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Proc. n.º 357/03
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Em 24 de Outubro de 2002, a A. requereu ao Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa que apreciasse uma reclamação de um acto do ICP – ANACOM
(Autoridade Nacional de Comunicações) de não admissão de um recurso de apelação
(fls. 2 e seguintes).
Na sequência de tal requerimento, o Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa solicitou ao ICP – ANACOM (Autoridade Nacional de Comunicações) que, ao abrigo do disposto no artigo 519º, n.º 1, do Código de Processo Civil, enviasse o original da referida reclamação, bem como o original da deliberação de 17 de Outubro de 2002, tomada sobre a mesma reclamação (fls.
73).
Em cumprimento deste despacho, o ICP – ANACOM (Autoridade Nacional de Comunicações) requereu a junção aos autos do original da reclamação apresentada pela A., bem como de cópia certificada da mencionada deliberação
(fls. 75).
Na reclamação (a fls. 77 e seguintes), a A. havia sustentado, entre o mais, que cabia recurso para os tribunais judiciais das decisões proferidas pelo ICP – ANACOM (Autoridade Nacional de Comunicações) no âmbito da resolução de litígios, devendo consequentemente ser admitido o recurso, por si interposto para o Tribunal da Relação de Lisboa, da decisão do Conselho de Administração do ICP – ANACOM (Autoridade Nacional de Comunicações) com a epígrafe “Resolução do Conflito sobre interligação de redes que opõe a B. à A. e C.”. Mais sustentou a reclamante que a admissibilidade do recurso para os tribunais judiciais resultava do disposto no artigo 18º do Decreto-Lei n.º 415/98, de 31 de Dezembro, em conjugação com os artigos 16º, n.º 3, do mesmo diploma e 29º da Lei n.º 31/86, de 29 de Agosto.
Em complemento da resposta ao já referido despacho de fls. 73 do Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, o ICP – ANACOM (Autoridade Nacional de Comunicações) veio expor, entre o mais, que “sempre considerou contrária à lei e manifestamente inconstitucional a interpretação dos artigos 16º e 18º do Decreto-Lei n.º 415/98, perfilhada pelas reclamantes C. (Proc. n.º 8602/02-8) e A. (Proc. n.º 8599/02)”, tendo por “certa a violação dos artigos 202º, 212º, n.º
3, 165º, n.º 1, al. b) e p), 111º, n.º 1, 2º e 9º, todos da Constituição da República, bem como dos princípios neles consagrados, na interpretação dada aos artigos 16º e 18º do Decreto-Lei n.º 415/98 pela A. e pela C.” (fls. 102 e seguintes).
2. O Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa decidiu, em 18 de Março de 2003, deferir a reclamação apresentada pela A., nos seguintes termos (fls.
132 e seguintes):
“[...] A questão fundamental a apreciar e decidir é a de saber se a deliberação do Conselho de Administração do ICP, tomada no âmbito da interligação entre redes públicas de telecomunicações, admite recurso para o tribunal da relação. A matéria de facto com interesse é a que resulta do que fica descrito. O já mencionado Decreto-Lei n° 415/98 inter alia regula o regime de interligação entre redes públicas de telecomunicações. O art. 18° n° 1 do mesmo Decreto-Lei comete ao ICP a competência para, a pedido das partes, resolver quaisquer litígios entre os operadores de redes públicas de telecomunicações e prestadores desses serviços. No n° 5 do referido art. 18° dispõe-se que das decisões do ICP cabe recurso para os tribunais judiciais. E no n° 6 do art. 18° dispõe-se que em tudo o que não estiver expressamente previsto no art. 18° é aplicável a Lei n° 31/86 (Lei de Bases da Arbitragem Voluntária), também já mencionada, cujo art. 29° n° 1 preceitua que da decisão arbitral cabem para o tribunal da relação os mesmos recursos que caberiam da sentença do tribunal de comarca. Por sua vez, o art. 16° n° 3 do Decreto-Lei estabelece que, quando as entidades não terminem em certo prazo as negociações do obrigatório acordo de interligação, «compete ao ICP proferir decisão fundamentada nos termos do art.
18°» (sic). Para compreensão do alcance desta norma importa dizer que o art. 18° n° 4 diz que a decisão do ICP deve ser devidamente fundamentada e fixar um prazo para a sua execução. Do confronto do art. 16° n° 3 e do art. 18° n° 4 decorre que a remessa do art.
16° n° 3 para o art. 18° não tem em vista somente a fundamentação da decisão ou a sua execução. Se o objectivo do art. 16° n° 3 fosse assegurar a fundamentação da decisão, bastaria dizê-lo singelamente, sem aludir ao art. 18°. E se o objectivo do art. 16° n° 3 fosse o de assegurar a fundamentação da decisão e também a fixação do prazo para a execução, referiria concretamente o art. 18° n°
3, e não apenas o art. 18° em geral. Significa isto que, por força da remessa para o art. 18°, à decisão proferida em cumprimento do art. 16° n° 3 aplica-se exactamente o mesmo regime que à proferida em sede de resolução de litígios, especificamente prevista no art.
18°. Esta proposição tem lógica porque, num caso e noutro, os interessados não se entendem, apenas acontecendo que na situação do art. 16° n° 3 há falta de acordo entre as partes quanto à interligação, ao passo que na previsão do art.
18° há litígio nessa mesma matéria. Deste normativo, entre si conjugado, decorre com clareza que a deliberação do Conselho Administrativo do ICP, tomada no âmbito da interligação entre redes públicas de telecomunicações, admite recurso para o tribunal da relação. Salvo o devido respeito, não é inquestionável que a decisão em causa consubstancie um acto administrativo, o que desde logo implica a rejeição do qualificativo de erro indesculpável. Nota-se, sumariamente, que o acto administrativo regula as relações jurídicas entre o Estado-Administração e os particulares, ao passo que a decisão em causa, ainda que o ICP seja entidade dotada de jus imperii e, assim, emanação do Estado-Administração, regula relações jurídicas entre particulares, que não relações jurídicas administrativas, ainda que de indiscutível interesse público. A regulação das relações jurídicas entre particulares pelo Estado-Administração não é a regra, mas não é original: o Instituto da Propriedade Industrial dirime as questões entre particulares sobre os direitos privativos da propriedade industrial sem que, neste domínio, as suas decisões revistam a natureza de actos administrativos, decisões essas de que, aliás, nos termos da lei – arts. 38° a
43° do Código da Propriedade Industrial, aprovado pelo Decreto-Lei n° 16/95, de
24 de Janeiro, e 2° do diploma preambular, que, nesta parte, manteve o regime do Código da Propriedade Industrial aprovado pelo Decreto n° 30679, de 24 de Agosto de 1940 – se recorre para os tribunais judiciais, sem que alguma vez, tanto quanto se sabe, tenha sido questionada a respectiva constitucionalidade; das decisões do Ministro da Administração Interna sobre a aquisição ou perda da nacionalidade portuguesa recorre-se para os tribunais judiciais (recte para o Tribunal da Relação de Lisboa) – arts. 6° e 7° da Lei n° 37/81, de 3 de Outubro
(Lei da Nacionalidade) e 15° e 38° n.ºs 1 e 3 do Decreto-Lei n° 322/85, de 12 de Agosto (Regulamento da Nacionalidade Portuguesa) –, porque aqui a intervenção da Administração destina-se a regular o estatuto pessoal, que não é matéria administrativa e, sim, exclusivamente, matéria de direito privado. Diga-se ainda que o direito adjectivo é o instrumento para a aplicação do direito substantivo. Quer dizer, o direito substantivo é que qualifica e regula as relações jurídicas, não decorrendo essa qualificação ou regulação do direito processual adoptado. No entanto, diga-se também, as normas processuais emergentes do CPA são aplicáveis ou não o são, consoante o órgão decisor é ou não órgão da Administração – art. 2º n.ºs 1 e 2, alínea b), do CPA –, e não por a decisão a proferir constituir ou não constituir um acto administrativo. Por tudo isto se rejeitou o qualificativo de erro indesculpável. Erro, ainda se pode admitir que sim, indesculpável é que nunca. É, assim, inadequado o fundamento colhido no art. 34° n° 3 do CPA, que foi usado para a não apreciação dos requerimentos de interposição de recurso ou da presente reclamação. De qualquer modo, conforme é uso jurisprudencial corrente com assento no art.
687° n° 3 do CPC, a decisão a recair sobre o requerimento de interposição do recurso é meramente formal e o recurso só pode deixar de ser admitido quando a decisão não admite recurso, ou este foi interposto fora de tempo, ou o requerente não tem as condições necessárias para recorrer. Por exclusão, se o tribunal ad quem indicado no requerimento de interposição do recurso não for o competente para dele conhecer, o recurso não pode deixar de ser admitido. E aqui a entidade recorrida pode optar por dois caminhos: ou admite o recurso interposto para o tribunal que, em seu entender, é incompetente para dele conhecer, hipótese em que ao tribunal de recurso cabe decidir sobre a competência para o respectivo conhecimento, nos termos do art. 700° n.º 1, alínea e), do CPC (ou, se o recurso for interposto para os tribunais administrativos, nos termos do art. 27° n° 1, alínea b), do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), caso que poderá desencadear o procedimento previsto no art. 14° n° 2 deste mesmo Código); ou, de harmonia com o princípio da adequação formal consagrado no art. 265°-A do CPC, concretizado em matéria de recursos na 2ª parte do citado art. 687° n° 3, aplicável também aos órgãos da Administração na parte respeitante à impugnação dos actos administrativos ex vi do art. 1º do CPTA, manda o recurso seguir para o tribunal que, em seu entender,
é o competente para dele conhecer. Deste modo, e porque, em resumo, se considera que a deliberação em causa não constitui acto administrativo, nem se configura como decisão que tenha por objecto relações jurídicas administrativas, sendo-lhe aplicável o regime das decisões dos tribunais arbitrais, defere-se a presente reclamação, pelo que a deliberação reclamada deve ser substituída por outra que admita o recurso ora em causa.
[...].”
3. Inconformado com esta decisão, o ICP – ANACOM (Autoridade Nacional de Comunicações) dela interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, nos seguintes termos (fls. 138):
“[...]
– Pretende-se ver apreciada a inconstitucionalidade das normas dos artigos 16°, n.º 3, e 18° do Decreto-Lei n.º 415/98, de 31 de Dezembro, na interpretação do despacho recorrido, segundo a qual a remissão operada pelo artigo 16°, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 415/98, de 31 de Dezembro, para o artigo 18° do mesmo diploma se refere aos critérios formais da própria decisão (ao regime processual a ela atinente) e não apenas aos respectivos critérios materiais a considerar;
– A interpretação de tais normas viola os seguintes princípios constitucionais: da reserva de competência judicial – artigo 202° da Constituição da República e, em especial, da reserva de jurisdição administrativa constante do artigo 212°, n.º 3, da Constituição da República; da reserva da competência legislativa da Assembleia da República – artigo 165°, n.º 1, alíneas b) e p), da Constituição da República; da separação de poderes plasmado no artigo 111°, n.º 1, da Constituição da República e do Estado de direito democrático expressamente consagrado nos artigos 2° e 9° da Constituição da República; Conforme oportunamente invocado no requerimento pelo ora Recorrente apresentado, em 05/03/03, a fls. dos autos.
[...].”
O recurso para o Tribunal Constitucional foi admitido por despacho de fls. 139.
4. Nas alegações que produziu junto do Tribunal Constitucional (fls. 141 e seguintes), o ICP – ANACOM (Autoridade Nacional de Comunicações) formulou as seguintes conclusões:
“A – A deliberação adoptada pelo Conselho de Administração do ICP –ANACOM, em
24.09.2002, consiste num verdadeiro acto administrativo –: em termos orgânico-subjectivos trata-se de um acto emanado de uma entidade de direito público, integrante da Administração Pública; em termos materiais, é um acto que visa o cumprimento da legalidade e a prossecução do interesse público, definindo uma situação individual e concreta, mediante competente exercício de um poder unilateral sobre uma matéria integrante da função administrativa; em termos formais, é um acto regulado por normas de Direito Administrativo; Deste modo, B – A rejeição do recurso de apelação pela A. interposto para o Tribunal da Relação de Lisboa da deliberação do ICP – ANACOM de 24.09.2002 revela-se inteiramente legal e adequada, uma vez que, como na respectiva deliberação, datada de 08.10.2002, se fez constar: «qualquer recurso da deliberação de 24 de Setembro deve (...) ser interposto para a jurisdição administrativa»; C – Assim não tendo decidido, fez o Tribunal da Relação de Lisboa uma errónea apreciação do caso sub judice e uma não menos incorrecta interpretação e aplicação das normas constantes dos artigos 16°, n.º 3, e 18° do Decreto-Lei n.º
415/98, de 31 de Dezembro, tendo considerado que a deliberação do ICP – ANACOM de 24.09.2002 não constituía um acto administrativo e que a remissão operada pelo primeiro normativo dizia respeito a todo o artigo 18° do referido diploma, nele se incluindo a referência ao recurso para os tribunais judiciais (n.º 5 do artigo 18°), com aplicação das regras e procedimentos próprios da arbitragem
(n.º 6 do artigo 18°);. D – Ignorando, como unanimemente é explicitado com maior ou menor desenvolvimento pelos jurisconsultos consultados, cujos pareceres se juntaram aos autos, que tal interpretação é contrária a princípios estruturantes do ordenamento jurídico-constitucional português, traduzindo-se numa flagrante inconstitucionalidade material e orgânica. Mais precisamente E – A interpretação do Tribunal da Relação de Lisboa, dando prevalência aos aspectos formais ou adjectivos, em preterição das questões substantivas atinentes à natureza e regime próprios do acto em causa, viola o princípio da reserva de competência judicial (artigo 202° da C.R.P.) e, em especial, o princípio da reserva de jurisdição administrativa (artigo 212°, 3, da C.R.P.), na medida em que não podem os tribunais judiciais julgar os recursos dos actos administrativos, cuja competência está, como é sabido, constitucionalmente atribuída a uma jurisdição própria: os tribunais administrativos; F – Tal interpretação dos normativos referidos em C, atenta a falta de autorização legislativa habilitante, comporta ainda uma inconstitucionalidade orgânica numa tripla acepção: em primeiro lugar, invadindo a esfera de competência material conferida pela Constituição aos tribunais administrativos, a interpretação da Relação de Lisboa viola a reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República em matéria de organização e competência dos tribunais (artigo 165°, 1, p), da C.R.P.); em segundo lugar, assume uma natureza derrogatória face ao artigo 2°, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo, afastando direitos, liberdades e garantias dos administrados consagrados naquele Código, em violação do disposto no artigo 165°, n.º 1, al. b), da C.R.P.; em terceiro lugar, a configuração de um processo arbitral necessário supostamente resultante das normas referenciadas do Decreto-Lei n.º
415/98, para além de afrontar o próprio princípio da reserva da função jurisdicional (artigo 202° da C.R.P.) – subtraindo aos tribunais matérias que
àqueles competiria apreciar –, colide com a reserva de competência legislativa da Assembleia da República na parte que diz respeito à organização e competência das entidades não jurisdicionais de composição de conflitos (artigo 165°, n.º 1, p), da C.R.P.); Acresce G – Que a interpretação e aplicação que dos artigos 16°, n.º 3, e 18° do Decreto-Lei n.º 415/98 fez o Tribunal da Relação de Lisboa viola o intangível princípio da separação de poderes (artigo 11º, n.º 1, da C.R.P.) e, consequentemente, o princípio do Estado de direito democrático (artigos 2° e 9° da C.R.P.); Porquanto, H – O Tribunal da Relação de Lisboa não se limitou a anular a deliberação adoptada pelo ICP – ANACOM, como sempre sucede, por óbvias e conhecidas razões no âmbito do contencioso administrativo, antes tendo ordenado a um órgão da Administração Pública – o Conselho de Administração do ICP – ANACOM –, como se de uma comissão arbitral se tratasse, uma concreta e determinada actuação positiva: que profira uma deliberação com determinado sentido.”
Com as alegações foram juntos 5 pareceres jurídicos (fls. 165 e seguintes)
5. A recorrida A. também produziu alegações (fls. 320 e seguintes), tendo formulado nelas as conclusões que seguem:
“A) A posição do ICP – ANACOM no processo que conduziu à decisão ora recorrida
é, de acordo com o juízo do órgão jurisdicional recorrido, a posição de uma autoridade de natureza arbitral, ou, se se quiser, a de uma autoridade que proferiu uma decisão de natureza arbitral. B) O ICP – ANACOM não constitui, à luz dessa qualificação, uma parte no Proc. n.º 8599/02-2 da Relação de Lisboa. Nem se apresenta, a nenhum outro título, como uma entidade dotada de legitimidade para interpor recurso, dentro da ordem dos tribunais judiciais, da decisão ora recorrida. C) Enquanto autor de uma decisão arbitral, equivalente a uma decisão judicial de primeira instância, o ICP – ANACOM não preenche, portanto, o requisito de legitimidade estabelecido na alínea b) do n.º 1 do artigo 72º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (Lei do Tribunal Constitucional), para a interposição de recursos de fiscalização concreta. D) Para que o ICP – ANACOM adquirisse essa legitimidade, seria necessário que perante o Tribunal Constitucional viesse questionar a constitucionalidade da norma por aplicação da qual a sua deliberação de 24 de Setembro de 2002 foi qualificada como decisão arbitral. E) O Recorrente, ao não pôr em dúvida, do ponto de vista constitucional, a interpretação do despacho recorrido de que a deliberação de 24 de Setembro de
2002 é uma decisão arbitral, e não um acto administrativo, perde toda a legitimidade para suscitar quaisquer outras questões de constitucionalidade. F) No requerimento de interposição do recurso, o ICP – ANACOM afirma pretender ver apreciada a constitucionalidade das normas dos artigos 16º, n.º 3, e 18º do Decreto-Lei n.º 415/98, «na interpretação do despacho recorrido, segundo a qual a remissão operada pelo artigo 16º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 415/98, de 31 de Dezembro, para o artigo 18º do mesmo diploma se refere aos critérios formais da própria decisão (ao regime processual a ela atinente) e não apenas aos respectivos critérios materiais a considerar». G) Ao definir nestes termos a interpretação que o Tribunal a quo adoptou relativamente às normas impugnadas, o Recorrente amputou-a dum elemento essencial à compreensão da decisão recorrida e à própria utilidade do presente recurso – o de que, na interpretação expressamente feita pelo despacho recorrido, a deliberação de 24 de Setembro de 2002 não constitui um acto administrativo. H) O presente recurso claudica, assim, ao atribuir ao despacho recorrido uma interpretação das normas impugnadas diferente daquela com que tais normas foram efectivamente aplicadas. Esta circunstância constitui só por si obstáculo a que o Tribunal Constitucional conheça do seu objecto. I) Deve também questionar-se a possibilidade de conhecimento do objecto do presente recurso, em virtude de o Recorrente ter vindo perante a Relação – sob a forma de requerimento e a pretexto de dar conhecimento da tramitação de outro processo sem conexão formal com este – invocar as razões de inconstitucionalidade que não suscitou na decisão sobre a admissibilidade do recurso ou no momento da remessa dos autos ao Tribunal de Relação. J) A descrição dos fundamentos do recurso mostra, com todo o detalhe, a constante presença de uma petição de princípio quanto à qualificação jurídica da deliberação tomada em 24 de Setembro de 2002 pelo ICP –ANACOM, que deu origem ao recurso de apelação para a Relação de Lisboa. K) Segundo a interpretação que o Tribunal a quo adoptou relativamente à norma constante do artigo 16º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 415/98, a deliberação de 24 de Setembro de 2002 não constitui uma decisão administrativa. Constitui, sim, uma decisão arbitral, proferida portanto no exercício de uma competência arbitral e por uma autoridade que actuou na qualidade de órgão arbitral. L) Ora acontece que em face dessa interpretação, efectivamente feita e aplicada pelo despacho recorrido, todos os argumentos de inconstitucionalidade alegados pelo Recorrente perdem sentido. M) Perde sentido, desde logo, a alegação de que a norma impugnada ofende a reserva de jurisdição dos tribunais administrativos. Como é absolutamente evidente, só seria concebível a ofensa de tal princípio se o despacho recorrido tivesse interpretado a norma do artigo 16º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 415/98 no sentido de ver nele a atribuição de uma competência de natureza administrativa, embora sujeita ao controlo dos tribunais judiciais por via da aplicação do regime de recursos das decisões arbitrais. N) Igualmente inútil – exactamente à luz dos mesmos motivos – seria a discussão acerca da competência do Governo para determinar a aplicação a uma decisão administrativa do regime processual das decisões arbitrais, vista essa competência à luz da reserva de competência da Assembleia da República para legislar em matéria de direitos, liberdades e garantias. O) O vício lógico que afecta toda a fundamentação do presente recurso transparece, também, na alegação de que a norma impugnada, de acordo com a interpretação do despacho recorrido, teria ofendido a reserva de competência legislativa da Assembleia da República por ter vindo atribuir funções jurisdicionais a entidades administrativas. P) Finalmente, e sempre à luz da interpretação e qualificação feitas pelo despacho recorrido, improcedem radicalmente todas as alegações de ofensa do princípio da separação de poderes e do princípio do Estado de direito democrático. Tendo o ICP – ANACOM agido, em 24 de Setembro de 2002, como órgão de natureza arbitral, o recurso de apelação para o Tribunal de Relação, incluindo a reclamação que conduziu à prolação do despacho recorrido, não pode em caso nenhum envolver intromissão do poder judicial na esfera da função administrativa. Q) A interligação de redes assenta numa relação contratual entre os operadores, e a intervenção do ICP resulta em especial da circunstância de a lei impor a certos desses operadores (aqueles que detêm um poder de mercado significativo, conforme os artigos 6º e 7º do Decreto-Lei n.º 415/98) uma obrigação de celebrar tais acordos. A aplicação concreta deste dever de contratar exige, naturalmente, a concretização das condições substanciais a que o contrato deverá obedecer, a qual, a não existir uma autoridade administrativa dotada dos necessários poderes de especificação do conteúdo dessas condições, teria de ser feita a posteriori nos tribunais. R) Foi para evitar a discussão morosa nos tribunais das condições concretas em que deverá ser imposto o dever de contratar que o artigo 16º do Decreto-Lei n.º
415/98 veio dar ao ICP o poder de intervir nas negociações, com vista a determinar a inclusão de certas matérias, o estabelecimento de certas condições específicas ou o prazo de conclusão do acordo. S) Mas o facto de a lei lhe atribuir esse poder não significa, de modo nenhum, que a persistência do desacordo, traduzido na falta de celebração do acordo dentro do prazo fixado pelo ICP – ANACOM, retire a tal situação a natureza de um litígio entre dois operadores e a transforme numa situação puramente administrativa, ou de incumprimento de uma imposição administrativa.”
6. Foi, de seguida, proferido despacho pela relatora, ordenando a notificação do recorrente para se pronunciar sobre as questões prévias suscitadas nas alegações da recorrida (fls. 339).
Na sequência de tal despacho, veio o recorrente dizer, em síntese, o seguinte (fls. 353 e seguintes):
“[..] Da alegada ilegitimidade da recorrente ICP – ANACOM
[...] Em primeiro lugar, não é exacto que a recorrente apenas tenha configurado a questão da inconstitucionalidade em termos gerais, por referência a um decreto-lei, sem indicação da norma infra-constitucional tida por violada.[...].
[...] é claro que a recorrente identificou as normas, ou melhor, a interpretação das normas constantes dos artigos 16º, n.º 3, e 18º do Decreto-Lei n.º 415/98, de 31 de Dezembro, que tem por contrária à Lei Fundamental. [...] Em segundo lugar, é totalmente falso que a ora requerente não tenha posto em dúvida, do ponto de vista constitucional, a interpretação resultante do despacho recorrido, de acordo com a qual a deliberação de 24 de Setembro é uma decisão arbitral e não um acto administrativo.
[...] Parafraseando a recorrida, o ICP – ANACOM questiona, precisamente, a constitucionalidade da norma por aplicação da qual a sua deliberação de 24 de Setembro de 2002 foi qualificada como decisão arbitral. Com efeito, o que se pretende fazer ver no presente recurso é que tal interpretação não se coaduna com princípios e regras estruturantes do ordenamento jurídico-constitucional português, que assim resultam inapelavelmente violados. Por outras palavras, numa interpretação conforme à Constituição dos normativos invocados na decisão, o Tribunal da Relação de Lisboa não podia ter considerado que a deliberação em causa constitui uma decisão arbitral e não um acto administrativo. Tendo a questão da constitucionalidade sido suscitada, nestes exactos termos, pelo ICP – ANACOM, não pode deixar de improceder a invocada ilegitimidade para recorrer, face ao preceituado no artigo 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional. Da aplicação pelo tribunal a quo da norma impugnada
[...] Diz a recorrida, e com razão, que o regime dos actos previstos no n.º 3 do artigo 16º e a determinação do regime de recurso aplicável são dois aspectos incindíveis da interpretação do preceito legal. Não se vê é como possa tal asserção ter os efeitos que lhe são, pela recorrida, assacados.
[...]
[...] o presente recurso não atribui ao despacho recorrido uma interpretação das normas impugnadas diversa daquela com que tais normas foram aplicadas. O que sucede, e é bem diferente, é que no presente recurso se propugna uma interpretação das normas impugnadas conforme com a Constituição e distinta daquela que fez vencimento na Relação de Lisboa, com as inerentes consequências ao nível das regras processuais aplicáveis.[...] Da arguição prévia da inconstitucionalidade
[...] Em primeiro lugar, não se alcança por que razão considera a recorrida que aquele
[remessa do original da reclamação ao Tribunal da Relação de Lisboa] era o momento processualmente adequado ou relevante, para o efeito [arguição das inconstitucionalidades] [...]. Em segundo lugar, esquece a recorrida ou faz por esquecer, que já muito antes tinha o ICP – ANACOM suscitado a inconstitucionalidade. Tenha-se em consideração, o que a respeito da jurisdição competente se escreveu na deliberação do ICP – ANACOM de 8 de Outubro de 2002, com expressa referência, entre outros, ao artigo 212º, n.º 3, da Constituição. Em terceiro lugar, contrariamente ao que pretende a recorrida, a lei não define os supostos momentos “processualmente adequados” para suscitar as questões de constitucionalidade. [...]
[...]
É que, em quarto lugar, não se pode ignorar a atipicidade do presente processo. Nele não foi – nem tinha porventura que ser – dada a palavra à recorrente, para expor e requerer o que tivesse por conveniente, como na generalidade dos processos judiciais sucede. Razão pela qual teve a mesma que suscitar a questão da constitucionalidade, não se nega, em requerimento autónomo. De tal modo que,
à luz do entendimento do Tribunal Constitucional [...], ainda fosse possível ao juiz a quo, – como manifestamente foi e resulta dos próprios termos do despacho recorrido – apreciar a questão da constitucionalidade.
[...].”
7. Conforme a delimitação realizada pelo recorrente no requerimento de interposição do recurso (supra, 3.), o objecto deste é constituído pelas “normas dos artigos 16º, n.º 3, e 18º do Decreto-Lei n.º 415/98, de 31 de Dezembro, na interpretação [...] segundo a qual a remissão operada pelo artigo 16º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 415/98, de 31 de Dezembro, para o artigo 18º do mesmo diploma se refere aos critérios formais da própria decisão (ao regime processual a ela atinente) e não apenas aos respectivos critérios materiais a considerar”.
O Decreto-Lei n.º 415/98, de 31 de Dezembro – que estabelece o regime da interligação entre redes públicas de telecomunicações e define os princípios gerais a que deve obedecer o Plano Nacional de Numeração –, dispõe o seguinte nos seus artigos 16º e 18º:
“Artigo 16º Intervenção do Instituto das Comunicações de Portugal nas negociações de acordos de interligação
1 – Tendo em conta os objectivos e os princípios orientadores referidos no artigo 4º, o ICP pode, a qualquer momento, por iniciativa própria, e deve, a pedido de qualquer das partes, intervir nas negociações dos acordos de interligação, determinando: a) A inclusão de determinadas matérias no acordo de interligação; b) O estabelecimento de condições específicas que devem ser observadas por uma ou mais partes intervenientes no acordo de interligação; c) A conclusão das negociações do acordo de interligação no prazo de 30 dias, excepto decisão em contrário por parte do ICP.
[...]
3 – Quando as entidades não celebrem o acordo de interligação no prazo estabelecido na alínea c) do n.º 1, compete ao ICP proferir decisão fundamentada, nos termos do artigo 18.º”.
“Artigo 18º Resolução de litígios
1 – Compete ao ICP, a pedido das partes, resolver quaisquer litígios entre os operadores de redes públicas de telecomunicações e prestadores de serviços surgidos no âmbito do presente diploma.
2 – A intervenção do ICP poderá ser solicitada no prazo máximo de 60 dias a contar da data do conhecimento do facto que deu origem ao litígio.
3 – A decisão do ICP será proferida no prazo máximo de seis meses a contar da formulação do pedido, tendo em conta, nomeadamente, os seguintes critérios: a) Os interesses dos utilizadores finais; b) O interesse público; c) As obrigações ou restrições regulamentares impostas a qualquer das partes; d) O interesse de estimular ofertas de mercado inovadoras e de oferecer aos utilizadores uma vasta gama de serviços de telecomunicações a nível nacional e comunitário; e) A existência de alternativas técnicas e comercialmente viáveis à interligação pedida; f) O interesse de assegurar condições de acesso idênticas; g) A necessidade de manter a integridade das redes públicas de telecomunicações e a interoperabilidade dos serviços; h) A natureza do pedido face aos recursos disponíveis para o satisfazer; i) As posições de mercado relativas das partes; j) A promoção de concorrência; l) A necessidade de conservar um serviço universal de telecomunicações.
4 – A decisão do ICP deve ser devidamente fundamentada e fixar um prazo para a sua execução.
5 – Das decisões do ICP cabe recurso para os tribunais judiciais, nos termos da lei geral.
6 – Em tudo o que não estiver expressamente previsto no presente artigo é aplicável a Lei n.º 31/86, de 29 de Agosto.”
Ora, segundo o recorrente (supra, 4. e 6.), e em síntese, a interpretação efectuada na decisão recorrida das normas transcritas seria inconstitucional sob dois pontos de vista: por um lado, por entender que a já referida deliberação do ICP – ANACOM (Autoridade Nacional de Comunicações) de 24 de Setembro de 2002 – que tem por epígrafe “Resolução do conflito sobre interligação de redes que opõe a B. à A. e C.” (cfr. fls. 9 e seguintes) – não constituía um acto administrativo, mas uma decisão sujeita ao regime das decisões dos tribunais arbitrais; por outro lado, por considerar que de tal deliberação cabia recurso para os tribunais judiciais (e não para os tribunais administrativos).
Assim sendo, parece evidente que o objecto do presente recurso não pode abranger todas as normas constantes do transcrito artigo 18º. Apenas estão em causa as normas dos n.ºs 5 e 6 deste preceito legal.
Sintetizando, o objecto do presente recurso é constituído pela norma do artigo 16º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 415/98, de 31 de Dezembro, em conjugação com o artigo 18º, n.º s 5 e 6, do mesmo diploma, quando interpretada no sentido de que a deliberação do Instituto das Comunicações de Portugal (ICP), tomada no âmbito da interligação entre redes públicas de telecomunicações, admite recurso para o tribunal da relação, por lhe ser aplicável o regime das decisões arbitrais.
8. A apreciação desta questão de constitucionalidade pelo Tribunal Constitucional depende, obviamente, da verificação dos pressupostos processuais do presente recurso.
Sendo entendimento da relatora que, no caso dos autos, um desses pressupostos processuais não se encontra preenchido – pois que da decisão impugnada não cabe recurso para o Tribunal Constitucional –, foi notificado às partes, nos termos do artigo 3º, n.º 3, do Código de Processo Civil, o parecer de fls. 364 e seguintes, em que a relatora admitia como plausível que o Tribunal Constitucional viesse a não tomar conhecimento do recurso:
“De acordo com o disposto no n.º 2 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, o recurso previsto na alínea b) do mesmo preceito legal – aquele que foi interposto pelo recorrente (supra, 3.) – apenas cabe de decisões que não admitam recurso ordinário, por a lei o não prever ou por já haverem sido esgotados todos os que no caso cabiam, salvo os destinados a uniformização de jurisprudência. Visa o referido n.º 2 evitar que o Tribunal Constitucional se pronuncie sobre normas ou interpretações normativas aplicadas em decisões que não sejam finais, isto é, que ainda possam ser revogadas por outras provenientes do tribunal que as proferiu ou de tribunal superior: trata-se, em suma, de salvaguardar a própria utilidade do recurso para o Tribunal Constitucional. Ora, apesar de a decisão aqui recorrida (que é uma decisão que admitiu um recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa) não estar sujeita a recurso ordinário, verifica-se que, nos termos do artigo 689º, n.º 2, do Código de Processo Civil, ela ainda pode ser revogada pelo próprio Tribunal da Relação de Lisboa. Na verdade, segundo esta disposição legal, a decisão de admissão de um recurso, proferida pelo presidente do tribunal a que este é dirigido, «não obsta a que o tribunal ao qual o recurso é dirigido decida em sentido contrário». Assim sendo, a decisão recorrida não é uma decisão final, pois que pode ainda ser revogada pelo tribunal recorrido. Diferente seria a situação se o presidente do tribunal recorrido tivesse proferido uma decisão de não admissão do recurso. Neste caso, e de acordo com o disposto no n.º 3 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, essa decisão seria recorrível para o Tribunal Constitucional: o que se compreende, dado que nesse caso o tribunal recorrido já não poderia decidir em sentido contrário ao da decisão do seu presidente. Entendendo a relatora que da decisão ora recorrida não cabe recurso para o Tribunal Constitucional, pelos fundamentos expostos, cumpre, nos termos do artigo 3º, n.º 3, do Código de Processo Civil, ordenar a notificação das partes para, no prazo de 10 dias, se pronunciarem, querendo, sobre tal questão prévia, susceptível de, por si só, justificar o não conhecimento do objecto do recurso.”
9. O recorrente ICP – ANACOM respondeu ao parecer, invocando, em síntese
(fls. 384 a 388):
“[...]
[...] facilmente se verifica que a decisão que foi objecto de recurso para o Tribunal Constitucional não admite recurso ordinário. Deste modo, o entendimento da Exma. Conselheira Relatora fica-se a dever a uma interpretação restritiva do mencionado artigo 70º, n.º 2, da LTC [...] que resulta, em bom rigor, da leitura conjugada daquele preceito com o artigo 689º, n.º 2, do C.P.C.
[...].
[...] não pode a mesma merecer a concordância da recorrente pela seguinte ordem de razões: Em primeiro lugar, por uma razão de índole histórico-sistemática. Tanto quanto julgamos saber, o artigo 689°, n.º 2, do C.P.C. é anterior à publicação da LTC e
à actual formulação do artigo 70°, n.º 2, na redacção introduzida pela Lei n.º
13-A/98. O que significa que, na tese do Parecer, a referida norma da LTC deveria ter ressalvado o caso previsto no artigo 689°, n.º 2, coisa que não fez, devendo entender-se, à luz do disposto no artigo 9°, n.º 3, do C.Civ., que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados. Em segundo lugar, a tese explanada no douto Parecer – tributária, ao que ali se diz, de um princípio de salvaguarda da utilidade do recurso para o Tribunal Constitucional – tem um reverso e padece, salvo o devido respeito, de uma falha incontornável. É que, se é verdade que o Tribunal Constitucional está configurado como tribunal último de recurso na ordem jurisdicional no que às questões de constitucionalidade concerne, não é menos verdade que, em consonância, as suas decisões fazem caso julgado e vinculam todos os demais tribunais [...].
[...] Assim, de acordo com o próprio ensinamento do Tribunal Constitucional, a utilidade a retirar do presente recurso para as partes e para a própria economia do processo é máxima. A questão suscitada ficará definitivamente resolvida, qualquer que seja a pronúncia do Tribunal Constitucional sobre a questão de constitucionalidade que lhe é colocada (com inevitável extinção do processo, uma vez alterado o despacho do Presidente da Relação de Lisboa, em conformidade com a decisão do Tribunal Constitucional, caso o recurso neste último Tribunal seja considerado procedente, ou com definitiva admissão do recurso pela ora recorrida interposto para o Tribunal da Relação na hipótese de vir a ser julgada negativamente pelo Tribunal Constitucional a questão de constitucionalidade). Em qualquer um dos casos obter-se-á, insiste-se, uma definição da situação que não mais pode ser contestada e que, desse modo, obstará a novos incidentes/recursos de constitucionalidade. De outro modo, o efeito será precisamente o contrário. A baixa dos autos ao Tribunal da Relação de Lisboa sem decisão sobre a questão de constitucionalidade suscitada determinará – tem-se por certo – nova subida do processo ao Tribunal Constitucional, qualquer que venha a ser a pronúncia da Relação de Lisboa. Ora, assim sendo, estando devidamente enquadrada e explicitada a questão de constitucionalidade colocada ao Tribunal Constitucional – e não cabendo recurso ordinário da decisão que aplicou a norma julgada inconstitucional na interpretação oportunamente referida – não faz sentido, salvo o devido respeito, relegar a apreciação da questão para momento posterior só porque, conforme resulta do disposto no artigo 689°, n.º 2, do C.P.C. e é referido pela Exma. Conselheira Relatora, o tribunal recorrido pode ainda revogar a decisão. Com efeito, o Parecer em análise assenta, todo ele, numa hipótese que, não se vindo a verificar, deita por terra os pressupostos que lhe estão inerentes. Na verdade, só não estaremos perante uma «decisão final» se o Tribunal da Relação de Lisboa, por sua livre e própria iniciativa, designadamente por força das atribuições conferidas ao relator (artigo 700°, n.º 1, al. e), do C.P.C.), decidir reapreciar a questão já julgada pelo respectivo Presidente, fazendo uso do poder que lhe é conferido pelo artigo 689°, n.º 2, do C.P.C. Ora, nada, absolutamente nada, garante que o Tribunal da Relação de Lisboa venha a apreciar novamente a questão e, menos ainda, que o venha a fazer em sentido contrário ao decidido pelo seu próprio Presidente. Salvo o devido respeito, trata-se de elemento essencial, que não terá sido devidamente sopesado no Parecer em questão. Dito de outro modo, o Parecer da Exma. Conselheira Relatora está construído na base de uma hipótese ou suposição que pode não ocorrer. Caso em que, não se vê como possa resultar salvaguardado o princípio da economia processual, da tutela jurisdicional efectiva em prazo razoável e o próprio direito ao recurso aos tribunais (no caso vertente, o direito ao recurso para o Tribunal Constitucional) Com efeito, a ora recorrente não desconhece a orientação resultante do Ac. 21/87 do Tribunal Constitucional, que tem vindo a ser perfilhada pelo Tribunal, segundo a qual, «a lógica desta solução consiste em só admitir a intervenção do TC quando a questão tenha sido examinada e decidida por todas as instâncias possíveis na ordem judiciária respectiva, por forma a não facilitar o levantamento gratuito de questões de inconstitucionalidade e de modo a poupar a intervenção desnecessária do TC» [...]. Sucede é que, no caso sub judice não há outra instância senão o Tribunal da Relação, o qual já examinou e decidiu a questão, sendo incerto que o venha a fazer novamente. Quanto ao eventual levantamento gratuito da questão, os elementos carreados para o processo, designadamente o conteúdo e sentido dos pareceres juntos aos autos, afastam liminarmente tal possibilidade. Por último, tendo-se por certa e incontornável a intervenção do Tribunal Constitucional, atenta a natureza da questão suscitada, certo é que, na perspectiva da economia processual e dos demais princípios e direitos atrás invocados, bom e desejável seria que a mesma ocorresse já, sem mais delongas.
[...].”
Por sua vez, a recorrida A. pronunciou-se nos seguintes termos (fls.
391 a 394):
“[...] I. [...] No que respeita à natureza específica da questão prévia levantada, a Recorrida pode apenas observar que a interpretação assumida no referido Parecer representa uma aplicação do artigo 70º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional feita em consonância com o espírito desta norma. As decisões liminares de admissão dos recursos não são decisões finais dentro do respectivo processo, pelo que a discussão da sua constitucionalidade perante o Tribunal Constitucional iria confrontar-se com a possibilidade de julgamento da mesma questão no próprio tribunal a quo. E não obsta à rejeição do recurso para o Tribunal Constitucional o argumento de que a sua intervenção, neste momento, teria a utilidade de impedir que a Relação de Lisboa, na decisão final sobre a admissibilidade do recurso interposto pela ora Recorrida, reincidisse na interpretação feita pelo seu Presidente – e que a ora Recorrente sustenta ser inconstitucional. Este argumento, se fosse procedente, valeria também contra o requisito da exaustão dos recursos ordinários, porque também aí se poderia dizer que a eventual declaração de inconstitucionalidade da interpretação feita pelo tribunal inferior evitaria o risco de ela vir a ser reiterada no tribunal superior. Ora não foi esta, manifestamente, a função atribuída pela Lei ao Tribunal Constitucional. II. A única objecção que a Recorrida admite poder ser levantada ao entendimento avançado no Parecer da Exmª Conselheira Relatora é a que resulta da anteposição da questão da recorribilidade do despacho impugnado à questão da legitimidade da Recorrente.
[...] Enquanto órgão arbitral, o ICP - ANACOM carece manifestamente de legitimidade para recorrer das decisões proferidas pelas instâncias jurisdicionais de recurso, pois não é parte no respectivo processo. E certo que o ICP - ANACOM contesta repetidamente nas suas alegações a qualificação feita pelo Presidente da Relação de Lisboa. Mas sempre no plano da correcta interpretação da lei, nunca no plano da constitucionalidade da lei. [...].
[...] A eventual rejeição do recurso por ilegitimidade da Recorrente produziria efeitos mais estáveis na ordem jurídica e representaria, em princípio, uma tutela mais efectiva do interesse processual da Recorrida. Por isso, e sem prejuízo da questão prévia levantada no douto Parecer da Exmª. Conselheira Relatora, submete-se à apreciação do Tribunal esta razão de precedência da questão relativa à legitimidade da Recorrente. Termos em que: Deverá ser negado o conhecimento do objecto do recurso por irrecorribilidade da decisão impugnada ou por ilegitimidade da Recorrente, consoante se decidir acerca da ordem lógica de conhecimento destes dois fundamentos de rejeição.
[...].”
Cumpre apreciar e decidir.
10. A resposta do recorrente não abalou os fundamentos da exposição-parecer da relatora.
10.1. Na sua resposta, invocou, em primeiro lugar, o recorrente que o artigo
689º, n.º 2, do Código de Processo Civil, com base no qual a relatora considerou não ser definitiva (ou final) a decisão recorrida, é anterior à publicação da Lei do Tribunal Constitucional e à actual formulação do artigo 70º, n.º 2; ora, como o artigo 70º, n.º 2 da LTC não ressalvou a situação prevista no artigo
689º, n.º 2, do CPC, a interpretação “restritiva” daquele preceito, feita pela relatora, contrariaria o disposto no artigo 9º, n.º 3, do Código Civil (ou seja, a presunção de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados).
Este argumento, qualificado pelo recorrente “de índole histórico-sistemática”, mais não é do que um argumento puramente literal, que esquece o preceituado no artigo 9º, n.º 1, do Código Civil: a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo
10.2. Alegou depois o recorrente que, sendo as decisões do Tribunal Constitucional obrigatórias, prevalecendo sobre as dos restantes tribunais e fazendo caso julgado quanto à questão de inconstitucionalidade, seria máxima a utilidade a retirar do presente recurso para as partes e para a própria economia do processo: a questão de inconstitucionalidade suscitada ficaria definitivamente resolvida, qualquer que fosse a pronúncia do Tribunal Constitucional sobre ela.
Como a este propósito se assinala na resposta da recorrida (fls.
392), “este argumento, se fosse procedente, valeria também contra o requisito da exaustão dos recursos ordinários, porque também aí se poderia dizer que a eventual declaração de inconstitucionalidade da interpretação feita pelo tribunal inferior evitaria o risco de ela vir a ser reiterada no tribunal superior. Ora, não foi esta, manifestamente, a função atribuída pela lei ao Tribunal Constitucional”.
Na verdade, como disse o Tribunal Constitucional logo no Acórdão n.º
21/87 (Diário da República, II Série, n.º 75, de 31 de Março de 1987, p. 4072), citado pelo recorrente,
“A lógica desta solução [a solução consagrada no artigo 70º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional] consiste em só admitir a intervenção do Tribunal Constitucional quando a questão tenha sido examinada e decidida por todas as instâncias possíveis na ordem respectiva, por forma a não facilitar o levantamento gratuito de questões de inconstitucionalidade e de modo a poupar a intervenção desnecessária do Tribunal Constitucional”.
10.3. Sustentou ainda o recorrente que o parecer da relatora está construído na base de uma hipótese ou suposição que pode não ocorrer – a hipótese de o Tribunal da Relação decidir reapreciar a questão já julgada pelo respectivo Presidente –, caso em que não resultariam salvaguardados os princípios da economia processual e da tutela jurisdicional efectiva em prazo razoável e o próprio direito ao recurso.
Tal argumento valeria também contra o requisito da exaustão dos recursos ordinários, que se encontra expressamente previsto na lei. Além disso, não é correcto falar-se de “hipótese” ou “suposição” num caso em que é a própria lei a estabelecer a competência do Tribunal da Relação para reapreciar a questão da admissibilidade do recurso. Dito de outro modo, a possibilidade de a decisão do Presidente da Relação ser alterada é tão elevada quanto a de o ser uma qualquer decisão pendente de recurso, pelo que não é correcto invocar a incerteza quanto à decisão da questão de admissibilidade do recurso para a Relação para sustentar a necessidade de conhecimento do mérito do presente recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade.
Acresce que a presente decisão do Tribunal Constitucional não constitui obstáculo ao conhecimento da questão de inconstitucionalidade formulada pelo recorrente, no âmbito de novo recurso de fiscalização concreta interposto no mesmo processo – naturalmente, se todos os pressupostos processuais respectivos se encontrarem então preenchidos.
11. Sublinhe-se, por último, que a lei não impõe uma qualquer ordem quanto ao conhecimento pelo Tribunal das questões susceptíveis de fundamentar o não conhecimento do objecto do recurso; concretamente, não impõe que o Tribunal conheça da questão da legitimidade do recorrente antes da questão da recorribilidade da decisão impugnada.
Assim, nada impede que, no caso dos autos, contrariamente àquela que parece ser a pretensão da recorrida, se profira decisão de não conhecimento assente na irrecorribilidade da decisão ora impugnada.
III
12. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do objecto do presente recuso.
Lisboa, 24 de Março de 2004
Maria Helena de Brito Artur Maurício Rui Manuel Moura Ramos Carlos Pamplona de Oliveira
Luís Nunes de Almeida