Imprimir acórdão
Proc.º n.º 37/2001.
2.ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
I
1. Após ter sido deduzida pelo Ministério Público acusação contra, por entre outras, C e T, vieram estas peticionar a abertura de instrução, tendo, a dado passo, dito no requerimento consubstanciador dessa petição:-
'........................................................................................................................................................................................................................................................................................
1. Dos actos de Inquérito resulta que todas as diligências probatórias ou de colheita de indícios da actividade delituosa foram realizadas no e pelo NÚCLEO DE AVERIGUAÇÕES DE ILÍCITOS CRIMINAIS.
2. Esse Núcleo está integrado nos Serviços do C.R.S.S., dele fazendo parte integrante - vide Despacho nº 3351/98 (2ª Serie) DR nº 47 de 25/02/98.
3. Ou seja, o referido núcleo não é um serviço especializado do Mº Pº mas sim do C.R.S.S.
..........................................................................................................................................................................................................................................................................................
5. Assim, todos os actos de Inquérito foram praticados pelo próprio ofendido (!!!) e com base nos mesmos foi proferida acusação.
6. O processo de averiguações foi iniciado, executado e concluido pelo próprio ofendido a coberto da pretensa competência própria que lhe é atribuída pelos artigos 43º e 51º-A do RJIFNA..
..........................................................................................................................................................................................................................................................................................
14. Assim, aqueles 43º, 44º e 51º-A do RJIFNA são materialmente inconstitucionais pelas razões expostas, ou seja, por viloação do disposto nos artigos 32º nº 4 e 5, 114º e 221º do Constituição da República Portuguesa, inconstitucionalidade que aqui expressamente se invoca para todos os efeitos legais.
........................................................................................................................................................................................................................................................................................'
Por despacho proferido em 30 de Outubro de 2000 pelo Juiz de instrução criminal de Guimarães foram as aludidas arguidas pronunciadas, sendo-lhes imputada a prática de factos que foram subsumidos ao cometimento, na forma continuada, de um crime de abuso de confiança fiscal previsto e punível pelos artigos 27º-B, introduzido pelo Decreto-Lei nº 140/95, de 14 de Junho, no Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras aprovado pelo Decreto-Lei nº 20-A/90, de 25 de Janeiro, 24º, números 1 e 5, do mesmo Regime, na redacção conferida pelo Decreto-Lei nº 394/93, de 24 de Novembro, e 30º, nº 2, do Código Penal.
Nesse despacho foi dito em determinada altura:-
'.......................................................................................................................................................................................................................................................................................
No que diz respeito à alegada nulidade do inquérito e inconstitucionalidade dos arts. 43.º, 44.º e 51.º-A do RJINFA, não concordamos com a posição das arguidas.
Com efeito, o facto de haver um processo de averiguações conduzido pelo Núcleo de Averiguações de Ilícitos Criminais, integrado nos serviços do CRSS, de acordo com o disposto pelos arts. 43.º, 44.º e 51.º-A do RJINFA, não pode levar a que estas normas sejam interpretadas no sentido da
‘administrativização’ da fase do inquérito, decorrente da autonomização do chamado processo de averiguações e sua subtracção aos poderes de controlo e fiscalização do M.P. (neste sentido, Augusto da Silva Dias, autor que aqui seguimos de muito perto, ‘Crimes e Contra-ordenações Fiscais’, in ‘Direito Penal Económico e Europeu’: Textos Doutrinários’, Volume II, pág. 473). Aquilo que resulta das normas em apreço é uma maior autonomia da investigação por parte da Administração Fiscal, que dá início e procede às competentes averiguações sem necessidade de para tal solicitar a par e passo a autorização do M.P., o que é justificado pelo carácter técnico das matérias em causa, nunca se chegando, no entanto, ao ponto de impedir o M-P- de exercer as suas competências d direcção do inquérito, sempre que o julgar oportuno. A delegação presumida resultante do art. 43.º, nº 2 do RJIFNA não deixa de ser isso mesmo: autorização para o exercício de um poder, susceptível de ser avocado a todo o momento: ‘o processo de averiguações implica a realização de actos de inquérito, os quais, apesar da delegação concreta do M.P. à Administração Fiscal, por razões de eficácia e operacionalidade, integram uma fase processual que, na sua concepção, está submetida aos poderes de direcção daquele órgão de administração da justiça e que, por isso, não é meramente administrativa. Desta forma não se está a diminuir os direitos e garantias dos contribuintes, mas antes a reforçá-los’
(obra e autor citados, pág. 475 e seg.).
Aliás, esta leitura é confirmada, desde logo, pelo preâmbulo do DL nº
20-A/90, onde se pode ler que a atribuição aos actos levados a cabo pela Adm. Fiscal da autoridade que detém os que são praticados sob a potestas do M.P. ‘não significa que se subtraia ao Ministério Público a direcção do inquérito ou que se limitem quaisquer competências e atribuições que lhe estão cometidas no
âmbito penal. O que se pretende é apenas que os actos praticados no âmbito do processo de averiguações não sejam meros actos vazios de eficácia a inócuos de resultado’.
Face ao exposto, conclui-se pela inexistência da alegada nulidade do inquérito, não se entendendo que os arts. 43.º, 44.º e 51.º-A do RJINFA estejam feridos de qualquer inconstitucionalidade, designadamente por violação do disposto pelos arts. 32.º, nºs 4 e 5, 114.º e 221.º da Constituição.
........................................................................................................................................................................................................................................................................................'
Do assim decidido intentaram as arguidas recorrer para o Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro [em certo passo do requerimento de interposição de recurso as arguidas mencionam a alínea d) daqueles número e artigo], recurso que não foi admitido pelo Juiz de Instrução Criminal de Guimarães por intermédio de despacho como o seguinte teor:-
'Nos termos do art. 70.º, nº 1 , al. b) da Lei nº 28/82, de 15/11
(com a alteração da lei nº 13-A/98, de 26/2), cabe recurso para o Tribunal Constitucional da decisão do tribunal que aplique norma cuja inconstitucionalidade tenha sido suscitada durante o processo.
Nos termos do nº 2 da norma citada, este recurso apenas cabe, porém, das decisões que não admitam recurso ordinário, por a lei o não prever ou por já haverem sido esgotados todos os que, no caso concreto, cabiam.
A questão de inconstitucionalidade dos arts.43.º, 44.º e 51.º-A do RJINFA, por violação dos arts. 32.º, nº 4 e 5, 114.º e 221.º da Constituição, foi configurada pelos requerentes da abertura de instrução como determinando a nulidade do inquérito realizado - cfr. fls. 250.
A questão da nulidade do inquérito por violação de normas constitucionais reveste-se de natureza prévia relativamente à decisão instrutória de fundo, e como tal foi conhecida.
Nos termos do Assento do STJ de 19/1/00 (DR, I Série-A, de 7/3/00, fls. 850 e segs.), a decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público é recorrível na parte respeitante à matéria relativa às nulidades arguidas no decurso do inquérito ou da instrução e
às demais questões prévias e incidentais.
Assim, claramente se conclui que no caso em apreço se não encontra esgotada a possibilidade de recurso ordinário, razão pela qual não admito o recurso interposto a fls. 383.
Notifique.'
É deste despacho que, pelas mencionadas arguidas, vem deduzida a presente reclamação, esgrimindo, em síntese, com a seguinte argumentação:-
- tendo o Tribunal Constitucional declarado a inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma constante do artº 2º do Código Civil, na parte em que atribui aos tribunais o poder de fixar, por meio de assentos, doutrina com força obrigatória geral, os acórdãos proferidos nos termos do artigo 437º do Código de Processo Penal para fixação de jurisprudência não poderão ter o alcance daqueles assentos e, assim, apenas poderão tais acórdãos ter a eficácia decorrente do artº 445º, nº 1 do mesmo Código;
- os reclamantes não concordam com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Janeiro de 2000, pelo que entendem que a decisão instrutória não é passível de recurso no que tange às questões de nulidade que na mesma foram decididas, sendo que o próprio Tribunal Constitucional, por várias vezes, já decidiu não ser inconstitucional o regime da irrecorribilidade do despacho de pronúncia;
- no caso dos autos, como decorreu já o prazo para a interposição de recurso ordinário, mesmo que este fosse admissível, sempre o recurso para o Tribunal Constitucional seria de admitir.
O Ex.mo Representante do Ministério Público junto deste órgão de fiscalização concentrada da constitucionalidade normativa pronunciou-se no sentido da manifesta improcedência da reclamação.
Cumpre decidir.
II
2. Deverá, desde logo, acentuar-se que, tendo em conta o disposto no nº 2 do artº 70º da Lei nº 28/82, num caso com a configuração dos presentes autos, caberá este Tribunal decidir - mormente tendo em conta que as ora reclamantes não vieram alguma vez, directa ou indirectamente, sustentar que desejavam renunciar a qualquer recurso ordinário que, in casu, porventura coubesse - se, efectivamente, em face das prescrições constantes do direito ordinário, a decisão pretendida impugnar por intermédio do recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade é passível de recurso ordinário.
Na vertente situação, postamo-nos perante uma arguida nulidade cometida no inquérito que precedeu a acusação deduzida pelo Ministério Público, nulidade essa que derivaria da circunstância de terem sido observados normativos que, na óptica das ora reclamantes, seriam inválidos, porque ofensivos da Lei Fundamental. E, sobre essa arguida nulidade recaiu um juízo jurisdicional decisório prévio a aqueloutro que pronunciou as mesmas reclamantes.
Da literalidade do artº 310º, nº 1, do Código de Processo Penal - que dispõe que a decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público é irrecorrível - não resulta inequivocamente que é vedada a impugnação da parte do despacho onde se contenha aquela decisão e na qual, «preliminarmente», se decida qualquer questão prévia ou incidental, designadamente se relacionada com nulidades arguidas no decurso do inquérito ou da instrução.
Por isso se assistiu na jurisprudência à assunção de posições opostas quanto à possibilidade daquela impugnação e daí a prolação, nos termos dos artigos 437º e seguintes do Código de Processo Penal, do acórdão de 19 de Janeiro de 2000 do Supremo Tribunal de Justiça, designado por «Assento nº
6/2000», (publicado na 1ª Série-A do Diário da República de 7 de Março de 2000), que fixou a seguinte doutrina quanto à forma de resolução do conflito decorrente daquelas opostas posições:- 'A decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público é recorrível na parte respeitante à matéria relativa às nulidades arguidas no decurso do inquérito ou da instrução e às demais questões prévias ou incidentais'.
Como deflui do artº 445º do diploma adjectivo criminal, as decisões proferidas no âmbito dos seus artigos 437º e seguintes não constituem jurisprudência obrigatória para os tribunais, tendo eficácia no processo em que tiver sido interposto aquele recurso extraordinário e, bem assim, nos processos onde foi interposto recurso e cuja tramitação foi suspensa de harmonia com o nº
2 do artº 441º. Por isso, nem sequer é necessário convocar, para se aferir dessa eficácia - como o fazem as reclamantes -, a declaração de inconstitucionalidade incidente sobre o artº 2º do Código Civil resultante do Acórdão nº 743/96 do Tribunal Constitucional.
3. Como acima se disse, em casos como o vertente, cabe a este órgão de administração de justiça decidir se, em face do ordenamento jurídico infra-constitucional, a decisão desejada recorrer admite, ou não, recurso ordinário, para os efeitos do nº 2 do artº 70º da Lei nº 28/82.
Ora, dado o teor do nº 1 do artº 310º do Código de Processo Penal, do qual, como se sublinhou, não resulta inequivocamente a irrecorribilidade da parte dos despachos que contenham a decisão instrutória, parte essa na qual foi decidida qualquer questão prévia ou incidental, como, verbi gratia, a referente a arguidas nulidades do inquérito, entende este Tribunal que a corte argumentativa utilizada no mencionado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça tirado em 19 de Janeiro de 2000 é perfeitamente aceitável, sendo que se não conhecem, pelo menos por ora, quaisquer outras decisões proferidas pela ordem dos tribunais judiciais, designadamente pelos Tribunais das Relações, que, posteriormente à publicação daquele aresto no jornal oficial, tenham sufragado diverso entendimento do que foi adoptado nesse acórdão (este condicionalismo leva a que se não possa posicionar a situação em apreço em moldes idênticos aos que foram decididos pelo Tribunal Constitucional no seu Acórdão nº 147/97, publicado na 2ª Série do Diário da República de 15 de Abril de 1997).
Não releva, assim, para os efeitos agora em causa, saber se as reclamantes estão ou não de acordo ou se têm (sendo que, de facto, não têm) de aceitar a doutrina firmada pelo acórdão de 19 de Janeiro de 2000.
E, nesta senda, interpreta-se também o nº 1 do artº 310º já citado como comportando a dimensão segundo a qual, no que agora releva, a decisão instrutória que venha a pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação deduzida pelo Ministério Público é passível de recurso na parte respeitante à matéria decisória de nulidades arguidas em inquérito.
Consequentemente, do despacho intentado recorrer directamente para o Tribunal Constitucional havia ainda a possibilidade de recurso para o Tribunal da Relação do Porto, razão pela qual não merece censura o despacho reclamado.
Uma última palavra apenas para sublinhar que o último argumento
(acima sintetizado) das reclamantes não têm, como é por demais claro, a mínima razão de ser.
III
Em face do exposto, indefere-se a reclamação, condenando-se as reclamantes nas custas processuais, fixando a taxa de justiça em quinze unidades de conta. Lisboa, 14 de Março de 2001 Bravo Serra Maria Fernanda Palma Luís Nunes de Almeida