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Proc. n.º 577/03
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Por acórdão de 28 de Abril de 2003 (fls. 402 e seguintes), o Tribunal da Relação do Porto rejeitou o recurso interposto pelo banco A., SA. da sentença do juiz do 1º Juízo do Tribunal do Trabalho de Braga que, entre o mais, manteve a decisão da Inspecção-Geral do Trabalho de aplicação ao Banco da coima de
1.400.000$00, pela prática de uma contra-ordenação muito grave.
Nesse acórdão, disse o Tribunal da Relação do Porto:
“[...]
[...] o recorrente, melhor dizendo, o banco A., SA. NIPC ------------, na qualidade de sociedade que incorporou por fusão o banco A., SA., NIPC
--------------, requereu se declarasse a extinção do presente procedimento contra-ordenacional, por extinção da sociedade arguida. Para tanto, alegou-se que, por escritura pública, lavrada em 19.12.02, operou-se a fusão, por incorporação, do banco A., SA. no banco A., SPGS, e, com o registo da referida fusão no registo comercial, aquele Banco extinguiu-se ex vi do art.
112º, alínea a), do Cód. Soc. Comerciais. Juntou prova documental, opondo-se o Ministério Público à extinção do procedimento.
[...] Sendo inquestionável que, por escritura pública, operou-se a fusão, por incorporação, do banco A., SA. no banco A., SPGS, tendo-se efectuado o respectivo registo, entendemos, no entanto, que esta situação não determina a extinção do presente procedimento contraordenacional. Sufragamos, assim, a orientação constante do acórdão da Relação de Coimbra, de
31.01.02, in Col. Jur., 2002, Tomo I, págs. 62-63. Neste aresto, e a propósito de questão idêntica, decidiu-se que, «tendo uma sociedade bancária sido incorporada, por fusão, numa outra, esta é responsável pelos ilícitos contra-ordenacionais cometidos pela primeira, não se extinguindo com o acto de fusão o procedimento contra-ordenacional que seja devido». Na verdade, como ali se escreve, «o art. 112º, a), do CSC, ao determinar a extinção das sociedades fundidas, não deixa de transmitir para a sociedade incorporante (ou para a nova sociedade resultante da fusão) todos os direitos e obrigações da(s) sociedade(s) extinta(s). O que significa que, praticada uma infracção por esta, é aquela responsável, como se a infracção tivesse sido por si cometida. A aludida responsabilidade, por força da lei, passa da sociedade que fundou, para aquela em que se incorporou (ou que de novo nasceu)». E, salvo o devido respeito, não se vislumbra onde tal interpretação ofenda o art. 30º, nº 3, da CRP, pois que o normativo constitucional invocado refere-se, exclusivamente, às penas, entendendo-se como tais as sanções aplicadas em processo criminal, não sendo aplicável, no caso em apreço, por estar em causa uma sanção contra-ordenacional.
[...].”
2. Inconformado com o mencionado acórdão, o banco A., SA. dele veio interpor recurso para o Tribunal Constitucional, nos seguintes termos (fls. 408 e seguinte):
“[...] I - Considerou que o artigo 112º, a) do Código das Sociedades Comerciais, ao determinar a extinção da sociedade fundida, não deixa de transmitir para a sociedade incorporante todos os direitos e obrigações da sociedade extinta, incluindo a responsabilidade por infracções contra-ordenacionais cometidas por esta. Tal interpretação do referido artigo 112º, a) do Código das Sociedades Comerciais, é materialmente inconstitucional por violação do artigo 30º, nº 3 da Constituição da República Portuguesa, na medida em que implica uma subrogação da responsabilidade contra-ordenacional, incluída na referida norma constitucional. II - O supra referido Acórdão do Tribunal da Relação do Porto é recorrível, por ter aplicado normas inconstitucionais, artigo 70°, nº 1, alínea b) da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro. O Recorrente tem legitimidade para recorrer, nos termos do nº 1, alínea b) e do nº 2 do artigo 72° da citada Lei nº 28/82. Pretende-se pois que o Tribunal aprecie a inconstitucionalidade do artigo 112º, a) do Código das Sociedades Comerciais. O Recorrente considera que foi violado o artigo 30º, nº 3 da CRP. Para efeitos do disposto no nº 2 do artigo 75°-A da Lei n° 28/82 de 15 de Novembro, diz-se ainda que a questão de inconstitucionalidade a cuja apreciação ora se pretende sujeitar foi anteriormente suscitada na seguinte peça processual: a) Requerimento apresentado ao Tribunal da Relação do Porto em 21 de Março de
2003.
[...].”
O recurso foi admitido por despacho de fls. 410.
3. Nas alegações que produziu junto do Tribunal Constitucional (fls. 413 e seguintes), o banco A., SA. formulou as seguintes conclusões:
“1. A fusão, por incorporação, de uma sociedade comercial noutra, com a consequente transmissão do património da sociedade incorporada em favor da sociedade incorporante, após o registo da referida fusão na inscrição feita na competente Conservatória do Registo Comercial, conduz à extinção da sociedade incorporada ex vi do disposto no artigo 112°, alínea a), do Código das Sociedades Comerciais.
2. Com a extinção da sociedade incorporada, extingue-se também a responsabilidade contra-ordenacional.
3. Nos termos do disposto no artigo 2° do Regime Geral das Contra-Ordenações Laborais, aprovado pela Lei n° 116/99, de 4 de Agosto, a estas contra-ordenações aplica-se subsidiariamente o regime geral das contra-ordenações que consta do Dec-Lei n° 433/82, de 27 de Outubro, com as alterações introduzidas pelo Dec-Lei n° 356/89, de 17 de Outubro e pelo Dec-Lei n° 244/95, de 14 de Setembro.
4. De harmonia com o preceituado no artigo 32° do citado Dec-Lei n° 433/82, as normas do Código Penal aplicam-se no que respeita à fixação do regime substantivo das contra-ordenações.
5. Nos termos do artigo 127° do Código Penal a responsabilidade criminal extingue-se pela morte.
6. E nos termos do artigo 128° do mesmo Código a morte do agente extingue, tanto o procedimento criminal, como a pena ou a medida de segurança.
7. O princípio da não transmissibilidade da responsabilidade criminal ou contravencional, consagrado nas citadas disposições do Código Penal, e no artigo
30°, nº 3, da Constituição da República, aplica-se também no âmbito do direito contra-ordenacional ex vi do disposto nos supra referidos artigos 2° do regime aprovado pela Lei n° 116/99 e 32° do Dec-Lei n° 433/82.
8. O que quer dizer que, também nas contra-ordenações, a morte do agente (se se tratar de uma pessoa singular) ou a sua extinção (se se tratar de uma pessoa colectiva) têm como consequência a extinção da responsabilidade e do procedimento contra-ordenacionais.
9. O que bem se compreende por não haver contra-ordenação sem negligência e a negligência, como elemento subjectivo da infracção, não poder separar-se da pessoa do agente.
10. Tendo-se extinguido o agente da infracção noticiada, nos termos supra mencionados, extinguiu-se também, e simultaneamente, a responsabilidade pela contra-ordenação a que o auto de notícia alude, bem como o respectivo procedimento contra-ordenacional [...].
11. A condenação da sociedade incorporante conduziria sempre a uma situação em que a entidade jurídica condenada nem sequer havia sido acusada no processo, o que não deixa de ser contrário a princípios basilares do direito constitucional e criminal.
12. O artigo 112º, alínea a), parte final do Código das Sociedades Comerciais, quando estatui a transmissão de todos os «direitos e obrigações para a sociedade incorporante ou para a nova sociedade», reporta-se apenas aos direitos e obrigações de natureza cível e não penal ou contra-ordenacional.
13. O artigo 112º, alínea a) do Código das Sociedades Comerciais, quando interpretado no sentido defendido no Acórdão sob recurso, isto é, de que a responsabilidade por contra-ordenações imputadas à sociedade incorporada se transmite para a sociedade incorporante é materialmente inconstitucional, por violação do artigo 30º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa.”
4. O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional contra-alegou (fls. 466 e seguintes), apresentando as seguintes conclusões:
“1 - Sendo diferente a natureza do direito penal e do direito de mera ordenação social, os princípios fundamentais inerentes ao primeiro têm aplicação no segundo.
2 - As normas e os princípios constitucionais com relevo em matéria penal valem, no essencial, no campo contra-ordenacional.
3 - A não transmissão da responsabilidade penal consagrada no artigo 30°, n° 3 da Constituição abarca a matéria referente às sanções aplicadas pela prática de contra-ordenações.
4 - Sendo realidades diferentes, não são automaticamente aplicáveis às pessoas colectivas todas as normas e regras de que são fundamentalmente destinatárias as pessoas singulares, tendo-se que atender à específica natureza e características daquelas.
5 - A fusão por incorporação de uma sociedade noutra, sendo algo substancialmente diferente da sua dissolução com liquidação, não é equiparável à morte de pessoa singular, para efeitos de extinção de responsabilidade penal ou contra-ordenacional.
6 - Não viola, por isso, a norma constitucional da insusceptibilidade da transmissão da responsabilidade aceitar que a recorrente tem que responder pela prática da contra-ordenação cometida pela sociedade que incorporou.
7- Termos em que deverá improceder o presente recurso.”
Cumpre apreciar.
II
5. O artigo 112º, alínea a), do Código das Sociedades Comerciais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 262/86, de 2 de Setembro, dispõe como segue:
“Artigo 112º
(Efeitos do registo) Com a inscrição da fusão [de sociedades] no registo comercial: a) Extinguem-se as sociedades incorporadas ou, no caso de constituição de nova sociedade, todas as sociedades fundidas, transmitindo-se os seus direitos e obrigações para a sociedade incorporante ou para a nova sociedade;
[...].”
Decorre da delimitação do objecto do recurso a que procedeu o recorrente (supra, 2. e 3.) que a questão de constitucionalidade de que cumpre apreciar se cinge à norma do referido artigo 112º, alínea a), interpretada no sentido de que, com a inscrição da fusão de sociedades no registo comercial, se extingue a sociedade incorporada, transmitindo-se a responsabilidade por infracções contra-ordenacionais cometidas por esta para a sociedade incorporante.
Segundo o recorrente, tal interpretação ofenderia o disposto no artigo 30º, n.º 3, da Constituição, que determina que a responsabilidade penal é insusceptível de transmissão.
Dado que nenhuma questão prévia obsta ao conhecimento do objecto do presente recurso, vejamos então se o recorrente tem razão.
Saliente-se, de todo o modo, e antes de mais, que o Tribunal Constitucional não tem competência para aferir se a interpretação que constitui o objecto do presente recurso é a que efectivamente decorre do disposto no artigo 112º, alínea a), do Código das Sociedades Comerciais. Dito de outro modo, o Tribunal Constitucional não pode proceder à interpretação autêntica deste preceito legal, devendo antes limitar-se a averiguar se ofende algum preceito constitucional a interpretação que ficou identificada (e que foi acolhida pelo tribunal recorrido).
6. O artigo 112º, alínea a), do Código das Sociedades Comerciais insere-se sistematicamente nas disposições do Código dedicadas à fusão de sociedades (artigos 97º e seguintes).
O instituto da fusão de sociedades foi, antes do Código das Sociedades Comerciais, regulado nos artigos 124º a 127º do Código Comercial e, posteriormente, no Decreto-Lei n.º 598/73, de 8 de Novembro. Como assinala Miguel J. A. Pupo Correia (Direito Comercial, 8ª ed., Lisboa, 2003, p. 660), este diploma constitui “uma antecipação, mediante aproveitamento de estudos já realizados, da reforma do direito das sociedades comerciais que veio a traduzir-se no CSC” e consagra um regime da fusão substancialmente igual ao que hoje vigora.
Observa Abílio Neto (Código das Sociedades Comerciais, 2ª ed., Lisboa, Março 2003, p. 343-344), em anotação ao artigo 97º do Código das Sociedades Comerciais:
“A fusão – que o n.º 1 deste artigo [97º] define como a reunião de duas ou mais sociedades numa só – pode realizar-se por incorporação duma sociedade noutra sociedade, isto é, mediante a transferência global do património de uma sociedade para outra e a atribuição aos sócios da primeira de partes, quotas ou acções da última, ou por constituição de uma nova sociedade
(fusão-constituição), ou seja, as sociedades que se fundem transmitem os seus patrimónios para uma nova sociedade, atribuindo-se aos seus sócios partes, quotas ou acções, da nova sociedade (n.º 4 deste art. 97º). Na fusão-incorporação, a sociedade ou sociedades incorporadas extinguem-se como pessoas jurídicas, e na fusão-constituição, todas as sociedades intervenientes na fusão desaparecem para dar lugar a uma nova sociedade (art. 97º, n.º 4); em qualquer caso, a operação de fusão coenvolve uma transmissão universal de relações patrimoniais (consistente na transmissão do património das sociedades extintas para a sociedade incorporante ou a nova sociedade, consoante a modalidade) e de relações organizativo-societárias (consistente na atribuição aos sócios das sociedades extintas de participações no capital da sociedade incorporante ou nova sociedade).”
Para efeitos do presente recurso, interessa apenas considerar a primeira das modalidades de fusão – a fusão-incorporação –, pois que foi esta a realidade com que se confrontou o tribunal recorrido, ao decidir a questão da transmissibilidade da responsabilidade contra-ordenacional da sociedade incorporada para a sociedade incorporante (ora recorrente).
Sobre a fusão-incorporação diz Luís Manuel Teles de Menezes Leitão (“Fusão, cisão de sociedades e figuras afins”, in Fisco, n.º 57, 1993, p. 18 e seguintes, p. 21) o seguinte:
“A fusão por incorporação [...] pressupõe que uma sociedade incorporante, normalmente mais dinâmica sobre o plano económico, absorva uma ou mais sociedades diferentes. Para a sociedade absorvente a operação traduz-se, na maioria dos casos, por um aumento de capital por entradas em espécie
(consistentes no património das sociedades incorporadas), uma vez que aquela, a menos que tenha acções ou quotas próprias para distribuir, tem que emitir novas participações sociais para remuneração das sociedades incorporadas. Concomitantemente, podem verificar-se outras modificações estatutárias na sociedade incorporante, tais como a alteração do seu objecto social ou da sua denominação social. Para as sociedades incorporadas, a fusão implica [...] uma dissolução sem liquidação, com extinção das respectivas personalidades jurídicas.”
Esta referência à dissolução da sociedade incorporada não é, porém, pacífica na doutrina. Assim, Miguel J. A. Pupo Correia (ob. cit., p. 661), citando J. G. Pinto Coelho, entende que, embora com a fusão desapareça a personalidade jurídica das sociedades fundidas ou incorporadas, estas não se dissolvem, pois que continuam a sua existência em condições diversas, designadamente no âmbito da sociedade incorporante.
Também Raúl Ventura (Comentário ao Código das Sociedades Comerciais: Fusão, cisão, transformação de sociedades, Coimbra, 1990, p. 224-228) conclui, nomeadamente atendendo às circunstâncias de o Código das Sociedades Comerciais não incluir a fusão nas causas de dissolução das sociedades e de a dissolução pressupor a liquidação (que manifestamente não ocorre com a fusão), que “na fusão ou só as sociedades incorporadas ou todas as sociedades participantes se extinguem (conforme respectivamente se trate de fusão por incorporação ou de fusão por constituição de nova sociedade) sem dissolução e sem liquidação, nos sentidos técnico-jurídicos destas palavras”.
Seja como for, a discussão sobre a questão de saber se a fusão implica dissolução da sociedade fundida não parece assumir grande relevo para a apreciação da questão de constitucionalidade sub judice. Na verdade, quando se afirma que existe tal dissolução (cfr. Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, ob. cit., p. 30, nota 6), pretende-se apenas significar que com a deliberação de fusão se inicia um processo extintivo, sendo a dissolução o primeiro acto desse processo. Não se visa afirmar a existência de um processo de liquidação nem tão-pouco negar a já referida “continuação da existência das sociedades fundidas ou incorporadas em condições diversas”. E só estes últimos pontos são, como veremos, decisivos para a resolução da questão de constitucionalidade que nos ocupa.
7. O processo de fusão traduz-se, como assinala António Pereira de Almeida (Sociedades Comerciais, 3ª ed., Coimbra, 2003, p. 505 e seguintes), num processo complexo – mas “aligeirado quando se trata da incorporação de uma sociedade totalmente pertencente à sociedade incorporante (art. 116º)” –, que engloba, em síntese, as seguintes fases: elaboração, pelas administrações das empresas a fundir, “de um projecto de fusão de onde constem todos os elementos necessários ou convenientes para o perfeito conhecimento da operação, tanto no aspecto jurídico como económico”; submissão do projecto de fusão “ao órgão de fiscalização, quando exista, e a Revisores Oficiais de Contas independentes de todas as sociedades intervenientes, nomeados por cada uma delas, ou, se elas nisso tiverem acordado, por um ROC ou sociedade de revisores designados pela Câmara dos Revisores Oficiais de Contas”, devendo os revisores elaborar parecer fundamentado; registo do projecto de fusão; convocatória das assembleias gerais das sociedades participantes e consulta de documentos relacionados com a fusão por sócios e credores; realização das assembleias gerais das sociedades envolvidas; em caso de aprovação da fusão, realização da respectiva escritura pública, averbamento ao registo das deliberações que aprovaram a fusão e, bem assim, feitura das publicações; possibilidade de os credores de cada uma das sociedades envolvidas na fusão lhe deduzirem oposição judicial; não tendo havido oposição ou sendo esta julgada improcedente, registo da fusão.
Ora, um dos efeitos do registo da fusão a que alude o artigo 112º do Código das Sociedades Comerciais é precisamente a transmissão de direitos e obrigações a título universal da sociedade incorporada para a sociedade incorporante (cfr. Raúl Ventura, ob. cit., p. 235-238). E, “[p]or esta sucessão ser universal, apresenta duas características essenciais, que nalguns autores aparecem designadas por contextualidade e expansividade. A primeira característica significa que o efeito se produz num só momento e por um só acto. A segunda exprime a inclusão no sentido sucessório de todas as relações jurídicas componentes do património transmitido, embora desconhecidos ou de algum modo supervenientes”.
8. Analisado, nos seus traços gerais, o instituto da fusão de sociedades, o seu processo e os seus efeitos (transmissão de direitos e obrigações), vejamos agora se a interpretação perfilhada pelo tribunal recorrido de algum modo afronta a proibição constitucional de transmissão da responsabilidade penal e contra-ordenacional, como sustenta o recorrente.
Interessa analisar, para este efeito, o artigo 30º, n.º 3, da Constituição.
A propósito deste artigo 30º, n.º 3, que na anterior redacção estatuía a insusceptibilidade de transmissão das penas (e não da responsabilidade penal, como agora sucede), afirmam J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra,
1993, p. 197-198):
“As penas são intransmissíveis (n.º 3), estando sujeitas ao princípio da pessoalidade, o que implica: (a) extinção da pena e do procedimento criminal com a morte do agente; (b) proibição da transmissão da pena para familiares, parentes ou terceiros; (c) impossibilidade de subrogação no cumprimento das penas. A intransmissibilidade das penas não obsta à transmissibilidade de certos efeitos patrimoniais conexos das penas (indemnização de perdas e danos emergentes de um crime), nos termos da lei civil (cfr. Cód. Penal, art. 128º).”
Um dos problemas que, a propósito do referido artigo 30º, n.º 3 – quer na sua redacção anterior, quer na sua redacção actual –, imediatamente se coloca, é o de saber se a proibição nele contemplada se estende também à responsabilidade contra-ordenacional, até porque o artigo 32º, n.º 10, na sua letra, se limita a assegurar ao arguido, nos processos de contra-ordenação, os direitos de audiência e defesa (nada dispondo sobre a questão da transmissão da responsabilidade).
Todavia, este problema só assumiria autêntica relevância no caso de se concluir que tal proibição se justificaria perante situações em que, não obstante a extinção da personalidade jurídica da sociedade que praticou a infracção, “são aproveitados os elementos pessoais, patrimoniais e até imateriais” dessa sociedade (cfr. Raúl Ventura, ob. cit., p. 230).
Ao colocar a questão deste modo, não se pretende afirmar que a proibição constitucional de transmissão da responsabilidade penal apenas poderia ter relevância nos casos em que se comprovasse não existir fuga ou tentativa de fuga a essa responsabilidade: dito de outro modo, não pode ser invocado contra a tese do recorrente o argumento segundo o qual tal tese permitiria fugas à responsabilidade penal.
Com efeito a questão é outra. E traduz-se em saber se a proibição estabelecida no artigo 30º, n.º 3, da Constituição – admitindo, por hipótese, a sua extensão aos casos de responsabilidade contra-ordenacional – tem em vista situações em que o “transmissário” só formalmente é um terceiro, pois que, de facto, o agente da infracção como que se perpetua, por via da incorporação ou absorção verificada, nesse transmissário.
Ora, só é possível responder a tal questão se se atender à teleologia da proibição de transmissão da responsabilidade penal. Que terá o legislador constituinte pretendido evitar com tal proibição? Que sujeitos terá querido proteger?
9. Parece evidente que, com tal proibição – que se encontra reflectida nos artigos 127º e 128º do Código Penal –, se dá ainda guarida ao princípio da culpa, decorrente da dignidade da pessoa humana (artigo 1º da Constituição). Responsabilizar alguém por facto praticado por outrem significaria prescindir, em relação ao visado, da verificação do dolo ou negligência e da censurabilidade da própria conduta. A pena ficaria desprovida de qualquer finalidade de prevenção, retribuição ou ressocialização, perdendo qualquer fisionomia distintiva.
Tão justificada se apresenta a proibição que dificilmente se encontram, na doutrina, teorizações a propósito dela. Apenas o princípio da individualidade da responsabilidade criminal (cfr. artigo 11º do Código Penal), também relacionado com o da pessoalidade das penas, tem merecido maiores desenvolvimentos.
Ora, no caso de fusão por incorporação, a transmissão da responsabilidade contra-ordenacional à sociedade incorporante só formalmente é uma transmissão. Como sustenta o Ministério Público nas suas contra-alegações
(supra, 4.), “a fusão por incorporação de uma pessoa colectiva noutra não conduz a uma verdadeira extinção da sociedade equiparável à morte de pessoa singular, já que subsiste a realidade sociológica que justifica a responsabilização pela prática da contra-ordenação”.
A circunstância de, nos casos de fusão por incorporação, não existir liquidação (nem dissolução, se com este termo se pretender significar a abertura do processo de liquidação) da sociedade incorporada, aliada à do aproveitamento dos elementos pessoais, patrimoniais e imateriais da sociedade extinta, permite concluir que tal realidade não merece a protecção dispensada pela norma do artigo 30º, n.º 3, ainda que se admita a sua aplicação no âmbito da responsabilidade contra-ordenacional.
Com isto não se nega a aplicação da norma do artigo 30º, n.º 3, às pessoas colectivas. Apenas se rejeita a sua aplicação automática a situações de extinção de pessoas colectivas que substancialmente não sejam equivalentes à morte de pessoas singulares e que, por isso, não possam estar abrangidas pelo fim de protecção daquela norma.
III
10. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 112º, alínea a), do Código das Sociedades Comerciais, interpretada no sentido de que, com a inscrição da fusão de sociedades no registo comercial, se extingue a sociedade incorporada, transmitindo-se a responsabilidade por infracções contra-ordenacionais cometidas por esta para a sociedade incorporante;
b) Consequentemente, negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida no que se refere à questão de constitucionalidade.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em vinte unidades de conta.
Lisboa, 16 de Março de 2004 Maria Helena Brito Artur Maurício Rui Manuel Moura Ramos Carlos Pamplona de Oliveira (vencido, conforme declaração de voto junta) Luís Nunes de Almeida
DECLARAÇÃO DE VOTO
A razão da minha discordância resume-se ao seguinte: O presente acórdão visa averiguar a conformidade constitucional da norma constante do artigo 112º alínea a) do Código das Sociedades Comerciais interpretada no sentido de que ao determinar a extinção da sociedade fundida não deixa de transmitir para a sociedade incorporante a responsabilidade por infracção contra-ordenacionais cometidas por aquela, nos casos de fusão-incorporação de sociedades comerciais. E soluciona essa questão julgando, em suma, que nesses casos não ocorre a extinção da pessoa colectiva incorporada, motivo pelo qual não poderá falar-se, por falta do necessário pressuposto, em transmissão da responsabilidade contra-ordenacional e, em consequência, em ofensa ao preceito constitucional que proíbe tal resultado. Estou em completo desacordo com essa análise, pois é a lei – o citado artigo
112º alínea a) do Código das Sociedades Comerciais – que impõe, como efeito da fusão-incorporação, a extinção da sociedade, sendo por outro lado certo que o Tribunal recorrido aplicou a norma aqui impugnada com este preciso sentido, de resto enunciado no ponto 5. do acórdão. Não pode portanto, em meu entender, radicar-se numa ficcionada não extinção da sociedade a solução do problema. Ora, a verdade é que a Constituição (n. 10 do artigo 32º) parece querer estender certas garantias de natureza penal aos processos de contra-ordenação e que, entre as garantias desta natureza, sobressai a da intransmissibilidade da responsabilidade penal – artigo 30º n. 3 da Constituição. Por isso, entendo que não é possível chegar à decisão que o acórdão alcançou sem explicar por que razão esta garantia não ocorre nos casos de responsabilidade contra-ordenacional, isto é, sem distinguir entre a responsabilidade penal e a responsabilidade contra-ordenacional, ou sem analisar a transmissibilidade da responsabilidade contra-ordenacional em contraposição à de certos efeitos patrimoniais da condenação, raciocínio que foi tido por desnecessário na tese que fez vencimento.
Carlos Pamplona de Oliveira