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Processo n.º 703/12
2.ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Maria Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Tribunal da Relação de Coimbra, a Relatora proferiu a Decisão Sumária n.º 485/2012:
«I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, em que é recorrente A., S.A. e recorrida CP – Comboios de Portugal, E.P.E., foi interposto recurso, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão proferido, em conferência, pela 1ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra, em 11 de setembro de 2012 (fls. 132 a 136), para que seja apreciada “a inconstitucionalidade da norma extraída do artigo 66º do Código de Processo Civil, em conjugação com a alínea e) do nº 1, do artigo 4º, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, com a interpretação com que foi aplicada na decisão recorrida”, que se traduz em “excluir da jurisdição administrativa relações entre as partes, que assentam e decorrem de um contrato de natureza pública” (fls. 145), por violação da reserva de jurisdição administrativa, prevista no n.º 3 do artigo 112º da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Cumpre apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
2. Mesmo tendo o recurso sido admitido por despacho do tribunal “a quo”, proferido a 03 de outubro de 2012 (cfr. fls.146), com fundamento no n.º 1 do artigo 76º da LTC, essa decisão não vincula o Tribunal Constitucional, conforme resulta do n.º 3 do mesmo preceito legal, pelo que sempre seria forçoso apreciar o preenchimento de todos os pressupostos de admissibilidade do recurso previstos nos artigos 75º-A e 76º, n.º 2, da LTC.
Sempre que o Relator constate que não foram preenchidos os pressupostos de interposição de recurso, pode proferir decisão sumária de não conhecimento, conforme resulta do n.º 1 do artigo 78º-A da LTC.
3. A apreciação de um recurso de constitucionalidade pressupõe que o respetivo objeto corresponda a uma norma jurídica ou interpretação normativa que tenha sido efetivamente aplicada pelo tribunal recorrido, conforme decorre do artigo 79º-C da LTC. Ora, a decisão recorrida não afirma, em momento algum, que o crédito que é reivindicado pela recorrida se fundamente em “relações entre as partes, que assentam e decorrem de um contrato de natureza pública” (fls. 145). Bem, pelo contrário, a decisão recorrida nega veementemente essa tese, então esgrimida pela ora recorrente, considerando que o crédito em causa decorre de um contrato sujeito ao Direito Privado (e não ao Direito Administrativo). Senão, vejam-se estas passagens mais elucidativas:
«Ou seja, estamos fora do âmbito de uma relação jurídica administrativa, pelo que não tem aplicação o disposto nas als. e) e f) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF e, por conseguinte, não cabe a competência para o conhecimento e decisão dos presentes autos aos tribunais administrativos, mas sim aos comuns, tal como decorre do disposto no artigo 66.º do CPC.” (fls. 135)
E ainda:
«Em suma, o contrato aqui em apreço não é regulado por normas de direito administrativo e ainda que o fosse não se trata de relações jurídico-administrativas, pelo que só pode qualificar-se como contrato de direito privado, do que decorre que a competência para o seu conhecimento e decisão cabe aos tribunais comuns.» (fls. 136)
Fica assim demonstrado que a decisão recorrida nunca aplicou efetivamente a interpretação normativa reputada de inconstitucional pela recorrente, na medida em que nunca considerou que o contrato do qual originou o crédito da recorrida pudesse ser qualificado como de natureza jurídico-pública. Portanto, fica assim inviabilizada a possibilidade de conhecimento quanto ao objeto do presente recurso.
4. A título meramente subsidiário, acrescente-se ainda que, mesmo que assim não fosse, certo é que a jurisprudência consolidada no Tribunal Constitucional tem entendido que a atribuição episódica à jurisdição judicial de poderes para julgar questões emergentes de situações jurídico-administrativas não contraria a “reserva de jurisdição administrativa”, prevista no artigo 212º, n.º 3, da CRP, desde que não se descaraterize, de modo significativo, o modelo constitucionalmente imposto de dualidade de jurisdições [a título de exemplo, ver os Acórdãos n.º 347/97, n.º 458/99, n.º 421/2000, n.º 550/2000; 284/2003, n.º 211/2007, n.º 522/2008, n.º 632/2009 e n.º 11/2012, todos disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/; na doutrina, em sentido idêntico, ver Sérvulo Correia, A arbitragem voluntária no domínio dos contratos administrativos, in «Estudos em Memória do Professor Castro Mendes», Lisboa, 1995, 254; Vieira de Andrade, Justiça Constitucional (Lições), 8ª edição, Coimbra, 2006, 112-114; Mário Esteves de Oliveira / Rodrigo Esteves de Oliveira, Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Volume I, Coimbra, 2006, 21-22].
Como tal, ainda que viesse a conhecer-se do objeto do presente recurso – o que, como já demonstrado, não se afigura legalmente admissível e por mera exaustão de fundamentação se pondera – sempre se concluiria pela não inconstitucionalidade de interpretação normativa similar à que a recorrente elegeu como objeto do presente recurso.
III – DECISÃO
Pelos fundamentos supra expostos, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de fevereiro, decide-se não conhecer do objeto do recurso.
Custas devidas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 7 UC´s, nos termos do n.º 2 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de outubro.»
2. Notificada da decisão, a recorrente apresentou reclamação nos seguintes termos:
«1.
Conforme consta no acórdão recorrido, é, por um lado, absolutamente seguro que o tribunal recorrido aplicou a norma do artigo 66.º, do Código de Processo Civil, como ratio decidendi ou fundamento normativo para a sua decisão.
2.
E, por outro lado, que o tribunal recorrido recusou a aplicação da norma constante do artigo 4.º, n.º 1, alínea e) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
3.
Ora, o recurso interposto pela ora reclamante tem por objeto quer a norma do artigo 66.º, do Código de Processo Civil, que foi aplicada e que constitui o fundamento normativo da decisão recorrida, quer a alínea e) do n.º 1, do artigo 4.º, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, cuja aplicação foi recusada pelo tribunal recorrido.
4.
Nessa conformidade, o recurso interposto pela ora reclamante, obedece, e dá pleno cumprimento, ao plasmado no artigo 79.º-C, da LTC, o qual dispõe que “O Tribunal só pode julgar inconstitucional ou ilegal a norma que a decisão recorrida, conforme os casos, tenha aplicado ou a que haja recusado aplicação, mas pode fazê-lo com fundamento na violação de normas ou princípios constitucionais ou legais diversos daqueles cuja violação foi invocada.”
5.
Assim, ao contrário do que é dito na decisão sumária, o recurso de constitucionalidade interposto preenche todos os pressupostos processuais de admissibilidade, incluindo o exigido no artigo 79.º-C, da LTC.
6.
Não se verificando, por isso, o fundamento para a tomada da decisão sumária, isto é, o não preenchimento do artigo 79.º-C, da LTC, porquanto o objeto do recurso interposto pela ora reclamante incide sobre a norma que foi aplicada e serviu de fundamento normativo à decisão recorrida.» (fls. 159 e 160)
3. Devidamente notificada para o efeito, a recorrida deixou esgotar o prazo sem que viesse aos autos deduzir qualquer resposta.
Posto isto, importa apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. Ao contrário do que aparenta sustentar a reclamante, a decisão reclamada não discute, em momento algum, que o tribunal recorrido tenha aplicado o artigo 66º do CPC, em conjugação com uma interpretação excludente da competência dos tribunais administrativos, potencialmente fundada na alínea e) do n.º 1 do artigo 4º do ETAF. O que a mesma decisão sustentou foi que a interpretação extraída daquele preceito legal não corresponde àquela que a reclamante fixou como objeto do presente recurso.
E, com efeito, a decisão recorrida nunca interpretou o artigo 66º do CPC no sentido de que seria admissível “excluir da jurisdição administrativa relações entre as partes, que assentam e decorrem de um contrato de natureza pública”, conforme foi fixado o objeto do presente recurso, por exclusiva iniciativa da reclamante. Bem pelo contrário – e como já amplamente demonstrado pela decisão ora reclamada –, o tribunal recorrido entendeu que o contrato em discussão nos autos recorridos assumia natureza privada e não pública. Ora, o artigo 79º-C da LTC não se basta com a mera indicação do preceito legal aplicado pelo tribunal recorrido; antes exige que os recorrentes identifiquem expressamente qual a norma ou interpretação normativa dele extraída. Evidentemente, a ciência jurídica não acolhe uma assimilação entre “preceito legal” – ou seja, o enunciado semântico que verbaliza o comando normativo – e “norma jurídica”, que daquele é extraída. Em suma, não se afigura bastante a identificação genérica de determinado “preceito legal”, antes se exigindo a descrição do específico conteúdo da interpretação normativa dele extraída.
Sem qualquer margem para dúvidas, não existe correspondência entre a interpretação normativa que a reclamante identificou como objeto do presente recurso e aquela que foi efetivamente aplicada pela decisão recorrida, razão pela qual vai a reclamação indeferida e, consequentemente, confirmada a decisão reclamada.
III - Decisão
Em face do exposto, decide-se indeferir a presente reclamação.
Fixam-se as custas devidas pela reclamante em 20 UC´s, nos termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de outubro.
Lisboa, 18 de dezembro de 2012. - Ana Maria Guerra Martins – João Cura Mariano – Joaquim de Sousa Ribeiro.