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Proc. n.º 798/03
3ª Secção Relator: Cons. Gil Galvão
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que figura como recorrente A. e como recorrido o Ministério Público, o ora recorrente interpôs, em 26 de Junho de 2002, recurso de revisão da sentença proferida em 19 de Fevereiro de 1993 e transitada em julgado em 3 de Março de 1993, segundo a qual B., nascido em 29 de Novembro de 1988, filho de C., era também seu filho, alegando que da sentença só tomou conhecimento em 4 de Junho de 2002. O recurso não foi admitido, por extemporâneo.
2. Inconformado, agravou o ora recorrente para o Tribunal da Relação de Lisboa, o qual julgou improcedentes os fundamentos do agravo, confirmando o despacho recorrido. De novo inconformado, interpôs agravo de 2ª instância para o Supremo Tribunal de Justiça, concluindo do seguinte modo a sua alegação:
“[...]Conclusões:
1ª) Pela sentença de fls. 75 e 76 foi contra o recorrente reconhecida a sua paternidade do menor B..
2ª) Tal sentença foi proferida em processo no qual o recorrente foi citado editalmente.
3ª) O Recurso de Revisão foi interposto quando, ocasionalmente, o recorrente tomou conhecimento da sentença e de um documento que, parcialmente, a infirmava, e dentro dos 60 dias posteriores ao conhecimento do primeiro destes factos, o que foi devidamente alegado.
4ª) Como alegado foi a nulidade da citação edital.
5ª) Todavia tanto o Tribunal de 1ª instância, como o Tribunal 'a quo' entenderam que tendo já decorrido 5 anos sobre o formal trânsito em julgado da sentença recorrida, não era admissível o Recurso de Revisão e por isso o indeferiram.
6ª) Ora a nulidade da citação implica a nulidade de tudo quanto depois dela se processe, por força do disposto no art.º 194º al. a) e pela equiparação feita entre a falta e a nulidade da citação edital pelo art.º 771 al. f), ambos do C.P.C.
7ª) A nulidade da citação edital foi alegada quando da primeira intervenção do recorrente no processo, pelo único meio na altura formalmente admissível e que era o Recurso de Revisão, e, portanto, em tempo (art.º 198 n.º 2 do C.P.C.).
8ª) Mas é evidente que alegando-se a nulidade. da citação edital que implica a nulidade da sentença, o prazo de 5 anos para interposição do recurso, não pode ser tomado em conta, porque no silogismo jurídico, em que se funda a pretensão, a sentença também é nula.
9ª) Não sendo assim a interpretação, ou outra do Douto Suprimento de V.Excias que chegue a resultados processuais semelhantes, a sentença recorrida violará o princípio da igualdade das partes e consequentemente o do contraditório, aplicável ao processo civil, consignado no art.º 13° da Constituição da República e no parágrafo único do artigo 6° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, pelo que deve ser considerado que o art.º 772 n.º 2 do C.P.C., na interpretação que lhe foi dada na sentença recorrida é inconstitucional e como tal declarado.
10ª) Assim deve ser revogada a sentença recorrida, por violação do art.º 772 n.º
2, 194 al. a) e 771 al. f) todos do C.P.C., ou em alternativa deve ser julgado inconstitucional, por violação do art.º 13° da Constituição da República e parágrafo único do art.º 6° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, a interpretação dada na sentença recorrida à contagem do prazo de cinco anos estipulado no art.º 772° n.º 2 do C.P.C. quando aplicado à citação edital arguida de nula e em consequência revogada também a decisão recorrida e em qualquer dos casos mandado prosseguir o processo [...].”
3. Por acórdão de 7 de Outubro de 2003, o Supremo Tribunal de Justiça negou provimento ao agravo. Escudou-se, para isso, na seguinte fundamentação:
“[...]Decidindo:
1.- A interpretação do disposto no n.° 2 do art. 772 C PC e sua constitucionalidade são as únicas questões objecto do presente agravo. Fixa ele dois prazos que correm em paralelo tendo, contudo, início diverso. Articulam-se entre si e a exaustão de qualquer deles, de per si, por inacção do interessado, provoca a extinção, por caducidade, do direito de peticionar a revisão da decisão transitada (essa consequência ocorre logo que um deles tenha decorrido). A lei não lhes abriu qualquer excepção nem estabeleceu causa impeditiva da caducidade (CC- 298-2,328 e 331-1). O primeiro limite temporal tem início no trânsito em julgado da decisão - o recurso só pode ser interposto se não tiverem decorrido mais de 5 anos sobre o trânsito em julgado da decisão a rever (corpo daquele n.° 2 e art. 671-1 CPC). O segundo toma em atenção os fundamentos do recurso, os elementos que servem de causa à mesma (als. a) e b) daquele n.° 2) e não pode ultrapassar o limite do primeiro (isso o que resultava do corpo do n.° 2, reforçado com a nova redacção do n.° 3 do art. 772, sentido em que a jurisprudência se pronunciara antes). Respeita o recurso de revisão a decisão transitada, pelo que é extraordinário
(CPC-676-2) o que permite concluir que, procurando a lei o valor da segurança jurídica inerente àquela, não fica insensível a outros valores (maxime, o de justiça material, indo de encontro à verdade que não a formal). Todavia, estabeleceu balizas à excepção que abriu, umas relativas aos fundamentos (CPC-
771), outras atinentes ao decurso do tempo (CPC- 772,2 e 3), ambas taxativas
(«...só pode ...» e «o recurso não pode ser interposto se ...»). Significa isso que esse valor da segurança jurídica não foi erigido como absoluto, não sem que, todavia, constitua a regra.
2.- À interpretação desse n.° 2 desinteressa em absoluto a natureza da matéria objecto da acção onde foi proferida a sentença a rever, há-de ser válida seja
[qual for] a que aí tenha sido discutida. Não se pode pretender que a interpretação da norma varie consoante a natureza do que tenha sido discutido na acção – v.g., porque se discutia o estabelecimento da paternidade ou a dissolução do casamento, valer uma interpretação que ignore a exigência de o primeiro prazo ainda não ter decorrido mas, porém, já valer se o que se discutia era o reconhecimento do direito de propriedade, de uma servidão ou de uma dívida, etc.. Tão pouco influem na sua interpretação as eventuais violações de normas que tenham ocorrido no processamento da acção - apenas poderão interessar aos fundamentos do recurso (CPC - 771), não à questão da tempestividade da sua interposição (CPC- 772,2). O exame liminar que ao julgador é pedido inicia-se pela questão da tempestividade e, ultrapassada esta, incide sobre os fundamentos (CPC- 774,2). Como se referiu antes, apenas há que decidir, através da interpretação do art.
772-2 e sua constitucionalidade, da tempestividade da interposição do recurso.
3.- Quando o agravante interpôs o recurso de revisão já há muito tinham decorrido os 5 anos sobre o trânsito em julgado da decisão que pretendia fosse revista. Caducara-lhe o respectivo direito a interpô-lo. A argumentação do agravante traduz-se no seguinte raciocínio - porque nula a citação edital é nulo tudo o que após ela se processou e, por isso, nula a sentença; arguiu a nulidade da citação no presente recurso, a primeira intervenção formalmente admissível (CPC- 198,2), e, portanto, em tempo; se assim não se entender, a decisão recorrida viola o princípio da igualdade das partes e, consequentemente, o do contraditório. Esta argumentação, além de incorrer numa interpretação não consentida do n.° 2 do art. 198 CPC, está direccionada aos fundamentos do recurso, não à questão da sua tempestividade, que ignora. A possibilidade que a lei confere ao vencido de impugnar uma decisão transitada em julgado representa, em relação aos recursos ordinários, a concessão de um mais, de uma extensão que, na normalidade, o seu direito de defesa não conheceria. Ao vencido é concedido um direito que posterga o valor da segurança jurídica inerente ao trânsito em julgado, valor que ao vencedor assegura o seu interesse e com o qual ele podia contar. A se poder falar em violação do princípio da igualdade de armas seria não o vencido ( o agravante, aqui) mas o vencedor o prejudicado. Na conciliação dos valores da segurança jurídica e da justiça material, a lei, já desde o CPC1876 com a acção anulatória (art. 148) e, a partir do CPC39, com o recurso de revisão, sobrepôs este àquele (como referia J. A. dos Reis - «estamos perante uma das revelações do conflito entre as exigências da justiça e as necessidades da segurança e da certeza jurídica»), circunscrevendo taxativamente os vícios que lhe podem servir de fundamento e só permitindo a reparação desses vícios (a qual, no ensinamento de Palma Carlos, constitui «um atentado contra a autoridade do caso julgado», autoridade essa que, «dada a falibilidade dos julgamentos humanos ... não pode ser reconhecida como absoluta») nos prazos que rigorosa e taxativamente delimita. O estabelecimento desses prazos, com o efeito da caducidade se não respeitados, em nada coloca o vencido em posição de inferioridade e desigualdade em relação ao vencedor. Repõe o valor da segurança na vida jurídica no lugar que lhe compete, restaura a autoridade do caso julgado conferindo à administração da justiça a força, autoridade e segurança que publica e constitucionalmente é e deve ser reconhecida ao trânsito das suas decisões. O estabelecimento desses prazos não retirou ao vencido o direito que se lhe reconhecia - impõe-lhe um ónus, o de com eles se conformar para poder exercer esse direito de defesa. Improcede a tese da inconstitucionalidade. Termos em que se nega provimento ao agravo. [...]”
4. É desta decisão que vem interposto, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo
70º, da Lei do Tribunal Constitucional, o presente recurso. Após convite do relator, identificou o recorrente o objecto do recurso como sendo a apreciação da constitucionalidade da norma constante da 1ª parte do n.º 2 do artigo 772° do Código de Processo Civil, na medida em que estabelece que o recurso (de Revisão) não pode ser “interposto se tiverem decorrido mais de cinco anos sobre o trânsito em julgado da decisão ...»”, uma vez que, de acordo com o recorrente,
“se interpretada de maneira absoluta” (isto é, quando aplicável a casos em que
“tendo corrido a acção e a execução à revelia (o que foi a caso) se mostre que faltou a citação ou é nula a citação feita”), viola tal norma “o princípio do contraditório, constitucionalmente garantido pelo artigo 32º, nºs 5º e 10º e, com carácter geral, o art. 13º, n.º 1 da Constituição e o parágrafo único do art. 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e por, acrescenta-se agora, tal interpretação do n.º 2 do art. 772º do CPC não dar um mínimo de conteúdo à garantia legal da identidade genética do Ser Humano, estabelecida no art. 26º n.º 3 da Constituição da República Portuguesa, tanto mais que estamos no domínio dos direitos indisponíveis.”
5. Já neste Tribunal foi o recorrente notificado para alegar, o que fez, tendo concluído da seguinte forma:
“1. O Presente recurso de revisão foi interposto depois de ultrapassado o prazo de cinco anos sobre o trânsito em julgado de decisão recorrida.
2. Mas dentro dos 60 dias a contar da data em que o recorrente teve conhecimento ao processo.
3. Porque o recorrente foi citado para o processo em causa editalmente, com preterição de formalidades legais, conforme alegou.
4. O Acórdão do STJ recorrido, decidiu que o prazo estabelecido no art. 772º n.º
2 do CPC se destina a fazer valer o princípio de certeza do direito e do respeito do caso julgado e não pode ser afastado em função da sorte que tenha o fundamento da revisão previsto no artigo 771º al. f) do CPC e invocado por uma . das partes.
5. Quer dizer: em hipótese qualquer pessoa pode ser condenada sem possibilidade de se fazer valer da última oportunidade que lhe é facultada pelo Recurso de Revisão, sem intervir no processo, sem ter tido conhecimento sequer da sua existência e do seu resultado, e isto tudo, porque foram omitidos formalismos essenciais no modo de citação empregue, exactamente, criadas por lei para evitar que tal pudesse acontecer
6. E isto tudo em obediência a um sacro[s]santo princípio de certeza do direito declarado, calculado em 5 anos como podia ser em 10 ou 20, e que para nada serviu: nem o filho conheceu o pretenso pai, nem este conheceu o pretenso filho, e o pretenso pai quando soube do que lhe tinha acontecido tentou impugnar aquilo que considera uma injustiça e provavelmente o pretenso filho, quando atingir a maioridade, irá, como a lei lhe faculta, impugnar e recusar a pretensa paternidade de um pai que não é o seu.
7. Mas entretanto foram postergados outros direitos, esses com assento constitucional, de igualdade das partes, de que ninguém pode ser condenado sem ser ouvido, com respeito pelo formalismo criado por lei para garantir a eficácia dessa mesma audição e que no caso concreto foi preterido de forma grave, alegada e facilmente verificável.
8. E isto apesar de o recorrente ter aceite que se a sentença não for anulada em consequência do reconhecimento da nulidade da citação, nos termos da alínea a) do art. 776º do CPC, então se conforma com o princípio da certeza do direito.
9. Agora ser-lhe negada a Revisão com fundamento no decurso de um prazo contado a partir de uma sentença nula por não terem sido cumpridos os formalismos de citação edital destinados a assegurar os potenciais de comunicabilidade desse tipo de citação, já de si falíveis, é que parece forma não fundamentada e ofensiva dos princípios constitucionais invocados.
10. Não podem existir dúvidas que o fundamento de revisão da alínea f) do art.
771º do CPC só pode ser apreciado no próprio recurso de Revisão, que é um recurso extraordinário (n.º 2 do art. 676° do CPC), mas que faz parte do processo visto estar inserido no Título II (Do processo de declaração), do Livro III (Do Processo) do CPC.
11. Assim sendo e no caso configurado é na interposição do recurso de Revisão que se verifica a primeira intervenção do citado no processo, sendo portanto nessa intervenção que se verifica o termo do prazo para arguir a nulidade da citação edital prevista no n.º 2 do art. 198° do CPC.- e a nulidade foi arguida.
12. Por sua vez, o Juiz tem obrigação de conhecer desta nulidade logo que dela se apercebe, oficiosamente, nos termos do n.º 1 do art. 206º do CPC.
13. Ora pretender-se que o decurso do prazo de 5 anos sobre o tr[â]nsito de uma sentença, impede o conhecimento do Recurso de Revisão quando tal sentença está inquinada e arguida de nula, não só ofende o citado art. 206º n.º 1 do CPC, como
14. Constitui uma violação dos arts. 13º n.º 1 e 20º da Constituição da República, na medida em que trata designadamente uma das partes que não só não teve conhecimento do processo em tempo oportuno, como não foi para ele citado de forma regular e tem toda a possibilidade de ver reconhecida, sem tal interpretação - obstáculo ao conhecimento, a nulidade de sentença, que assim já não podia servir como termo 'a quo' para a contagem de um prazo de caducidade.
15. Tal interpretação viola ainda o parágrafo único do art. 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que assegura também a igualdade do tratamento das partes no acesso à Justiça e ao Direito.
16. Tal interpretação viola também, porque o frustra, como brilhantemente alegou o Magistrado do Ministério Público junto do Supremo Tribunal de Justiça - o art.
26º n.º 1 (também aplicável à igualdade das partes) e 3 da Constituição da República, na medida em que assegura a protecção da Lei e do Estado 'à identidade genética do ser humano', e estando aqui em causa essa mesma identidade genética, na concorrência entre a protecção desta e segurança jurídica, seja aquela que prevaleça.
17. Assim sendo a aplicação ao caso concreto, sub judice, do art. 772º n.º 2 (1ª parte) do CPC e a forma como se entendeu contar o decurso do prazo de 5 anos aí prescrito, feita tanto no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa como pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça viola os princípios constitucionais da igualdade das partes no acesso ao Direito e à Justiça e no respeito do princípio do contraditório constantes dos arts. 13º n.º 1, 20º nºs 1 e 2, 26º nºs 1 e 3 da Constituição da República e o parágrafo único do art. 6° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, pelo que deve ser declarada a inconstitucionalidade de tal interpretação [...]”.
6. Contra-alegou o Ministério Público, tendo dito, a concluir:
“1 - O estabelecimento de um prazo máximo, absolutamente peremptório, que condiciona a admissibilidade do recurso extraordinário de revisão, contado do trânsito em julgado da sentença a rever, representa o balanceamento possível entre dois valores constitucionalmente tutelados: o de não deixar subsistir sentenças intoleravelmente 'injustas' e a autoridade e intangibilidade do caso julgado material, impeditivo de que a sentença definitiva possa ser revista (e eventualmente revogada) a todo o tempo, impedindo a estabilização das relações jurídicas judicialmente apreciadas e afectando, em termos desproporcionados, a certeza e segurança do direito - não afrontando, deste modo, tal regime e do acesso ao direito.
2 - Tal regime adjectivo, enquanto aplicável a uma acção de investigação da paternidade, não afronta o artigo 26°, n° 1, da Constituição da República Portuguesa, do qual se não pode inferir, conforme jurisprudência reiterada deste Tribunal, a 'imprescritibilidade' dos instrumentos processuais que visam assegurar a coincidência entre os vínculos biológicos e jurídico da filiação.
3 - Termos em que deverá improceder o presente recurso.”
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II. Fundamentação.
7. A primeira parte do artigo 772º, n.º 2, do Código de Processo Civil, cuja constitucionalidade vem questionada, tem o seguinte teor:
“Artigo 772° Prazo para a interposição
[...].
2. O recurso não pode ser interposto se tiverem decorrido mais de cinco anos sobre a decisão [...].
[...]”.
Entende o recorrente que a norma é materialmente inconstitucional se, nos casos em que o fundamento do recurso é o previsto na alínea f) [actual e)] do n.º 1 do artigo 771º do CPC e estiver em causa a averiguação da paternidade, for interpretada “de maneira absoluta”, isto é, se, como se fez na decisão recorrida, se considerar aplicável a casos em que “tendo corrido a acção e a execução à revelia [...] se mostre que faltou a citação ou é nula a citação feita”, por violação do “princípio do contraditório, constitucionalmente garantido pelo artigo 32º, nºs 5º e 10º e, com carácter geral, o art. 13º, n.º 1 da Constituição e o parágrafo único do art. 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e por [...] tal interpretação do n.º 2 do art. 772º do CPC não dar um mínimo de conteúdo à garantia legal da identidade genética do Ser Humano, estabelecida no art. 26º n.º 3 da Constituição da República Portuguesa”.
Em causa não está, portanto, em termos gerais, a previsão de um prazo peremptório de cinco anos para a interposição do recurso de revisão, mas sim a aplicação desse prazo, absolutamente preclusivo, às hipóteses em que a acção na qual foi proferida a decisão cuja revisão é requerida foi uma acção oficiosa de investigação de paternidade, que correu à revelia e seja alegado, para fundamentar o pedido de revisão, a falta ou a nulidade da citação para aquela acção.
Em suma: a questão de constitucionalidade, tal como vem colocada pelo recorrente e vai ser apreciada pelo Tribunal, pode formular-se nos seguintes termos: é a norma contida no n.º 2 do artigo 772º do Código de Processo Civil inconstitucional, na parte em que prevê um prazo absolutamente peremptório de cinco anos para a interposição do recurso de revisão, contados desde o trânsito em julgado da sentença a rever, quando interpretada no sentido de ser aplicável aos casos em que a acção na qual foi proferida a decisão cuja revisão é requerida foi uma acção oficiosa de investigação de paternidade, que correu à revelia e seja alegado, para fundamentar o pedido de revisão, a falta ou a nulidade da citação para aquela acção?
Vejamos.
8. Da alegada violação do princípio do contraditório.
Entende o recorrente que a interpretação do artigo 772º, n.º 2, do Código de Processo Civil, que vem questionada viola, desde logo, o princípio do contraditório, consagrado, no seu entender, nos artigos 32º, n.ºs 5º e 10º e
13º, n.º 1, da Constituição, bem como no n.º 1 do artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Vejamos se tem razão.
O Tribunal Constitucional já afirmou, por inúmeras vezes, a consagração constitucional do princípio do contraditório no âmbito do Processo Civil, princípio que o Tribunal considera derivar do princípio do Estado de Direito e da garantia de acesso à justiça e aos tribunais, consagrados, respectivamente, nos artigos 2º e 20º da Constituição (cfr., a título meramente exemplificativo, os Acórdãos nºs 249/97, 259/00, publicados no Diário da República, II Série, de
17 de Maio de 1997, de 7 de Novembro de 2000, respectivamente, ou, mais recentemente, o Acórdão n.º 131/02, de 4 de Maio de 2002).
Sobre o sentido e alcance do princípio do contraditório no âmbito do Processo Civil ponderou o Tribunal, no já citado Acórdão n.º 259/00, que cita o essencial da anterior jurisprudência sobre a matéria:
“(...) 4.2. O direito de acesso aos tribunais é, entre o mais, o direito a uma solução jurídica dos conflitos, a que se deve chegar em prazo razoável e com observância das garantias de imparcialidade e independência, possibilitando-se, designadamente, um correcto funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada das partes poder aduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e o resultado de umas e outras [cf. o Acórdão n.º 86/88 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 11º, páginas 741 e seguintes)].
É que – sublinhou-se no Acórdão n.º 358/98 (publicado no Diário da República, II série, de 17 de Julho de 1998), repetindo o que se tinha afirmado no Acórdão n.º
249/97 (publicado no Diário da República, II série, de 17 de Maio de 1997) – o processo de um Estado de Direito (processo civil incluído) tem de ser um processo equitativo e leal. E, por isso, nele, cada uma das partes tem de poder expor as suas razões (de facto e de direito) perante o tribunal antes que este tome a sua decisão. É o direito de defesa, que as partes hão-de poder exercer em condições de igualdade. Nisso se analisa, essencialmente, o princípio do contraditório, que vai ínsito no direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20º, n.º 1, da Constituição, que prescreve que 'a todos é assegurado o acesso [...] aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos'. A ideia de que, no Estado de Direito, a resolução judicial dos litígios tem que fazer-se sempre com observância de um due process of law já, de resto, o Tribunal a tinha posto em relevo no Acórdão n.º 404/87 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 10º, páginas 391 e seguintes). E, no Acórdão n.º 62/91 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 18º, páginas 153 e seguintes) - depois de se sublinhar que o princípio da igualdade das partes e o princípio do contraditório 'possuem dignidade constitucional, por derivarem, em última instância, do princípio do Estado de Direito' - acrescentou-se que, por outro lado, esses princípios constituem 'directas emanações do princípio da igualdade'.
[...] Tal como se sublinhou no citado Acórdão n.º 1193/96, a ideia de processo equitativo e leal (due process of law) exige, não apenas um juiz independente e imparcial – um juiz que, ao dizer o direito do caso, o faça mantendo-se alheio, e acima, de influências exteriores, a nada mais obedecendo do que à lei e aos ditames da sua consciência – como também que as partes sejam colocadas em perfeita paridade de condições, por forma a desfrutarem de idênticas possibilidades de obter justiça. Criando-se uma situação de 'indefensão', a sentença só por acaso será justa. [...]”
Também Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª Ed., pp. 163 e 164), assinalam, em sentido fundamentalmente coincidente, que, no âmbito normativo do artigo 20º da Constituição, deve integrar-se ainda “a proibição da indefesa, que consiste na privação ou limitação do direito de defesa do particular perante os órgãos judiciais, junto dos quais se discutem questões que lhe dizem respeito. A violação do direito à tutela judicial efectiva, sob o ponto de vista de limitação do direito de defesa, verificar-se-á sobretudo quando a não observância de normas processuais ou de princípios gerais de processo acarreta a impossibilidade de o particular exercer o seu direito de alegar, daí resultando prejuízos efectivos para os seus interesses”.
Ora, definido assim o conteúdo essencial do princípio do contraditório, em que se integra obviamente a proibição da indefesa (cfr., sobre o tema, o Acórdão n.º
440/94, publicado no Diário da República, II Série, de 1 de Setembro de 1994), tem necessariamente de concluir-se que a solução normativa consagrada no artigo
772º, n.º2, 1ª parte, do CPC, quando aplicável aos casos em que, tendo corrido à revelia a acção em que foi proferida a decisão cuja revisão é requerida, seja alegado, como fundamento da revisão, precisamente, a falta ou nulidade da citação para aquela acção, é efectivamente inconstitucional, por ofensa daquele princípio.
Com efeito, semelhante interpretação normativa retira por completo ao interessado a possibilidade de invocar sequer perante o tribunal a invalidade do acto (citação edital) que, segundo ele, o impediu de apresentar qualquer tipo de defesa, conduzindo a que seja inapelavelmente confrontado com uma decisão judicial cujos fundamentos de facto e de direito não teve - nem tem -, por razão que alega não lhe ser imputável e fica impossibilitado de provar, qualquer oportunidade de contraditar.
É certo, e não se ignora, que o instituto do caso julgado e o estabelecimento de um prazo para a possibilidade de interposição do recurso extraordinário de revisão visam garantir um mínimo de certeza, segurança e estabilidade nas relações jurídicas, valores também eles constitucionalmente tutelados. A verdade, porém, é que a prossecução desses interesses não pode conseguir-se, como aconteceria se prevalecesse a solução normativa que vem questionada, à custa do cerceamento absoluto de qualquer possibilidade de questionar (ainda que num momento posterior, como aconteceria se fosse admitido o recurso de revisão) sequer a validade do acto (citação edital) que visava, precisamente, permitir-lhe contraditar os fundamentos de facto e de direito de uma acção que, afectando direitos fundamentais, viria a ter uma decisão que lhe foi desfavorável.
Repare-se que, no limite, a solução normativa que vem questionada, a prevalecer, poderia conduzir a que qualquer pessoa pudesse ser definitiva e irremediavelmente afectada num seu direito fundamental por decisão judicial proferida em acção para a qual não foi sequer citada.
9. Aqui chegados, ainda que alguma dúvida subsistisse sobre a inconstitucionalidade da interpretação normativa em causa por força deste fundamento geral, sempre seria de considerar, tendo em atenção os valores em presença, que uma tal solução normativa é absolutamente inaceitável, consubstanciando uma cedência manifestamente desproporcionada às exigências de certeza e segurança jurídica que estão na base da solução subjacente ao disposto no artigo 772º, n.º 2, do CPC, se for aplicável a casos em que está em causa, como acontece nos presentes autos, a revisão de uma decisão proferida em acção oficiosa de investigação da paternidade.
III. Decisão
Nestes termos, decide-se:
a) Julgar inconstitucional, por violação do princípio do contraditório, em que se integra a proibição da indefesa, ínsito nos artigos 2º e 20º da Constituição, a norma contida no n.º 2 do artigo 772º do Código de Processo Civil, na parte em que prevê um prazo absolutamente peremptório de cinco anos para a interposição do recurso de revisão, contados desde o trânsito em julgado da sentença a rever, quando interpretada no sentido de ser aplicável aos casos em que a acção na qual foi proferida a decisão cuja revisão é requerida foi uma acção oficiosa de investigação de paternidade, que correu à revelia e seja alegado, para fundamentar o pedido de revisão, a falta ou a nulidade da citação para aquela acção;
b) consequentemente, conceder provimento ao recurso e ordenar a reforma da decisão recorrida em conformidade com o presente juízo de inconstitucionalidade.
Lisboa, 24 de Março de 2004
Gil Galvão Bravo Serra Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Vítor Gomes Luís Nunes de Almeida