002):
“Segundo a versão originária do Código Civil, enquanto o casamento era considerado como fonte das relações jurídicas familiares (artigo 1576º), a convivência em situação de união de facto, em condições análogas às dos cônjuges, era praticamente irrelevante, considerada como pura relação de facto – que interessava apenas para efeitos da determinação da paternidade, ou para efeitos de invalidade das disposições testamentárias ou de liberalidades, se o testador ou doador fossem casados; e ainda, eventualmente, para efeitos do artigo 495º, n.º 3, se pudesse entender-se que o falecido prestava alimentos ao sobrevivo ‘no cumprimento de uma obrigação natural’. A Constituição da República consagrou, logo em 1976, no artigo 36º, n.º 1, o
‘direito de constituir família e de contrair casamento em condições de plena igualdade’, inculcando, assim, que a família constitucionalmente protegida não assenta necessariamente no casamento, pois previa-se a constituição de família não fundada no matrimónio. Posteriormente, o Decreto-Lei 496/77, de 25 de Novembro veio conceder relevância
à convivência ‘há mais de dois anos em condições análogas às dos cônjuges’, passando a prever-se, designadamente, no artigo 2020º do Código Civil (sobre a epígrafe ‘união de facto’), um direito do sobrevivo de exigir alimentos da herança do falecido (desde que este não fosse casado ou estivesse separado judicialmente de pessoas e bens e que os alimentos não pudessem ser obtidos do cônjuge ou ex-cônjuge, dos descendentes, dos ascendentes ou dos irmãos), e a permitir-se, no artigo 1911º, n.º 3, do mesmo diploma, o exercício conjunto do poder paternal, como se fossem casados, pelos progenitores que convivessem maritalmente, se fosse essa a sua vontade. Por outro lado – e para nos cingirmos
à área do direito privado (sem considerar, por exemplo, efeitos no domínio da segurança social) –, a partir de 1985 (com a Lei n.º 46/85, de 20 de Setembro) passou a prever-se no artigo 1111º, n.º 2, do Código Civil, que, em caso de falecimento do inquilino não casado ou separado judicialmente de pessoas e bens, a sua posição se transmitia para aquele ‘que no momento da sua morte vivia com ele há mais de 5 anos em condições análogas às dos cônjuges’ (assim também, depois de 1990, o artigo 85º, n.º 1, alínea e) do Regime do Arrendamento Urbano). E não admira, pois, que se discutisse se a união de facto deveria ou não ser qualificada igualmente como relação familiar. A protecção jurídica da união de facto veio, mais recentemente, a ser objecto da atenção do legislador, através da aprovação de dois diplomas adrede aprovados: a Lei n.º 135/99, de 28 de Agosto, que definira a união de facto como ‘a situação jurídica das pessoas de sexo diferente que vivem em união de facto há mais de dois anos’; e a Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, que revogou aquela, e veio, no seu artigo 1º, n.º 1, a alargar a noção por forma a torná-la independente do sexo das pessoas em causa. Os efeitos que neste último diploma (ainda não regulamentado, pese embora o prazo de 90 dias previsto no seu artigo 9º) se atribuem à união de facto encontram-se enumerados no artigo 3º, compreendendo os direitos a: a. Protecção da casa de morada de família, nos termos do artigo 4º desta lei; b. Beneficiar de regime jurídico de férias, faltas, licenças e preferência na colocação dos funcionários da Administração Pública equiparado ao dos cônjuges; c. Beneficiar de regime jurídico das férias, feriados e faltas, aplicado por efeito de contrato individual de trabalho, equiparado ao dos cônjuges; d. Aplicação do regime do imposto de rendimento das pessoas singulares nas mesmas condições dos sujeitos passivos casados e não separados judicialmente de pessoas e bens; e. Protecção na eventualidade de morte do beneficiário, pela aplicação do regime geral da segurança social e da lei; f. Prestação por morte resultante de acidente de trabalho ou doença profissional, nos termos da lei; g. Pensão de preço de sangue e por serviços excepcionais e relevantes prestados ao País, nos termos da lei.
Às pessoas de sexo diferente que vivam em união de facto estendeu-se, ainda, o direito de adopção em condições análogas às previstas para os cônjuges no Código Civil (embora sem prejuízo das disposições legais respeitantes à adopção por pessoas não casadas).” A previsão legal da protecção das pessoas que convivem em situação de união de facto resultou, pois, consideravelmente alargada com os citados diplomas, a tanto destinados, podendo mesmo, eventualmente, questionar-se se o reconhecimento, posteriormente ao diploma de 1990, do direito a “protecção na eventualidade de morte do beneficiário, pela aplicação do regime geral da segurança social e da lei”, inculcaria interpretação diversa da ora em causa. Seja como for, nesta sede cumpre apenas apurar se a dimensão normativa impugnada
é ou não inconstitucional.
6.Para sustentar a existência de inconstitucionalidade, a recorrente invoca expressamente a violação do artigo 26º da Constituição da República, onde se consagram “outros direitos pessoais” além do direito à vida e do direito à integridade pessoal – isto é (e reportando-nos agora ao n.º 1 de tal artigo, no qual se enunciam expressamente direitos), os “direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação.” Ora, a alegação da violação destes direitos pela dimensão normativa em questão pode, sem mais, ser afastada como destituída de fundamento. Na verdade, do facto de se fazer depender a atribuição da pensão de sobrevivência da impossibilidade de obter alimentos dos familiares referidos no artigo 2009º, n.º 1, alíneas a) a d) do Código Civil não resulta, evidentemente, qualquer violação, desde logo, dos direitos à identidade pessoal, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, e à imagem, ou à reserva da intimidade da vida privada e familiar. E o mesmo deve dizer-se quanto a uma violação do direito ao desenvolvimento da personalidade, quer este seja entendido como cláusula geral sem maior densificação, quer, como tem sido sustentado na doutrina (Paulo Mota Pinto, “O direito ao livre desenvolvimento da personalidade”, in Portugal-Brasil, ano
2000, Coimbra, 1999, págs. 171 e segs.), dele se extraia a necessidade de consagração de uma tutela geral da personalidade e o reconhecimento de uma
“liberdade geral de acção”. Afigura-se, pois, que, na perspectiva da recorrente, no artigo 26º só poderia estar em causa, na distinção, resultante da norma impugnada, das pessoas que conviviam com o beneficiário em situação de união de facto, o direito “à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação”. Para apreciação da norma em causa, este parâmetro constitucional é, porém, com mais propriedade reconduzido às exigências do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição. E, na verdade, resulta também do teor da alegação da recorrente a invocação da violação do princípio da igualdade (do “direito de igualdade entre todos os cidadãos, enquanto partes de uma mesma situação concreta de perda de rendimentos de trabalho auferidos pelo de cujus para o seu agregado familiar”), já que “na união de facto e para aplicação do presente diploma sempre será necessário fazer prova da já referida vivência há mais de dois anos em condições análogas às dos cônjuges”. Ora, importa, antes de mais, salientar que o enquadramento constitucional da questão a apreciar no presente recurso é – tal como no caso que deu origem ao citado Acórdão n.º 275/2002, deste Tribunal – diverso do que foi reconhecido em decisões que se pronunciaram sobre normas que previam uma diferenciação de tratamento entre pessoas casadas e pessoas em situação de união de facto, mas que, ou consideravam relevante na própria hipótese da norma, ou se projectavam ainda sobre o interesse dos respectivos filhos – decisões, essas, que, por aplicação da proibição constitucional de discriminação dos filhos nascidos fora do casamento (artigo 36º, n.º 4), chegaram a uma decisão de inconstitucionalidade. É o caso, designadamente, do Acórdão n.º 359/91 (DR, I série-A, de 15 de Outubro de 1991) e do Acórdão n.º 286/99 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 43º, págs. 503 e segs.), que fundamentaram decisões de inconstitucionalidade na violação do artigo 36º, nº 4 (proibição da discriminação entre filhos nascidos do casamento e filhos nascidos fora do casamento). Na verdade, a eventual existência e interesse dos filhos são irrelevantes autonomamente na presente hipótese (a não ser na medida em que estes possam prestar alimentos à demandante). Há, pois, que fazer o confronto da dimensão normativa em crise apenas com o princípio da igualdade.
7.Este Tribunal Constitucional tem tido frequentemente ocasião de se pronunciar sobre o sentido e o alcance que deve ser reconhecido ao princípio constitucional da igualdade. Pode, assim, recordar-se (como se fez também, por exemplo, no citado Acórdão n.º 275/2002), o que se disse no Acórdão n.º 14/2000 (DR, II série, de 19 de Outubro de 2000):
“A propósito do princípio da igualdade, teve já este Tribunal, por inúmeras vezes, oportunidade de sobre o mesmo discretear, citando-se, a título de exemplo o Acórdão n.º 1007/96 (publicado no Diário da República, 2ª Série, de 12 de Dezembro de 1996), onde, uma vez mais, se realçou que o princípio da igualdade
‘obriga que se trate como igual o que for necessariamente igual e como diferente o que for essencialmente diferente; não impede a diferenciação de tratamento, mas apenas a discriminação arbitrária, a irrazoabilidade, ou seja, o que aquele princípio proíbe são as distinções de tratamento que não tenham justificação e fundamento material bastante. Prossegue-se assim uma igualdade material, que não meramente formal’. E acrescentou-se nesse aresto que ‘[p]ara que haja violação do princípio constitucional da igualdade, necessário se torna verificar, preliminarmente, a existência de uma concreta e efectiva situação de diferenciação injustificada ou discriminação’. Nas palavras de Maria Glória Ferreira Pinto (in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 358, pág. 44), ‘[o] critério valorativo a que o princípio da igualdade, enquanto princípio jurídico, apela, não deve ser, em consequência, um critério de valores subjectivos, mas, pelo contrário, um critério retirado do quadro de valores vigentes numa sociedade, interpretados objectivamente. É certo que tais valores vivem no âmbito das alterações históricas e civilizacionais, só sendo materialmente determináveis em presença de uma sociedade em concreto, mas nem por isso deixa de ser um quadro de valores objectivo’.” No Acórdão n.º 245/00 (DR, II série, de 3 de Novembro de 2000), por sua vez, salientou-se que
“(...) tem, de há muito, vindo a afirmar este Tribunal que é ‘sabido que o princípio da igualdade, entendido como limite objectivo da discricionaridade legislativa, não veda à lei a realização de distinções. Proíbe-lhe, antes, a adopção de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias – e assumem, desde logo, este carácter as diferenciações de tratamentos fundadas em categorias meramente subjectivas, como são as indicadas, exemplificativamente, no n.º 2 do artigo 13º da Lei Fundamental –, ou seja, desigualdades de tratamento materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável
(vernünftiger Grund) ou sem qualquer justificação objectiva e racional. Numa expressão sintética, o princípio da igualdade, enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se na ideia geral de proibição do arbítrio (Willkürverbot)’ (cfr., por entre muitos outros, o Acórdão nº 1186/96, publicado no Diário da República,
2ª Série, de 12 de Fevereiro de 1997), ou, dito ainda de outra forma, o
‘princípio da igualdade (...) impõe se dê tratamento igual ao que for essencialmente igual e se trate diferentemente o que diferente for. Não proíbe as distinções de tratamento, se materialmente fundadas; proíbe, isso sim, a discriminação, as diferenciações arbitrárias ou irrazoáveis, carecidas de fundamento racional’ (verbi gratia, Acórdão nº 1188/96, ob. cit., 2ª Série, de
13 de Fevereiro de 1997).” E recorde-se, ainda, o que se escreveu a propósito no Acórdão n.º 187/01 (DR, II série, de 26 de Junho de 2001):
«(...)
É sabido que o princípio da igualdade, tal como tem sido entendido na jurisprudência deste Tribunal, não proíbe ao legislador que faça distinções – proíbe apenas diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, sem uma justificação razoável, segundo critérios objectivos e relevantes. É esta, aliás, uma formulação repetida frequentemente por este Tribunal (cf., por exemplo, os Acórdãos deste Tribunal n.ºs 39/88, 325/92, 210/93, 302/97, 12/99 e
683/99, publicados, nos ATC, respectivamente, vol. 11º, pp. 233 e ss.,vol. 23º, pp. 369 e ss., vol. 24º, pp. 549 e ss., vol. 36º, pp. 793 e ss., e no Diário da República, II Série, de 25 de Março de 1999, e de 3 de Fevereiro de 2000). Como princípio de proibição do arbítrio no estabelecimento da distinção, tolera, pois, o princípio da igualdade a previsão de diferenciações no tratamento jurídico de situações que se afigurem, sob um ou mais pontos de vista, idênticas, desde que, por outro lado, apoiadas numa justificação ou fundamento razoável, sob um ponto de vista que possa ser considerado relevante. Ao impor ao legislador que trate de forma igual o que é igual e desigualmente o que é desigual, esse princípio supõe, assim, uma comparação de situações, a realizar a partir de determinado ponto de vista. E, justamente, a perspectiva pela qual se fundamenta essa desigualdade, e, consequentemente, a justificação para o tratamento desigual, não podem ser arbitrárias. Antes tem de se poder considerar tal justificação para a distinção como razoável, constitucionalmente relevante.
(…) Ora, será que a distinção entre cônjuges (contemplados como titulares do direito
às prestações em questão no artigo 7º, n.º 1, alínea a) do Decreto-Lei n.º
322/90) e pessoas em situação de união de facto, para efeitos de fixação das condições de atribuição da pensão de sobrevivência, requerendo para estas que não possam exigir alimentos aos seus familiares mais próximos, é violadora do princípio da igualdade? A perspectiva da recorrente parece ser a de que a distinção entre pessoas casadas e pessoas em situação de união de facto, para efeitos de atribuição da pensão de sobrevivência, viola o princípio da igualdade por ser destituída de fundamento razoável, constitucionalmente relevante, considerando, designadamente, que “sempre será necessário fazer prova da já referida vivência há mais de dois anos em condições análogas às dos cônjuges”. Cumpre, porém, reconhecer que este último argumento dá por pressuposto o reconhecimento de uma imposição constitucional, por força do princípio da igualdade, de um mesmo tratamento para cônjuges e pessoas que vivem em união de facto (ainda que há mais de dois anos). Ora, numa certa perspectiva pode, é certo, admitir-se que uma certa caracterização da situação de união de facto, pela sua duração e por outras circunstâncias (por exemplo, a existência de filhos comuns) a aproxima da situação típica dos cônjuges. No caso, porém, a exigência de uma convivência há mais de dois anos em condições análogas às dos cônjuges serve apenas para caracterizar de forma mínima a situação de união de facto que poderá ser juridicamente relevante, para lhe serem reconhecidos – embora, segundo o Código Civil, em medida bastante limitada e muito distinta da relação entre os cônjuges – alguns efeitos jurídicos. É que, diversamente do que acontece com a relação matrimonial, em que um acto revestido de uma forma jurídica solene marca a criação de uma nova relação jurídica, no caso da convivência entre pessoas não casadas, justamente por estar em causa uma situação de união de facto, o tempo mínimo de convivência é considerado relevante pelo legislador para o efeito de reconhecimento de efeitos jurídicos
(assim, por exemplo, o artigo 1º, n.º 1, das citadas Lei n.ºs 135/99 e 7/2001 condicionam ambos os efeitos jurídicos que reconhecem à circunstância de se tratar de pessoas “que vivem em união de facto há mais de dois anos”. O problema não pode, pois, ficar resolvido logo com a mera invocação da existência de uma convivência há mais de dois anos, em condições análogas às dos cônjuges. Antes está, precisamente, em saber se uma situação de união de facto, assim caracterizada, pode ser tratada de forma diversa do casamento, para o efeito em causa. Ora, como este Tribunal tem reconhecido, existem diferenças importantes, que o legislador pode considerar relevantes, entre a situação de duas pessoas casadas, e que, portanto, voluntariamente optaram por alterar o estatuto jurídico da relação entre elas – mediante um “contrato celebrado entre duas pessoas de sexo diferente que pretendem constituir familía mediante uma plena comunhão de vida, nos termos das disposições deste Código”, como se lê no artigo 1577º do Código Civil –, e a situação de duas pessoas que (embora convivendo há mais de dois anos “em condições análogas às dos cônjuges”) optaram, diversamente, por manter no plano de facto a relação entre ambas, sem juridicamente assumirem e adquirirem as obrigações e os direitos correlativos ao casamento. Assim, como se salientou, por exemplo, também no referido Acórdão n.º 275/2002,
“não se pode excluir a liberdade do legislador de prever um regime jurídico específico para os cônjuges, visando, por exemplo, a prossecução de objectivos políticos de incentivo ao matrimónio”. Pelo que, “considerando desde logo a existência de especiais deveres entre os cônjuges”, se pode dizer, como se afirmou no citado Acórdão n.º 14/2000, que
“(...) de harmonia com o nosso ordenamento (ainda suportado constitucionalmente), o regime das pessoas unidas pelo matrimónio confrontadamente com a união de facto não permite sustentar que nos postamos perante situações idênticas à partida e, consequentemente, que requeiram tratamento igual.” Ora, um dos pontos em que o tratamento jurídico diverso entre ambas as situações pode relevar é, justamente, o das condições, ora em causa, para o reconhecimento do direito à pensão de sobrevivência no caso da união de facto. Importa, aliás, recordar que, por exemplo, quem vive em situação de união de facto também não é herdeiro (nem legitimário, nem legítimo) do de cujus com quem convivia, apenas tendo um direito a exigir alimentos da herança, se não os puder obter das pessoas referidas no artigo 2009º, nº 1, alíneas a) a d) do Código Civil. E, se é certo poder sustentar-se que os fundamentos e a natureza dos direitos à pensão de sobrevivência e a alimentos são distintos, não pode deixar de notar-se o paralelo entre a situação sucessória do convivente em união de facto – reduzida ao referido direito a exigir alimentos da herança – e a situação decorrente da norma em causa, quanto à condição questionada para atribuição da pensão de sobrevivência. Ora, nem esta diferenciação de tratamento pode considerar-se destituída de fundamento razoável ou arbitrária, nem, por outro lado, se baseia num critério que tenha de ser irrelevante, considerando o efeito jurídico visado. Na verdade, trata-se, aqui, tal como na distinção da posição sucessória do cônjuge e do convivente em união de facto, justamente de um daqueles pontos do regime jurídico em que o legislador trata mais favoravelmente a situação dos cônjuges, não só visando objectivos políticos de incentivo ao matrimónio – enquanto instituição social que tem por criadora de melhores condições para assegurar a estabilidade e a continuidade comunitárias –, mas também como reverso da inexistência de um vínculo jurídico, com direitos e deveres e um processo especial de dissolução, entre as pessoas em situação de união de facto. Tal diverso tratamento jurídico não pode considerar-se destituído de fundamento constitucionalmente relevante, não podendo divisar-se na norma em apreço violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Lei Fundamental.
8.A conclusão a que chegámos é certamente sufragada também por quem não considere que o legislador constitucional dispensa no artigo 36º, n.º 1, protecção à família, enquanto 'elemento fundamental da sociedade', distinguindo-a, no n.º 1 e no n.º 2 desse artigo, do casamento, incluindo igualmente uma família não fundada no casamento – e que, portanto, pode retirar-se desta imposição, em conjugação com o princípio da proporcionalidade, um parâmetro autónomo, susceptível de conduzir a decisões de inconstitucionalidade, como foi o caso do citado Acórdão n.º 275/2002. Mesmo, porém, à luz de outro entendimento do artigo 36º, n.º 1, da Constituição conjugado com o princípio da proporcionalidade – como o que fundou o citado aresto –, não se é, porém, conduzido a um juízo de inconstitucionalidade da norma ora em causa. É que, no presente caso, não se está perante uma exclusão de plano, e em abstracto, do direito do convivente, por contraposição ao direito do cônjuge, e antes a norma em questão (que não trata de qualquer indemnização, ou
“compensação” de danos pessoais), o artigo 8º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 322/90, de 18 de Outubro, visou justamente, pelo contrário, conceder também protecção, pela extensão de prestações na eventualidade da morte dos beneficiários do regime geral de segurança social, “às pessoas que se encontrem na situação prevista no n.º 1 do artigo 2020.º do Código Civil”. Mesmo o condicionamento da pensão à impossibilidade de obter alimentos (nos termos da norma em causa e do citado artigo 3º do Decreto Regulamentar n.º 1/94) representa, ainda, a prova, justamente, da necessidade de protecção da pessoa em causa, por não a poder obter dos seus familiares directos. E já se viu que existe fundamento constitucionalmente relevante para a distinção de tratamento em causa. Não pode, pois, afirmar-se que, desse condicionamento do direito à pensão de sobrevivência (tal como, por exemplo, da não atribuição da qualidade de herdeiro legítimo ou legitimário), resulte violação de um “dever de não desproteger, sem uma justificação razoável, a família que se não fundar no casamento”, que se afirmou no citado Acórdão n.º 275/2002, quanto àqueles pontos do regime jurídico que directamente contendam com a protecção dos seus membros
“e que não sejam aceitáveis como instrumento de eventuais políticas de incentivo
à família que se funda no casamento” (itálico aditado). Com o que não merece provimento o presente recurso. III. Decisão Com os fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional, decide: a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 8º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 322/90, de 18 de Outubro, na parte em que faz depender a atribuição da pensão de sobrevivência por morte do beneficiário da segurança social, a quem com ele convivia em união de facto, de todos os requisitos previstos no n.º 1 do artigo 2020º do Código Civil; b) Consequentemente, negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida; c) Condenar a recorrente em custas, com 15 (quinze) unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 9 de Abril de 2003 Paulo Mota Pinto Bravo Serra Maria Fernanda Palma (vencida, no essencial, todas as razões constantes da declaração de voto do Conselheiro Guilherme da Fonseca). José Manuel Cardoso da Costa Tem voto de vencido do Exmº Conselheiro Guilherme da Fonseca (conforme declaração que se junta e que me foi entregue, nos termos do Regulamento Interno do Tribunal), que não assina por ter deixado de fazer parte do Tribunal). Paulo Mota Pinto
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido, por entender que o recurso merecia provimento e devia ser proferido um juízo de inconstitucionalidade da norma artigo 8º, nº 1, do Decreto-Lei nº 322/90, de 8 de Outubro, por violação dos artigos 13º e 36º, nº
1, da Constituição, na parte em que faz depender a atribuição da pensão de sobrevivência por morte do beneficiário da segurança social a quem com ele convivia em união de facto de todos os requisitos previstos no nº 1 do artigo
2020º, com referência ao artigo 2009º, alínea a) a d), ambos do Código Civil.
As razões deste meu voto – e desconhecendo ainda o teor do acórdão que vai ser assinado pelos Exmºs Conselheiros vencedores – são as que fiz constar do projecto de acórdão que elaborei como primitivo Relator e aqui reproduzo:
“1. O acórdão recorrido [do Supremo Tribunal de Justiça] começou por enunciar as questões a solucionar e que são as seguintes:
1ª - requisitos para a atribuição da pensão de sobrevivência na situação de união de facto;
2ª - (in)verificação desses requisitos no caso sob recurso;
3ª - aplicação do disposto no nº 2 do artigo 508 do Código de Processo Civil;
4ª - inconstitucionalidade do artigo 8º do DL 322/90, de 18/10’.
Depois passou a conhecer por aquela ordem dessas questões, entendendo, quanto à primeira, que ‘o direito às prestações em causa depende da verificação de todos os requisitos previstos no nº 1 do artigo 2020º, com referência ao artigo 2009º, nº 1, als. a) a d), ambos do Código Civil, a alegar e provar em qualquer das duas referidas acções judiciais’, confirmando o decidido nas instâncias quanto à segunda e terceira questões e discorrendo deste modo quanto à última questão:
‘Por fim, defende a recorrente a inconstitucionalidade do artigo 8º do DL
322/90, de 18 de Outubro por violação do disposto no artigo 26º da Constituição da República Portuguesa e dos direitos e garantias dos cidadãos que vivem em união de facto face aos casados para efeito de atribuição de pensão por morte.
Argumenta a recorrente que:
«Os cônjuges são titulares das pensões de sobrevivência, destinada a compensar da perda dos rendimentos de trabalho determinada pela morte, não necessitando, para que tal lhes seja reconhecido, de mais nenhum outro requisito e independentemente de qualquer vencimento pessoal, ou estabilidade económica. Ora, apesar do artº 8º prever as situações de união de facto, ofende os direitos dos cidadãos abrangidos, quando faz depender a atribuição das pensões de sobrevivência da verificação dos requisitos do artº 2020º do CC, em vez de unicamente condicionar essa atribuição à verificação dos requisitos previstos nos artº 2º do decreto regulamentar 1/94 de 18/01, ou seja, a viver há mais de dois anos nas condições análogas às dos cônjuges, assim como é suficiente fazer prova do matrimónio. » .
Entendemos, no entanto, que, face ao vigente quadro jurídico-constitucional regulamentador da família não merecem acatamento estes argumentos tendentes a equiparar o casamento à união de facto.
Evidentemente que a união de facto - pese embora a crescente e justificada (como inegável fenómeno social) protecção de que tem sido alvo por parte do legislador
- não se pode equiparar ao casamento, pois daquela não decorrem os deveres e os efeitos exclusivos deste.
Tal não impede, como ensina Pereira Coelho, RLJ, ano 120-82 e sgs., que a união de facto se qualifique como relação de família, embora de conteúdo incomparavelmente mais pobre que a relação matrimonial, sendo certo que, por isso e na fase actual do nosso direito, se não deva considerar com tal cariz para a generalidade dos efeitos.
Daí que os efeitos gerais do casamento não sejam extensivos à união de facto, sob pena de eventual violação do principio constitucional da «protecção ao casamento» , consagrado no artigo 36º, nºs 1 e 2 da nossa Lei Fundamental - loc cit., página 84.
E daí também que, quando o legislador resolve intervir na área da união de facto, o faz sempre de uma forma específica e rigorosamente delimitadora. Como o fez recentemente a Assembleia da República, no âmbito em apreço, com a publicação da Lei 7/2001, de 11 de Maio, sobre a adopção de medidas de protecção das uniões de facto, onde se constata que o regime de acesso às prestações por morte do beneficiário, estabelecido no seu artigo 6º, continua a depender da verificação das «condições constantes no artigo 2020º do Código Civil» (nº 1), ficando também agora claro - em confirmação da orientação jurisprudencial que perfilhamos -- que, no caso de inexistência ou insuficiência de bens da herança, a acção deve ser logo dirigida contra a instituição competente (nº 2 ). Inexiste, portanto, a apontada inconstitucionalidade’
Desde já adiante-se que o decidido nesse acórdão quanto a tal questão de inconstitucionalidade não deve, nem pode, manter-se, à luz do entendimento que importa colher do recente acórdão nº 275/2002, deste Tribunal, publicado no Diário da República, II Série, nº 169, de 24 de Julho de 2002, envolvendo a análise de situações de união de facto, estáveis e duradouras, em condições análogas às dos cônjuges (e no caso dos autos vem demonstrado nas instâncias uma tal situação, a necessidade para a recorrente de lhe serem prestados alimentos, para sobreviver, e a impossibilidade de os obter da herança do falecido com quem vinha mantendo a união de facto, por não haver nela bens suficientes para poder suportar o pagamento dos alimentos).
2. No citado acórdão nº 275/2002, em que se julgou inconstitucional, ‘por violação do artigo 36º, nº 1, da Constituição conjugado com o princípio da proporcionalidade, a norma do nº 2 do artigo 496º do Código Civil, na parte em que, em caso de morte da vítima de um crime doloso, exclui a atribuição de um direito de ‘indemnização por danos não patrimoniais’ pessoalmente sofridos pela pessoa que convivia com a vitima em situação de união de facto, estável e duradoura, em condições análogas às dos cônjuges’, é lembrado o ‘enquadramento legal’ das situações do cônjuge e da pessoa que vive em união de facto, para se concluir, sobretudo, à luz das Leis nºs 135/99, de 28 de Agosto, e 7/2001, de 11 de Maio, que a ‘previsão legal da protecção das pessoas que convivem em situação de união de facto resultou, pois, consideravelmente alargada com estes diplomas a tanto destinados’, chegando a admitir-se, pelo menos, a discussão ‘se a união de facto deveria ou não ser qualificada igualmente como relação familiar’. E são também elencados os casos da ‘nossa jurisprudência constitucional’, em que se chegou a uma decisão de inconstitucionalidade, havendo pronuncia ‘sobre normas que previam uma diferenciação de tratamento entre pessoas casadas e pessoas em situação de união de facto’.
Depois, o acórdão nº 275/2002 abriu-se à perspectiva da violação do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição, para aferir, no caso, se a distinção entre pessoas casadas e pessoas em situação de união de facto se afigura destituída de fundamento razoável, aí se considerando ‘a diferenciação de tratamento que possa considerar-se verdadeiramente arbitrária’ e ‘aquela que se baseie num critério que não possa ser relevante, considerando o efeito jurídico usado’, chegando-se, por esta via, ‘a uma conclusão de inconstitucionalidade, por violação do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição’.
3. Percorrendo o caminho traçado por esse aresto e aderindo à sua doutrina, à mesma conclusão se chegará e se chega na hipótese sub juditio, pois, considerando o regime de protecção da união de facto actualmente em vigor, previsto na citada Lei nº 7/2001, não se vê onde possa estar a justificação para se reconhecer às pessoas que conviviam em união estável e duradoura, em condições análogas às dos cônjuges, variados direitos (cfr. o artigo 3º dessa Lei), que podem ter como destinatários também particulares, e ao mesmo tempo limitar aos cônjuges a protecção ampla que, na eventualidade de morte do beneficiário do regime geral da segurança social, deriva de tal regime (alínea e) do citado artigo 3º).
Com efeito, o questionado artigo 8º, nº 1, do Decreto-Lei nº 322/90, consagra o direito às prestações previstas nesse diploma, entre elas, as pensões de sobrevivência, e estende-o ‘às pessoas que se encontrem na situação prevista no nº 1 do artigo 2020º do Código Civil’, remetendo a lei (nº 2 do mesmo artigo) o procedimento respectivo e ‘a definição das condições de atribuição das prestações’ para um decreto regulamentar, que é o Decreto Regulamentar nº 1/94, de 18 de Janeiro (o artigo 2º deste diploma reconhece o direito às prestações, na situação de união de facto, à pessoa que vivia com o beneficiário ‘há mais de dois anos em condições análogas às dos cônjuges’, e o artigo 3º prevê o procedimento para o reconhecimento judicial da qualidade titular a tais prestações, ‘mediante acção declarativa interposta, com essa finalidade, contra a instituição de segurança social competente para a atribuição das mesmas prestações’).
Ora, o direito às prestações previstas no Decreto-Lei nº 322/90, complementado pelo diploma regulamentar, no âmbito da segurança social, maxime, as pensões de sobrevivência, ainda que o interessado tenha que socorrer-se de acção perante os tribunais civis (artigo 6º da Lei nº 7/2001), é um direito distinto do direito a alimentos da herança do falecido, que deriva do disposto no artigo 2020º do Código Civil.
O fundamento da atribuição do direito a alimentos a favor da pessoa que vivia com o falecido, em união de facto estável e duradoura (há mais de dois anos, como marido e mulher), e à custa dos bens da herança do falecido, caso existam e sejam suficientes, radica no estatuto das relações parafamiliares e o também direito a receber alimentos dos próprios parentes, pela pessoa sobreviva, desde que a situação patrimonial destes o possibilite, reside nos laços de parentesco familiar dessa pessoa.
Este é o quadro civilista, no âmbito da aplicação dos artigos 2020º e 2009º, a) a d).
Outra é a razão de ser da atribuição do direito à pensão de sobrevivência a haver pela pessoa sobrevivente da união de facto – uma vida comum em condições análogas às dos cônjuges – da instituição de segurança social competente para essa atribuição, pois a razão deriva aqui do aforro que foi realizado pela pessoa falecida, no decurso de toda uma vida de trabalho, por via dos descontos nas remunerações que foram sendo legalmente e pontualmente depositados à ordem dessa instituição.
Este direito à pensão de sobrevivência e aquele direito a alimentos à custa da herança do falecido ou à custa dos familiares da pessoa sobreviva são realidades absolutamente distintas, são direitos autónomos, conquanto paralelos e até complementares (não se vê, aliás, que haja impedimento a que, reconhecido e obtido o direito à pensão de sobrevivência, estando ela a ser paga, o interessado não possa ainda pedir alimentos, no quadro da lei civil, se a pensão for insuficiente para uma sobrevivência condigna).
Como resume França Pitão, ao tratar da matéria da equiparação em caso de morte do beneficiário do regime geral de segurança social e da lei (in ‘União de Facto no Direito Português’, Almedina, págs. 177 e seguintes):
‘pelo recurso ao elemento sistemático, todas as pessoas que estão nas condições previstas no artigo 2020º do Código Civil têm, em qualquer circunstância, direito às prestações por morte. Tal significa que, independentemente de a herança ter ou não ter bens que suportem o encargo de alimentos, as pessoas que estejam nas condições previstas no artigo 2020º têm sempre direito às prestações por morte do beneficiário’.
E mais à frente, à luz do regime da Lei nº 135/99, que passou depois para a Lei nº 7/2001, opina França Pitão:
‘Pelo que por agora nos interessa [o que vem previsto na citada alínea f), ou seja, protecção na eventualidade de morte do beneficiário de segurança social], verifica-se que a lei estabeleceu um princípio geral de aplicabilidade do regime citado a todos aqueles que reunam as condições previstas no artigo 2020º do Código Civil, ou seja, aqueles que no momento da morte de pessoa não casada ou separada judicialmente de pessoas e bens, viva com ela há mais de dois anos em condições análogas às dos cônjuges, o mesmo é dizer, em união de facto. Da formulação legislativa pode extrair-se a ideia de que é hoje reconhecível ao companheiro sobrevivo gozar simultaneamente do direito a alimentos, por via do disposto no artigo 2020º do Código Civil, por um lado, e do direito às prestações sociais por morte do seu companheiro, por outra, face ao estabelecimento do citado princípio geral.
Como pode chegar-se a tal conclusão?
É evidente, em primeira linha, que a previsão do preceito da lei civil mantém-se incólume, na medida em que o companheiro sobrevivo poderá sempre requerer que lhe sejam prestados alimentos através dos rendimentos dos bens da herança, bastando para tal que preencha os requisitos ali estabelecidos e faça prova, quer da necessidade desses alimentos para si, quer da possibilidade de serem prestados através das forças da herança, face à aplicação do critério geral da medida dos alimentos, decorrente do artigo 2004º do mesmo Código.
Por outro lado, e em segundo lugar, o novo preceito estabelece que o companheiro sobrevivo beneficiará das prestações sociais desde que reuna as condições previstas no artigo 2020º do Código Civil. Ora, seguramente, tal preceito não se refere à necessidade do alimentando nem às possibilidades do alimentante, já que estas condições decorrem daquele outro princípio geral do artigo 2004º do mesmo diploma. Bastará, por isso, que se faça a prova do preenchimento dos requisitos legalmente impostos para a eficácia da união de facto, sendo irrelevante, nesta matéria, saber se o companheiro sobrevivo necessita ou não dessas prestações para assegurar a sua sobrevivência ou como mero complemento a esta. Efectivamente, ao estabelecer-se o acesso a prestações sociais pretende-se tão só permitir ao beneficiário um complemento para a sua subsistência, decorrente do ‘aforro’ que foi efectuado pelo seu falecido companheiro, ao longo da sua vida de trabalho, mediante os descontos mensais depositados à ordem da instituição de segurança social. Por isso, a esta é indiferente saber se o potencial beneficiário tem ou não meios de subsistência próprios, já que as referidas prestações resultam de um direito que lhe assiste incondicionalmente, para além das próprias necessidades comprovadas do seu titular’ (loc. cit. pág.
189 e 190).
‘As políticas sociais da comunidade europeia tendem – escreve ainda o mesmo Autor - a ter em conta a defesa da família, nomeadamente, com a crescente valorização da flexibilidade do regime laboral, o que reflexamente se traduz na viabilização de um maior equilíbrio entre a vida profissional e a vida familiar. Na verdade, as políticas de coesão social são no sentido de favorecer a família, sendo que os próprios direitos de cidadania europeia decorrentes do Tratado de Maastricht, ao valorizarem a integração política dos trabalhadores migrantes da comunidade vêm igualmente proporcionar a integração da família respectiva no meio envolvente e assim facilitar o seu equilíbrio e unidade.
A família é um dos elementos mais decisivos do chamado ‘modelo social europeu’, não podendo ignorar-se que, do ponto de vista económico, é hoje considerada mais como unidade de consumo do que como unidade económica activa, e do ponto de vista pedagógico e legal, evoluiu de um modelo institucional puro, com base no casamento, para vários tipos de família de facto, o que, no fundo, não nos permite definir família de forma consensual, tendo em conta os vários modelos que vão sendo adoptados pelos vários Estados’ (loc. cit. pág. 169).
Forçoso é, portanto, concluir que o entendimento a que aderiu o acórdão recorrido para interpretar e aplicar o questionado artigo 8º do Decreto-Lei nº
322/90, fazendo depender o reconhecimento do direito às prestações ou pensões, maxime, o direito à pensão de sobrevivência, da verificação de todos os requisitos previstos no nº 1 do artigo 2020º, com referência ao artigo 2009º, a) a d), ambos do Código Civil, é colidente com a Constituição, na medida em que viola o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º, em conjugação com o nº
1 do artigo 36º, reconhecendo a todos o direito de constituir família e de contrair casamento em condições de plena igualdade (e a esta conclusão é indiferente saber qual o modo e o meio processual a seguir para o reconhecimento de tal direito).
Isto porque a diferenciação entre o cônjuge sobrevivo e a pessoa sobreviva que convivia em união de facto estável e duradoura, para efeitos de, no âmbito de regimes de protecção social, reconhecer aquele, sem mais, o direito à pensão de sobrevivência, e àquela apenas esse direito após a verificação de todos os requisitos previstos nos citados artigos 2009º, a) a d), e 2020º, nº 1, do Código Civil, é destituída de fundamento razoável.
Do pensamento do legislador de 1977 que, com o Decreto-Lei nº 496/77, de 25 de Novembro, introduziu alterações ao Código Civil, incluindo aqueles citados artigos, veio dizer que, em matéria de união de facto, não se foi ‘além de um esboço de protecção’ e que se foi ‘intencionalmente pouco arrojado’, pois havia que ‘não estimular as uniões de facto’ (sic), para o pensamento do legislador de
1999 e 2001 vão mais de vinte anos, que representam um abismo, período em que a realidade social, no quadro do relacionamento de pessoas de sexo diferente ou até do mesmo sexo, transmudou-se quase radicalmente.
A leitura que no acórdão recorrido se faz dessa realidade, dizendo-se que a união de facto ‘não se pode equiparar ao casamento’, mas esquecendo a equiparação à família, à luz do nº 1 do artigo 36º da Constituição, que tanto decorre do casamento, como da união de facto, ainda está a situar-se no mesmo quadro mental do legislador de 1977”.
Guilherme da Fonseca