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Processo n.º 963/03
2ª Secção Relator – Cons. Paulo Mota Pinto
acordam na 2ª secção do tribunal constitucional
1. Relatório
1.Por acórdão datado de 4 de Dezembro de 2003, proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, A., melhor identificado nos autos, viu indeferida arguição de nulidade do acórdão proferido por aquele Tribunal, em 30 de Outubro de 2003, pelo qual fora negado provimento ao recurso interposto do despacho do Juiz do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, proferido em 15 de Julho de 2003, que decidira manter a medida de coacção de prisão preventiva que lhe fora aplicada, após reexame dos pressupostos de aplicação de tal medida, nos termos do artigo
213º do Código de Processo Penal. Pode ler-se naquele acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que indeferiu a arguição de nulidade:
«(...) Nos termos do disposto no artigo 379º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, aplicável ao caso por força do preceituado no artigo 425º, n.º 4, do mesmo Código, é nula a sentença quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar. No caso, o requerente vem arguir a nulidade do acórdão que se consubstanciaria na omissão de pronúncia relativamente à inconstitucionalidade invocada nas conclusões L) a P) da motivação de recurso e na resposta ao parecer do Ministério Público. Ora, salvo o devido respeito, tal questão foi tratada no acórdão, concretamente na parte que a seguir se transcreve: A posição do recorrente sustentada nas conclusões L e seguintes da motivação de recurso, e desenvolvida depois na resposta apresentada ao parecer do Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, centra-se no seguinte: O recorrente não conhece os factos que concretamente lhe são imputados e que consubstanciam os crimes julgados indiciados nas várias decisões que até agora foram proferidas contra si, como não conhece as razões concretas e as provas que foram consideradas para lhe impor e subsequentemente manter a prisão preventiva. E o despacho recorrido, mantendo a prisão preventiva sem lhe dar a conhecer esses elementos, violou, entre outros, “os artigos 20º, n.º4, 27º, n.ºs 1 e 4,
28º, n.º 1, e 32º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, dos arts. 5°, n.ºs 1, 2 e 4, e 6°, n.ºs 1 e 3, a) e b), da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e dos arts. 61º, n.º 1, als. b), f) e h), 86º, n.º 5, 89º, n.º 2, 141º, n.ºs 4 a 6, e 213º, n.ºs 1 e 3, do Código de Processo Penal”. De qualquer modo, sustenta ainda, “o entendimento do art. 141º, n.ºs 4 a 6, bem como do art. 213º, n.ºs 1 e 3, por eles próprios ou devidamente conjugados com os arts. 86º, n.ºs 1, 4 e 5, e 89º, n.° 2, todos do C.P.P., no sentido de que ao arguido preso preventivamente, no decretamento ou na declaração de manutenção dessa prisão preventiva, não tem de obrigatoriamente ser comunicada a factualidade concreta que lhe é atribuída, em termos que lhe permita conhecer as circunstâncias concretas de tempo, espaço e modo em que prática delituosa terá sido praticada, bastando a referência a factos gerais insusceptíveis de permitir o conhecimento daquelas circunstâncias concretas, bem como de que não têm de lhe ser dados a conhecer os meios de prova – mesmo que apenas através de extracto ou súmula relevante para o exercício do direito da defesa – em que se funda tal prisão preventiva, é inconstitucional, por violação dos arts. 20º, n.º 4, 27º, n.ºs 1 e 4, 28º, n.º 1, e 32º, n.º 1, da CRP; tal entendimento viola ainda os arts. 5º, n.ºs 1, 2 e 4, e 66º, n.ºs 1 e 3, a) e b), da CEDH.” E na resposta apresentada nos termos do disposto no artigo 417º o recorrente insiste e desenvolve esta argumentação nos termos que se deixaram exarados acima. Vejamos. Constitui objecto – e objecto exclusivo – do presente recurso o despacho, proferido em 15/07/2003, que manteve a medida de coacção de prisão preventiva. Esse despacho procedeu oficiosamente ao reexame dos pressupostos anteriormente considerados existentes e fundamentadores da aplicação daquela medida de coacção. E nada acrescentou, em termos substanciais, como já se fez notar, ao que anteriormente fora decidido, no despacho que inicialmente aplicou a medida de coacção de prisão preventiva, no acórdão da Relação que sobre ele recaiu e no despacho de 29/04/03 que manteve aquela medida e que transitou em julgado por dele não ter sido interposto recurso. O despacho recorrido não se pronunciou, nem tinha de se pronunciar, sobre o eventual direito do arguido a conhecer os factos e os elementos de prova susceptíveis de justificar a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva e a sua posterior manutenção, no primeiro despacho que procedeu ao reexame. Nele cumpria ao juiz simplesmente verificar, como também já genericamente se assinalou, se ulteriormente àquele despacho de 29/04/2003 haviam vindo aos autos novos elementos que justificassem a revogação ou substituição da medida imposta, se tudo se mantinha inalterado ou se havia porventura novos elementos que até reforçassem o juízo de necessidade de aplicação de tal medida. E o que consta do despacho recorrido é a indiciação pelos mesmos crimes e a constatação da existência dos mesmos pericula libertatis que já constavam do conjunto das anteriores decisões. Sucede até que essa questão não foi nunca suscitada perante o juiz de instrução e muito menos no recurso interposto do despacho que sobre ele recaiu, como o não foi por ocasião da realização do primeiro reexame oficioso. E com a decisão a que este deu origem conformou-se o arguido, pois que dela não interpôs recurso. Não se vê, por isto, como possa acusar-se o despacho ora recorrido de violação de qualquer das normas, legais ou constitucionais, que o recorrente aponta na motivação de recurso e que, a existir, ocorreu em anteriores fases processuais. Como não se vê, pelas mesmas razões, que no despacho recorrido se tenham aplicado, ao menos implicitamente, como fundamento da decisão, as normas legais que o recorrente indica com o entendimento que considera inconstitucional. Segundo julgamos perceber face ao teor do requerimento que estamos apreciando, a omissão de pronúncia arguida residiria, no entendimento do requerente, mais especificamente, na ausência de qualquer referência concreta, no acórdão, em termos de tratamento jurídico, ao que consta da alínea L) da motivação de recurso, ou seja, ao denunciado desconhecimento, por parte do arguido, do depoimento de fls. 6363 a 6366 a que se alude no despacho objecto do recurso. Mas essa questão mostra-se tratada no mencionado excerto do acórdão, a ela se referindo as passagens do mesmo em que se diz que o despacho recorrido “nada acrescentou, em termos substanciais, como já se fez notar, ao que anteriormente fora decidido, no despacho que inicialmente aplicou a medida de coacção de prisão preventiva, no acórdão da Relação que sobre ele recaiu e no despacho de
29/04/03 que manteve aquela medida e que transitou em julgado por dele não ter sido interposto recurso”, e que “o que consta do despacho recorrido é a indiciação pelos mesmos crimes e a constatação da existência dos mesmos pericula libertatis que já constavam do conjunto das anteriores decisões”.»
2.Inconformado, o arguido interpôs o presente recurso de constitucionalidade, ao abrigo do artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei de Organização, Funcionamento e Processo no Tribunal Constitucional, dizendo no respectivo requerimento:
«(...)
2º Questão central destes autos tem a ver com a circunstância do despacho do TIC, mantido pelo acórdão da Relação ora recorrido, continuar a insistir na manutenção da prisão preventiva do arguido sem lhe dar a conhecer a factualidade concreta que lhe é imputada, bem como os meios de prova em que se funda, o que se encontra devidamente identificado nas Conclusões apresentadas sob as alíneas L) a P) e foi reforçado na Resposta ao Parecer do Ministério Público junto da Relação, apresentada ao abrigo do art. 417º, n.º 2, do C.P.P., muito particularmente nos seus n.ºs 28 a 32.
3º Foi expressamente arguida (cfr. alínea P) das Conclusões e n.º 31 da Resposta supra referidas) a inconstitucionalidade, por violação dos arts. 20º, n.º 4,
27º, n.ºs 1 e 4, 28º, n.º 1, e 32º, n.º 1, da CRP, do entendimento normativo dado ao art. 213º do C.P.P., por si só ou devidamente conjugado com os arts.
141º, n.º 4, 86º, n.ºs 1, 4 e 5, e 89º, n.º 2, do C.P.P., no sentido de que o despacho que determina a manutenção da prisão preventiva – bem como que aquele que a decreta – não tem de especificar a factualidade concreta que é imputada ao arguido, com a identificação das circunstâncias de tempo, lugar e modo respectivas, bem como os meios de prova em que se funda tal prisão preventiva
(ainda que sob a fórmula de extracto ou súmula relevante para o exercício de direito de defesa), quando, em nenhum momento anterior, maxime no despacho que decreta a prisão preventiva, tal informação foi facultada a esse mesmo arguido.
4º O acórdão recorrido entende que o despacho que mantém a prisão preventiva não tem de enunciar tal factualidade e elementos probatórios justificativos da prisão preventiva, quando tal factualidade já foi apreciada por despacho anterior, maxime pelo despacho que a decretou, não havendo matéria nova que justifique qualquer alteração (cfr. págs. 31 e 32 do acórdão de 30 de Outubro).
5º Assim sendo, o art. 213º do C.P.P., por si só ou devidamente conjugado com o art. 141º, n.º 4, 86º, n.ºs 1, 4 e 5, e 89º, n.º 2, foi interpretado no sentido acima referido no art. 3º, o que gera a sua inconstitucionalidade material, tal como foi arguido.
6º Acresce que, na conclusão L) da Motivação do Recurso, o recorrente teve oportunidade de sublinhar o seguinte: “Aliás, o despacho recorrido reincide no erro dos anteriores, remetendo expressamente para o depoimento de fls. 6363 a
6366, cujo teor o ora recorrente desconhece e que não pode contradizer nem opor qualquer defesa.”
7º E tal argumento foi reforçado no n.º 32 da Resposta supra referida nos termos seguintes: Acresce que, como está referido na conclusão L), o despacho recorrido, ao fundar a sua decisão também no depoimento de fls. 6363 a 6366, cujo teor se desconhece em absoluto, viola, nessa medida, por si só, o princípio do contraditório e as garantias constitucionais constantes nos arts 20º, n.° 4, e 27º, n.ºs 1 e 4,
28º, n.º 1, e 32º, n.º 1, da CRP. E, nessa medida, é inconstitucional o entendimento dado ao art. 213º do C.P.P. no sentido de que o despacho que mantém a prisão preventiva se pode fundar em elementos de prova cujo conteúdo essencial é ocultado do arguido em termos em que ele não o possa contraditar, isto é, em que ele não se possa defender.
8º O acórdão ora recorrido devia ter-se pronunciado acerca da matéria da conclusão L) acima transcrita, devidamente completada nos termos referidos no artigo precedente, o que não foi feito expressamente; suscitada a nulidade respectiva, foi a mesma desatendida por acórdão de 4 de Dezembro, por se entender que no acórdão de 30 de Outubro já se dissera que o despacho recorrido não teria acrescentado nada de substancial aos despachos anteriores.
9º Em face de tal esclarecimento, fica assim claro que o acórdão recorrido interpreta o art. 213º do C.P.P. no sentido de que o despacho que mantém a prisão preventiva se pode fundar em novos elementos de prova – relevantes, como acontece no caso concreto, para considerar ex novo preenchido o requisito do perigo da perturbação de inquérito (cfr. pág. 6633 do despacho de l5 de Julho, comparando-a com folhas 3955 do despacho de 29 de Abril) –, cujo conteúdo essencial é ocultado ao arguido em termos que ele não os possa contraditar, nem opor qualquer defesa, [o que] é inconstitucional por violar os princípios do contraditório, do acesso à justiça e das garantias de defesa, como tal consagradas nos arts. 20º, n.º 4, 27º, n.ºs 1 e 4, 28º, n.º 1, e 32º, n.º 1, da CRP.
10º Assim sendo, o art. 213º do C.P.P. interpretado nos termos referidos no artigo anterior é igualmente materialmente inconstitucional.
11º As inconstitucionalidades acima referidas nos arts. 3º e 9º foram suscitadas nos termos referidos nos arts. 3º, 6º e 7º, tendo sido tempestivamente arguidas.»
3.No Tribunal Constitucional, o relator proferiu despacho a determinar a produção de alegações, suscitando, no entanto, duas “questões prévias, para o recorrente, querendo, sobre elas se pronunciar (uma vez que poderão obstar ao conhecimento total ou parcial do recurso), a saber: a) a da eventual perda de utilidade do presente recurso, caso entretanto tenham sido conhecidos pelo recorrente os factos e os meios de prova em causa; b) a da eventual não aplicação da dimensão normativa impugnada, ao menos em parte, por a decisão recorrida se pronunciar apenas sobre o despacho que manteve a prisão preventiva. O recorrente concluiu as alegações do seguinte modo:
“A) Boa parte do interesse processual do presente recurso está efectivamente ultrapassado, uma vez que o arguido já conhece os factos e os meios de prova em causa, já foi inquirido pelo juiz de instrução acerca dos mesmos e está em curso o processo subsequente destinado à revisão dos pressupostos da prisão preventiva. B) Resta, todavia, o interesse em ver declarada a ilegalidade do despacho que manteve a prisão preventiva, na medida em que pretende vir a formular pedido indemnizatório, na sede própria, por causa de tal ilegalidade. C) Não pode existir qualquer dúvida quanto à circunstância de não terem sido revelados ao Recorrente os factos concretos que lhe são atribuídos, bem como os meios de prova respectivos, o que se verificou quer aquando do despacho que decretou a sua prisão preventiva, quer na altura das decisões posteriores que a mantiveram, particularmente, no que ora releva, na decisão recorrida, sendo igualmente verdade para qualquer outro momento processual, até que se verificou o circunstancialismo supra referido no n.º 2 destas alegações. Assim sendo, o Recorrente desconhecia – até há pouco – os factos e provas em que se funda a sua prisão, isto é, não sabia por que motivo concreto é que está preso. D) Está expressamente arguida a inconstitucionalidade, por violação dos princípios do acesso ao direito e do contraditório, bem como das garantias de defesa, e dos arts. 20º, n.º 4, 27º, n.ºs 1 e 4, 28º, n.º 1, e 32º, n.º 1, da CRP, do entendimento normativo dado ao art. 213º do C.P.P., por si só ou devidamente conjugado com os arts. 141º, n.º 4, 86º, n.ºs 1, 4 e 5, e 89º, n.°
2, do C.P.P., no sentido de que o despacho que determina a manutenção da prisão preventiva – bem como aquele que a decreta – não tem de especificar a factualidade concreta que é imputada ao arguido, com a identificação das circunstâncias de tempo, lugar e modo respectivas, bem como os meios de prova em que se funda tal prisão preventiva (ainda que sob a fórmula de extracto ou súmula relevante para o exercício de direito de defesa), quando, em nenhum momento anterior, maxime no despacho que decreta a prisão preventiva, tal informação foi facultada a esse mesmo arguido. E) Da mesma forma, se mostram violados os princípios do contraditório, da igualdade de armas e de um processo equitativo, onde se inclui o direito a conhecer o motivo concreto da prisão decretada, tal como resultam dos arts. 5° e
6º da CEDH. F) O acórdão recorrido entende que o despacho que mantém a prisão preventiva não tem de enunciar tal factualidade e elementos probatórios justificativos da prisão preventiva, quando isso já foi apreciado por despacho anterior, maxime pelo despacho que a decretou, mesmo que tal despacho anterior não enuncie tal factualidade concreta, e quando não haja matéria nova que justifique qualquer alteração (cfr. págs. 31 e 32 do acórdão de 30 de Outubro, ora recorrido). G) Tal tese é um verdadeiro sofisma. Se nem o despacho que decretou a prisão preventiva, nem qualquer outro acto processual subsequente, deu a conhecer ao arguido o facto concreto punível que lhe é atribuído, o despacho que mantém a prisão preventiva, continuando a não facultar essa informação essencial, é, em si mesmo, ilegal, independentemente dos despachos antecedentes.
É que a Constituição impõe uma leitura do art. 213º do C.P.P. no sentido de que o despacho que mantém a prisão preventiva – em si mesmo ou por remissão para o despacho que decreta a prisão preventiva – deve permitir ao arguido conhecer tal facto concreto punível. Se nenhum acto processual anterior faculta tal informação, como obviamente acontece no caso do ora Recorrente, naturalmente que o despacho que mantém a prisão preventiva, ocultando tais elementos, é, por si mesmo, igualmente ilegal. H) Assim sendo, o art. 213º do C.P.P., por si só ou devidamente conjugado com o art. 141º, n.º 4, 86º, n.ºs 1, 4 e 5, e 89º, n.º 2, foi interpretado, pelo acórdão recorrido, no sentido acima referido na conclusão D), o que gera a sua inconstitucionalidade material, tal como foi arguido. I) Por outro lado, o acórdão recorrido interpreta igualmente o art. 213º do C.P.P. no sentido de que o despacho que mantém a prisão preventiva se pode fundar em novos elementos de prova – relevantes, como acontece no caso concreto, para considerar ex novo preenchido o requisito do perigo da perturbação de inquérito –, cujo conteúdo essencial é ocultado ao arguido em termos que ele não os possa contraditar, nem opor qualquer defesa, o que é inconstitucional por violar os princípios do contraditório e do acesso ao direito, bem como as garantias de defesa, e os arts. 20º, n.º 4, 27º, n.ºs 1 e 4, 28º, n.º 1, e 32º, n.º 1, da CRP. J) Assim sendo, o art. 213º do C.P.P. interpretado nos termos referidos na conclusão anterior é também materialmente inconstitucional.” O Ministério Público concluiu as suas contra-alegações do seguinte modo:
“1. A decisão recorrida não interpretou a norma constante do artigo 213º do Código de Processo Penal com o sentido que lhe atribui o recorrente, já que considerou que a decisão de manutenção da prisão preventiva não assentou em qualquer matéria nova e não emitiu, nem tinha que emitir, qualquer juízo sobre a suficiência do acesso aos autos, aquando da prolação de anteriores – e autónomos
– despachos sobre tal medida de coacção.
2. Estando em causa um vício de natureza procedimental, atinente ao exercício do contraditório no procedimento que precede a reapreciação da prisão preventiva – e não qualquer questão que incida, em termos substanciais e decisivos, sobre a subsistência dos respectivos pressupostos de admissibilidade – não ocorre conexão relevante entre tal questão e o “thema decidendi” de ulterior acção indemnizatória, alicerçada na ilegalidade substancial de imposição de tal medida de coacção.
3. Termos em que não deverá conhecer-se do presente recurso.” Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
4.O presente recurso de constitucionalidade vem intentado ao abrigo do disposto no artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, pretendendo-se a apreciação da constitucionalidade de duas normas, correspondentes a interpretações de preceitos do Código de Processo Penal. Trata-se, nos termos do respectivo requerimento de recurso, dos entendimentos normativos do artigo 213º desse Código: a) por si só ou devidamente conjugado com os artigos 141º, n.º 4, 86º, n.ºs 1, 4 e 5, e 89º, n.º 2, do mesmo, “no sentido de que o despacho que determina a manutenção da prisão preventiva – bem como que aquele que a decreta – não tem de especificar a factualidade concreta que é imputada ao arguido, com a identificação das circunstâncias de tempo, lugar e modo respectivas, bem como os meios de prova em que se funda tal prisão preventiva (ainda que sob a fórmula de extracto ou súmula relevante para o exercício de direito de defesa), quando, em nenhum momento anterior, maxime no despacho que decreta a prisão preventiva, tal informação foi facultada a esse mesmo arguido”; e b) “no sentido de que o despacho que mantém a prisão preventiva se pode fundar em novos elementos de prova – relevantes, como acontece no caso concreto, para considerar ex novo preenchido o requisito do perigo da perturbação de inquérito
(…) –, cujo conteúdo essencial é ocultado ao arguido em termos que ele não os possa contraditar, nem opor qualquer defesa”. Ora, como se sabe, para se poder conhecer do presente recurso, torna-se necessário, a mais do esgotamento dos recursos ordinários e de que a inconstitucionalidade tenha sido suscitada durante o processo, que a norma (ou interpretação, se, como é o caso, apenas esta for) impugnada tenha sido aplicada, como ratio decidendi, pelo tribunal recorrido. Na verdade, no direito constitucional português vigente, apenas as normas são objecto de fiscalização de constitucionalidade concentrada em via de recurso, e a exigência de aplicação, como ratio decidendi, da dimensão normativa impugnada revela-se imprescindível, desde logo, para que a pronúncia do Tribunal Constitucional, em recurso de constitucionalidade, se possa projectar com utilidade sobre a decisão recorrida.
5.No presente caso, escreveu-se no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de
30 de Outubro de 2003 (citado depois no de 4 de Dezembro de 2003):
“(…) Constitui objecto – e objecto exclusivo – do presente recurso o despacho, proferido em 15/07/2003, que manteve a medida de coacção de prisão preventiva. Esse despacho procedeu oficiosamente ao reexame dos pressupostos anteriormente considerados existentes e fundamentadores da aplicação daquela medida de coacção. E nada acrescentou, em termos substanciais, como já se fez notar, ao que anteriormente fora decidido, no despacho que inicialmente aplicou a medida de coacção de prisão preventiva, no acórdão da Relação que sobre ele recaiu e no despacho de 29/04/03 que manteve aquela medida e que transitou em julgado por dele não ter sido interposto recurso. O despacho recorrido não se pronunciou, nem tinha de se pronunciar, sobre o eventual direito do arguido a conhecer os factos e os elementos de prova susceptíveis de justificar a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva e a sua posterior manutenção, no primeiro despacho que procedeu ao reexame. Nele cumpria ao juiz simplesmente verificar, como também já genericamente se assinalou, se ulteriormente àquele despacho de 29/04/2003 haviam vindo aos autos novos elementos que justificassem a revogação ou substituição da medida imposta, se tudo se mantinha inalterado ou se havia porventura novos elementos que até reforçassem o juízo de necessidade de aplicação de tal medida. E o que consta do despacho recorrido é a indiciação pelos mesmos crimes e a constatação da existência dos mesmos pericula libertatis que já constavam do conjunto das anteriores decisões. Sucede até que essa questão não foi nunca suscitada perante o juiz de instrução e muito menos no recurso interposto do despacho que sobre ele recaiu, como o não foi por ocasião da realização do primeiro reexame oficioso. E com a decisão a que este deu origem conformou-se o arguido, pois que dela não interpôs recurso.” Verifica-se, pois, que o tribunal recorrido não aplicou qualquer disposição no sentido de que “o despacho que mantém a prisão preventiva se pode fundar em novos elementos de prova [relevantes para considerar ex novo preenchido o requisito do perigo da perturbação de inquérito] cujo conteúdo essencial é ocultado ao arguido em termos que ele não os possa contraditar, nem opor qualquer defesa” – tendo, até, o acórdão recorrido negado expressamente esse carácter inovatório (sublinhados aditados). Não pode, pois, o Tribunal Constitucional tomar conhecimento do presente recurso quanto à norma, na interpretação enunciada supra, sub b).
6.Importa, pois, apreciar se terá sido aplicada pelo Tribunal da Relação de Lisboa a outra dimensão normativa impugnada: isto é, o entendimento do artigo
213º do Código de Processo Penal, isoladamente ou conjugado com outros preceitos, no sentido de que “o despacho que determina a manutenção da prisão preventiva – bem como que aquele que a decreta – não tem de especificar a factualidade concreta que é imputada ao arguido, com a identificação das circunstâncias de tempo, lugar e modo respectivas, bem como os meios de prova em que se funda tal prisão preventiva (ainda que sob a fórmula de extracto ou súmula relevante para o exercício de direito de defesa), quando, em nenhum momento anterior, maxime no despacho que decreta a prisão preventiva, tal informação foi facultada a esse mesmo arguido.” Pode desde já adiantar-se que se impõe uma resposta negativa. Na verdade, e desde logo, o acórdão recorrido apenas decidiu um recurso relativo a despacho que determinara a manutenção da prisão preventiva – e não ao que a decretara. Nesta última parte, portanto, a dimensão normativa impugnada não foi aplicada pelo tribunal recorrido. Por outro lado, mesmo em relação à parte da dimensão normativa que se refere ao despacho de manutenção da prisão preventiva, o acórdão recorrido salientou que este despacho recorrido não tratou, nem tinha que tratar, do direito do arguido a conhecer a factualidade e os elementos de prova que fundaram a aplicação da prisão preventiva – ou seja, nem do alcance, nem da satisfação, nesse momento ou anteriormente, de tal direito –, não só por se ter entendido constituir uma decisão autónoma à qual apenas cumpria averiguar se havia elementos novos que contrariassem o anterior juízo, como por tal questão não ter sido suscitada pelo recorrente anteriormente, conformando-se com os anteriores despachos neste ponto. Concluiu, assim, o Tribunal da Relação que o despacho da 1ª instância não violou qualquer das normas, legais ou constitucionais, indicadas pelo recorrente
– tendo essa violação, a existir, ocorrido “em anteriores fases processuais” –, e afirmou ainda que esse despacho recorrido não aplicara, nem sequer
“implicitamente, como fundamento da decisão, as normas legais que o recorrente indica com o entendimento que considera inconstitucional” – isto é (além da outra, já referida) exactamente a mesma dimensão normativa impugnada pelo recorrente no presente recurso de constitucionalidade, indicada supra, sub a) (e que o recorrente enunciara já perante o Tribunal da Relação de Lisboa). Recorde-se novamente, destacando as passagens relevantes, o transcrito passo do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 30 de Outubro de 2003: Constitui objecto – e objecto exclusivo – do presente recurso o despacho, proferido em 15/07/2003, que manteve a medida de coacção de prisão preventiva.
(…) O despacho recorrido não se pronunciou, nem tinha de se pronunciar, sobre o eventual direito do arguido a conhecer os factos e os elementos de prova susceptíveis de justificar a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva e a sua posterior manutenção, no primeiro despacho que procedeu ao reexame. Nele cumpria ao juiz simplesmente verificar, como também já genericamente se assinalou, se ulteriormente àquele despacho de 29/04/2003 haviam vindo aos autos novos elementos que justificassem a revogação ou substituição da medida imposta, se tudo se mantinha inalterado ou se havia porventura novos elementos que até reforçassem o juízo de necessidade de aplicação de tal medida. E o que consta do despacho recorrido é a indiciação pelos mesmos crimes e a constatação da existência dos mesmos pericula libertatis que já constavam do conjunto das anteriores decisões. Sucede até que essa questão não foi nunca suscitada perante o juiz de instrução e muito menos no recurso interposto do despacho que sobre ele recaiu, como o não foi por ocasião da realização do primeiro reexame oficioso. E com a decisão a que este deu origem conformou-se o arguido, pois que dela não interpôs recurso. Não se vê, por isto, como possa acusar-se o despacho ora recorrido de violação de qualquer das normas, legais ou constitucionais, que o recorrente aponta na motivação de recurso e que, a existir, ocorreu em anteriores fases processuais. Como não se vê, pelas mesmas razões, que no despacho recorrido se tenham aplicado, ao menos implicitamente, como fundamento da decisão, as normas legais que o recorrente indica com o entendimento que considera inconstitucional.” Conclui-se deste trecho que o Tribunal da Relação de Lisboa não se pronunciou sobre a questão de saber se, quando não foi facultada ao arguido, a propósito de anteriores decisões relativas à prisão preventiva, informação sobre a factualidade e os meios de prova em que esta se funda, se deve fazer tal comunicação no despacho de manutenção da medida de coacção. E conclui-se, mais, que não conheceu nem se pronunciou sobre tal questão, não apenas por ter entendido que em despacho de manutenção da medida de coacção não cumpria apreciá-la, pois não lhe cumpria indagar se a comunicação, nos termos devidos, fora efectuada anteriormente – ponto que, eventualmente, ainda poderia sustentar-se ser abrangido pelo entendimento impugnado pelo recorrente, segundo o qual, recorde-se, “o despacho que determina a manutenção da prisão preventiva
(...) não tem de especificar a factualidade concreta (...), bem como os meios de prova em que se funda tal prisão preventiva (...), quando, em nenhum momento anterior, maxime no despacho que decreta a prisão preventiva, tal informação foi facultada a esse mesmo arguido” (pois se o dever de comunicação dos referidos elementos se mantivesse também para despachos posteriores ao que decretou a prisão preventiva, desde que aquela não tivesse sido feita antes, então afigura-se que cumpriria ao tribunal apreciar também se era este último o caso). Além disso – o que se considera decisivo –, o acórdão recorrido não deixou de afirmar, como ratio decidendi para que o despacho da 1ª instância não se tenha pronunciado, nem se tivesse que pronunciar, “sobre o eventual direito do arguido a conhecer os factos e os elementos de prova”, que tal questão “não foi nunca suscitada” antes pelo arguido, concluindo, também por isso, que o despacho recorrido não aplicou dimensão normativa já então impugnada, e idêntica à ora em causa. Tal como acontece quando um tribunal não conhece de uma alegada violação de norma que determina uma nulidade processual, por entender que ela não fora suscitada atempadamente e se encontra sanada, e independentemente da questão de saber se o correspondente entendimento de normas sobre sanação de nulidades é ou não constitucional, o que é certo é que, se estas não forem autonomamente impugnadas, a decisão que o Tribunal Constitucional tome sobre a norma violada não poderá vir a ter efeitos úteis sobre a decisão recorrida (cfr., neste sentido, por exemplo, os Acórdãos n.ºs 616/97, 166/03 e 624/03, disponíveis em
www.tribunalconstitucional.pt). Da mesma forma, também no presente caso o Tribunal da Relação sempre poderia manter a sua decisão com fundamento na não suscitação pelo arguido, em momento anterior, da questão da falta de comunicação dos elementos em causa, tendo, aliás, sido este fundamento que levou já esse Tribunal a precisar, na decisão recorrida, que a 1ª instância não havia aplicado entendimento normativo idêntico ao impugnado no presente recurso. Conclui-se, pois, também quanto à dimensão normativa enunciada supra, sub a), que ela não foi aplicada pelo tribunal recorrido, pelo que não pode tomar-se conhecimento do presente recurso de constitucionalidade.
7.As conclusões precedentes tornam desnecessário o tratamento da questão da manutenção da utilidade do recurso para efeitos indemnizatórios – invocados pelo recorrente –, quando (como no presente caso), o arguido teve já acesso aos autos e o que está em causa é um alegado vício processual (embora eventualmente grave) na aplicação da prisão preventiva. III. Decisão Com estes fundamentos, decide-se não tomar conhecimento do presente recurso. Custas pelo recorrente, com 10 (dez) unidades de conta de taxa de justiça. Lisboa, 23 de Março de 2004 Paulo Mota Pinto Benjamim Rodrigues Mário José de Araújo Torres Maria Fernanda Palma (vencida nos termos da declaração de voto junta) Rui Manuel Moura Ramos
Declaração de voto Votei vencida o presente Acórdão, considerando que o Tribunal deveria ter tomado conhecimento do recurso. As razões que me levaram a discordar da solução do Acórdão foram as seguintes:
1ª Não considero inequívoca a interpretação do acórdão recorrido levada a cabo pelo Tribunal Constitucional, segundo a qual a decisão se fundamentaria em duas razões alternativas: a de que o despacho recorrido de manutenção da prisão preventiva “não se pronunciou nem tinha de se pronunciar sobre o eventual direito do arguido a conhecer os factos e os elementos de prova susceptíveis de justificar a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva e a sua posterior manutenção, no primeiro despacho que procedeu ao reexame” e a razão autónoma de que “essa questão não foi suscitada perante o juiz de instrução e muito menos no recurso interposto do despacho que sobre ele recaiu, como o não foi por ocasião da realização do primeiro reexame oficioso”. A segunda linha de argumentação parece ser, no entanto, um obiter dictum do Tribunal recorrido e não uma razão autónoma. Na verdade, se o despacho recorrido não tinha de se pronunciar, como o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa sustenta, sobre o que considera “um eventual direito do arguido conhecer os factos e os elementos de prova susceptíveis de justificar a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva e sua posterior manutenção, no primeiro despacho que procedeu ao reexame”, então as considerações sobre a necessidade de tal questão dever ser suscitada antes perante o juiz de instrução, ou no recurso deste, ou ainda no reexame oficioso seriam desnecessárias. Com efeito, elas pressupõem uma necessidade de o segundo despacho de manutenção da medida de coacção se pronunciar sobre tal dever, pelo menos quando a questão tivesse sido suscitada. Assim, a tal interpretação só se chegaria admitindo que a fundamentação do acórdão recorrido é inconsistente, pois diria, simultaneamente, que o despacho recorrido não tinha em absoluto de se pronunciar sem quaisquer limitações sobre a não realização prévia do “eventual” dever de comunicação e simultaneamente que apenas não se teria de pronunciar por a questão não ter sido suscitada antes. Deste modo, mesmo que a interpretação do acórdão recorrido levada a cabo pelo Tribunal Constitucional seja sustentável não é, ainda assim, claro que seja aquela que uma análise lógica do texto implica necessariamente. Como sempre tenho sustentado, e várias vezes o Tribunal Constitucional tem acolhido, na dúvida perante a interpretação adequada da decisão recorrida o Tribunal deve conhecer, pois tanto basta para persistir a utilidade no conhecimento. Ora, tal dúvida baseia-se, objectivamente, no teor do acórdão recorrido.
2ª Uma outra questão que me leva a sustentar o conhecimento do objecto do recurso é o facto de o recorrente não poder, segundo uma diligência média, prever que o acórdão recorrido viria a sustentar como razão específica da sua decisão de não conhecimento o não ter sido suscitada anteriormente a questão. Colocando-se o recorrente numa perspectiva de valorização absoluta daquele direito entenderia, normalmente, que a sua não suscitação anterior não o poderia prejudicar já que ainda se estava na fase de recurso. Por outro lado, mesmo que se entenda que o problema não estaria na possibilidade de prever, admitindo-se, neste contexto, uma decisão-surpresa, mas sim em não ter suscitado correctamente o problema perante o Tribunal Constitucional, pretendendo que este decidisse sobre uma norma que não fora aplicada naquela dimensão, também é verdade que, não sendo inequívoco o acórdão recorrido, é um tanto excessivo exigir que o recorrente assinale uma dimensão que uma leitura média poderia não divisar
(note-se que não foi sequer essa a leitura do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional). Dever-se-ia, nesse caso, confrontar directamente o recorrente com esta questão prévia para poder exercer plenamente o contraditório e explicitar qual a dimensão suscitada.
3ª Finalmente, o que é para mim decisivo é o facto de a questão de constitucionalidade normativa suscitada pelo recorrente abranger a própria razão que o Tribunal Constitucional considerou como ratio decidendi alternativa. Com efeito, na eventual inconstitucionalidade da omissão pelo despacho de manutenção de prisão preventiva do dever de comunicar os factos e os elementos de prova essenciais para a defesa, caso tal comunicação não tenha sido realizada nos anteriores despachos, inclui-se, seguramente, a própria situação de não suscitação anterior ao despacho, pelo próprio arguido, da mesma questão. E, por isso, a invocação da não suscitação anterior não é, obviamente, nenhuma dimensão normativa autónoma, diversa da referida, mas antes está incluída na que o recorrente suscitou. Quem questiona a omissão de um dever de comunicação de factos essenciais à defesa, pela natureza do problema, pretende que seja inconstitucional a não comunicação em todo e qualquer caso tanto no caso de suscitação prévia, como no caso inverso. Por tudo isto, consideraria útil o conhecimento da questão suscitada no contexto do acórdão recorrido. Maria Fernanda Palma