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Proc. nº. 361/03
1ª Secção Relator: Cons.º Artur Maurício
Acórdão na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 – A. interpõe recurso para este Tribunal, ao abrigo da alínea b) do nº. 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, por não se conformar com o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra que, mantendo a decisão da 1ª instância, o condenou como autor de um crime de difamação, p. e p. pelos artigos 180º, nº. 1 e 183º, nº 2 do Código Penal na pena de 130 dias de multa, à taxa diária de Esc.
1 250$00, no montante de 162 500$00.
Inconformado com a sentença condenatória proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca da -----------, o arguido recorreu para o Tribunal da Relação de Coimbra, versando o recurso sobre matéria de facto e de direito, tendo dito nas conclusões da sua alegação, no que tange à questão de constitucionalidade:
“(...) XIII – Igualmente, a douta sentença em apreço, ao sobrevalorizar a pretensa honra e consideração do assistente face à liberdade de expressão e de imprensa, violou os artºs. 37º nºs. 1 e 2 e 38º nº 1 da Constituição da República Portuguesa à luz dos quais devia ser interpretada a aplicação em concreto do artº. 180º do C.P.. XIV – Por último, dir-se-á, que a douta sentença violou a liberdade de expressão consagrada no artº. 10º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, sendo absolutamente injustificada, por desnecessária e desproporcionada, a condenação criminal e cível do recorrente. XV – Termos em que deverá ser revogada a sentença “a quo” e substituída por outra que absolva o recorrente criminal e civilmente por ser legítima a sua actuação”.
Por acórdão de 19 de Março de 2003, o Tribunal da Relação de Coimbra negou provimento ao recurso na parte criminal e quanto ao pedido de indemnização civil, condenou o arguido “(...), além do mais, no pagamento de juros de mora, vencidos e vincendos, sobre o montante indemnizatório, desde a prolação da sentença de 1ª instância e até integral pagamento daquela.”
De novo inconformado, o arguido interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, tendo dito no respectivo requerimento de interposição:
“1. O recorrente pretende ver apreciada a inconstitucionalidade dos artigos
180º, nºs. 1 e 2 e 31º, nº. 2, alínea b), ambos do Código Penal, no entendimento que lhes foi dado pelo Tribunal da Relação de Coimbra, em violação dos artigos
37º, nº 1 e 2 e 38º, nº 1 do Constituição da República Portuguesa.
2. No entendimento deste Tribunal, um trabalho jornalístico, sério e credível, que resulta de uma investigação jornalística e que versa sobre um assunto de interesse público, em que estão envolvidas entidades públicas, extravasa o
âmbito da liberdade de informação e de imprensa, a que se referem os referidos artigos da CRP, por estarem em causa juízos de valor e não a imputação de factos.
3. Em consequência, considerou que estando-se perante juízos de valor ofensivos não tem aplicação o artigo 180º, nº 2 do CP, que apenas se aplica a imputações de facto, e não tem aplicação o artigo 31º, nº. 2, alínea b) do CP, por se estar perante uma conduta ilícita.
4. Tal entendimento põe em causa de forma constitucionalmente inadmissível a liberdade de opinião e de imprensa.
5. Embora a posição assumida no douto acórdão seja inesperada, contrariando a jurisprudência generalizada, o recorrente já havia suscitado a questão da inconstitucionalidade no recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra”.
Admitido o recurso, o Recorrente apresentou as suas alegações que concluiu como segue:
“I. A não aplicação pelo Tribunal da Relação de Lisboa (sic) das causas de exclusão da ilicitude previstas nos artigos 180º, nº. 1 e 2 e 31º, nº 2, al. b), ambos do Código Penal às expressões em causa, por se tratarem de juízos de valor e não imputações de factos, viola os artigos 37º, nº 1 e 2 e 38º, nº. 1 da Constituição da República Portuguesa, em virtude de a liberdade de opinião ser uma componente fundamental da liberdade de expressão e de informação, protegidos nos referidos artigos da lei fundamental. II. O recorrente fez um trabalho de investigação jornalística sério, ouvindo todos os interessados (incluindo o assistente) e recorrendo a diversas fontes de informação – documentais e testemunhais – sendo que os factos relatados na notícia correspondem, no essencial, aos relatos que recolheu. III. O assunto da notícia é de relevante interesse público, em que estão envolvidas entidades públicas (compra de um imóvel por um partido político a uma instituição privada de solidariedade social, que dera origem a uma investigação por parte da Inspecção-Geral da Segurança Social), sendo o assistente uma figura pública a nível local, pelos cargos políticos e associativos que exercia. IV. Estando em causa um assunto de relevante interesse público e uma figura pública os limites da crítica admissível são maiores, só não sendo admitida quando a mesma é gratuita, quando se trata de puro e simples insulto, proferido com a mera intenção de ofender e sem qualquer fundamentação de facto. V. A publicação de juízos de valor ofensivos da honra e consideração de terceiros não é, de per si, ilícita, devendo avaliar-se se a conduta em causa é ou não ilícita, por aplicação das causas de exclusão da ilicitude previstas nos artigos 180º, nº 2 e 31º, nº 2, al. b) do CP, sob pena de se coarctar ilicitamente a liberdade de opinião. VI. A legitimidade da publicação de juízos de valor advém da prova da veracidade dos factos que lhes servem de suporte, ou da prova de que existia uma convicção séria de que eram verdadeiros, uma vez que estes são pressupostos necessários para a formação daqueles. VII. “O direito de informação ligado à função pública da imprensa como causa justificativa da ofensa à honra define-se decerto pelo seu conteúdo, mas também pelas condições concretas do seu exercício. Tais condições são reveladas no artigo 180º, nº 2 do Código Penal e constituem o pressuposto de funcionamento da respectiva causa de justificação” – cfr. voto de vencido do acórdão recorrido. VIII. A publicação dos juízos de valor em causa está justificada, nos termos do artigo 180º, nº. 2 do CP, pelo que a conduta do recorrente não é punível. IX. Acresce que, estando a publicação justificada, nos termos do artigo 180º, nº2 do CP, a conduta do arguido enquadra-se no exercício do direito de expressão, de informação e de imprensa do arguido, o que vale como causa de exclusão da ilicitude nos termos do artigo 31º, nº2, al. b) do CP . X. Pelo exposto, o acórdão recorrido padece de uma dupla inconstitucionalidade por violação dos artigos 37º e 38º da CRP: por um lado, é inconstitucional o entendimento de que a causa de exclusão da ilicitude prevista no artigo 180º, nº. 2, al. b) do CP não se aplica a juízos de valor fundamentados e, por outro lado, é inconstitucional o entendimento de que juízos de valor ofensivos da honra e consideração exorbitam, de per si, o normal exercício do direito de informação, o que conduz à inaplicabilidade da causa de exclusão da ilicitude prevista no artigo 31º, nº. 2, al.b) do CP”.
O Procurador-Geral Adjunto em exercício neste Tribunal contra-alegou, tendo dito a concluir:
“1. Está fora dos poderes cognitivos do Tribunal Constitucional sindicar a natureza típica e ilícita da acção do recorrente, tal como a decisão recorrida a caracterizou, afastando a verificação de qualquer causa de exclusão da ilicitude.
2. Assente que está a função instrumental do recurso de constitucionalidade, carece de interesse processual o conhecimento das questões suscitadas, tal como o recorrente as coloca, pois que daí nenhum efeito útil resultaria, que pudesse inverter o sentido condenatório da decisão de mérito proferida no processo.
3. Termos em que não deverá proceder o presente recurso”.
O assistente B. também contra-alegou, apresentando as seguintes conclusões:
“A) Salvo o elevado e devido respeito pela douta Alegação apresentada pelo recorrente A., o presente recurso não merece provimento, pois que, o douto acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, aqui atacado, é correcto, tanto na forma como no conteúdo, encontrando-se bem estribado na questão aqui vertente e encontrando plena correspondência com os dispositivos constitucionais alegadamente violados. B) Quer o direito de informar quer os direitos de cidadania – o direito à vida,
à integridade física e moral, ao bom nome, à imagem à liberdade e à reserva da intimidade – têm consagração constitucional, e nenhum deles, em princípio, se sobrepõe aos demais, devendo cada um, no seu exercício, ceder o estritamente necessário e em termos proporcionais de forma a permitirem a concretização adequada aos outros direito. C) O arguido A., na notícia dos autos formulou opiniões e juízos de desvalor e ofensivos do direito à honra, integridade moral, ao bom nome e à imagem do recorrido, ultrapassando e muito o exercício do legítimo direito de informar, no
âmbito de uma questão de discutível interesse público, agindo de má fé e nunca no estrito propósito de informar. D) Ora, pelo exposto, não está o conteúdo da notícia compreendida no exercício dos limites que se impõem ao direito de informar. O recorrente não exerceu o direito à informação e à liberdade de imprensa. Ao invés ABUSOU desses direitos! E) Aqueles juízos de valor, como refere a douta sentença proferida em primeira instância pelo Tribunal Judicial da Comarca da ---------, “não só lança uma suspeita sobre a honorabilidade do assistente, como – em face dos factos a noticiar – se mostra desnecessário e excedendo os limites do adequado, para os fins visados com o artigo jornalístico”. F) Pelo exposto, fácil se torna concluir que o recorrente, com a sua conduta, praticou um crime de difamação, praticado através de meios que facilitam a sua divulgação – imprensa – previsto e punido pelos artigos 180, nº. 1 e 183, nº. 1 alínea a) e b) e nº 2 do Código Penal, sem que houvesse qualquer causa que justifique a conduta do recorrente. G) Consequentemente: o entendimento que o douto acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra conferiu aos artigos 180º, números 1 e 2 e artigo 31º, número 2, alínea b) não viola o artigo 37º, número 1 e 2 e o artigo 38º, número 1 da Constituição da República Portuguesa”.
Foi o recorrente notificado do despacho do relator para se pronunciar, querendo, sobre a alegação do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional por ser possível “entender-se que naquela peça vem suscitada uma questão prévia susceptível de levar ao não conhecimento do objecto do recurso”.
O recorrente respondeu, afirmando o efeito útil do recurso por, em síntese,
“apesar da forma como o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra está redigido, a declaração de inconstitucionalidade proferida este tribunal teria um efeito
útil para o recorrente, o que obriga a um conhecimento do objecto do recurso.
10. Acresce que a apreciação do recurso e a eventual declaração da inconstitucionalidade da interpretação em causa, teria, também, o efeito útil de tornar desnecessário o eventual recurso ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem para o recorrente ver reconhecido o seu direito à liberdade de expressão e de opinião”.
Cumpre apreciar e decidir.
2 – Nas suas contra-alegações, tendo claramente em conta a invocada inconstitucionalidade do artigo 31º nº 2 alínea b) do Código Penal, enquanto exclui a ilicitude do facto quando praticado no exercício de um direito (no caso, o direito de informação), o Ministério Público sustentou que, considerando a instrumentalidade do recurso de constitucionalidade, em fiscalização concreta, o recurso era, no caso inútil. Isto, por o Tribunal não poder sindicar o juízo formulado no acórdão recorrido no sentido de que a conduta do arguido, na parte em que emitira juízos de valor ofensivos da honra e consideração devidos ao visado, se situava já fora do exercício do referido direito de informação.
Mas não tem razão.
Não cabe, com efeito, ao Tribunal Constitucional sindicar os termos em que a decisão judicial recorrida procede à subsunção dos factos dados como provados a uma determinada previsão legal. Mas, ao fazê-lo, a mesma decisão expressa, ou deixa implícita, uma certa interpretação da norma aplicada. E, nesta medida, apreciar se essa norma (ou essa interpretação normativa) se mostra conforme à Constituição, integra-se nos poderes cognitivos do Tribunal Constitucional no âmbito do recurso previsto no artigo 70º nº 1 alínea b) da LTC.
Ora, no caso, se não compete ao Tribunal apreciar se dos factos dados como provados resulta, ou não, que o arguido tenha ultrapassado os limites do direito de informação, já não se subtrai aos seus poderes verificar se o critério normativo acolhido pela decisão impugnada que justificou aquele juízo ofende a Constituição.
E não sobram dúvidas de que o acórdão recorrido fundamenta o seu entendimento na circunstância de os factos referidos na notícia que o arguido redigiu não justificarem o juízo de valor (ofensivo da honra do visado) feito na mesma notícia.
Tal claramente resulta da seguinte passagem do acórdão:
“Mas se tudo isto se pode pôr no campo do possível, ou mesmo do previsível, mas nunca inequívoco, o que é facto é que nunca se curou de saber qual o destino a dar ao imóvel.
Acrescendo a tal conclusão o facto de a proposta do C. ser a mais alta do conjunto das propostas com o fim da venda do imóvel, como pode concluir-se que houve favorecimento do proponente C. ?
Mas, o mais preocupante é como se pode extrapolar daqui para a situação de que tal favorecimento teve em vista o alcançar de um benefício por parte do assistente: o beneficiar de um cargo político Municipal! É algo, face ao expendido, que não radica nas premissas.” (sublinhado nosso)
E, mais adiante:
“Ademais tal imputação nada tem a ver com o conteúdo da notícia.
Se temos de realçar o empenho e seriedade do jornalista na feitura do artigo – os autos falam por si – parece-nos que o “toque final” deita por terra tudo aquilo que poderia ser uma boa e sagaz notícia.” (sublinhado nosso)
Por último quando expressamente afronta a invocada violação do artigo 31º nº 2 alínea b) do Código Penal, diz o aresto:
“Não se mostrando excluída a ilicitude por o facto não ter sido praticado no exercício do direito de expressão e de informação, não tem cabimento avocar-se o disposto no artº 31º, nº 2, al b), do Cód. Penal.”
Ora, face a estes trechos da decisão impugnada, é para o Tribunal claro que se entende que o direito de expressão e de informação não abrange os juízos de valor ofensivos da honra e consideração de terceiros quando estes não são justificados pelos factos noticiados ou mesmo nada têm a ver com o conteúdo da notícia.
O que significa que a norma contida no artigo 31º nº 2 alínea b) do Código Penal, enquanto reportada ao direito de expressão e de informação, é interpretada naquele sentido, pelo que nada obstaria a que o Tribunal Constitucional a sindicasse no confronto com normas e princípios constitucionais. E se a julgasse inconstitucional tal relevaria para a reforma da decisão recorrida, não podendo esta, ao menos, voltar a fundar o seu juízo na mesma interpretação normativa – o recurso não seria, portanto, inútil.
Só que – deve reconhecer-se – o recorrente não pretende a apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 31º nº 2 alínea b) do Código Penal nesta precisa interpretação.
Com efeito, do que o recorrente discorda é de uma pretensa interpretação que subtraia ao conteúdo dos direitos de expressão e de informação a formulação de juízos de valor que, assim, não gozariam da tutela penal e constitucional conferida àqueles direitos.
Ora essa interpretação – ao menos e para já, no que concerne ao disposto no artigo 31º nº 2 alínea b) do Código Penal – não foi acolhida, como se demonstrou, pelo acórdão recorrido. Dele poderá até dizer-se que implicitamente aceita a inclusão dos juízos de valor ofensivos da honra e consideração devidas a terceiros desde que eles se suportem, lógica e adequadamente, nos factos noticiados.
Em suma, o recurso não é inútil mas não pode conhecer-se do objecto do recurso na parte em que se reporta à norma do artigo 31º nº 2 alínea b) do Código Penal.
3 - A outra norma cuja constitucionalidade o recorrente pretende ver sindicada sub specie constitutionis é a que consta do artigo 180º n.º 2 alínea b) do Código Penal no entendimento de que a causa de exclusão de ilicitude ali prevista 'não se aplica a juízos de valor fundamentados' (isto apesar de, por vezes, o recorrente se referir ao artigo 180º nº 2, em geral, sendo certo que a norma aplicada foi apenas a que consta da alínea b) daquele preceito, como, de resto, o mesmo recorrente acaba por evidenciar nos nºs 45, 54 e, decisivamente,
72 das alegações de recurso)
Cumpre, desde já, assinalar que, embora aplicada no acórdão recorrido, a norma não foi interpretada com aquele sentido.
Com efeito, o recorrente não deixa de revelar aqui - no recorte que dá à interpretação que diz ter sido acolhida - a razão essencial da sua discordância do julgado: e ela é a de o acórdão não ter considerado fundamentado o juízo de valor ínsito na notícia em causa.
Simplesmente, sendo certo - disse-se já - que o acórdão considera que esse juízo
'não radica nas premissas [os factos noticiados]' e 'nada tem a ver com o conteúdo da notícia', não pode o Tribunal, no âmbito do presente recurso, exercer qualquer censura sobre tal ilacção de facto.
Por outro lado, sob pena de incongruência no discurso argumentativo do aresto, não pode entender-se que, ao afrontar a alegação de violação do citado artigo
180º n.º 2 alínea b) do Código Penal, a decisão recorrida tivesse em conta a expressão de juízos de valor fundamentados.
E, de facto, que assim não é, revela-o, desde logo o seguinte trecho do acórdão:
'(...) não tem cabimento avocar-se o disposto no artº 31º, n.º 2, al. b) do Cód. Penal e muito menos chamar à colação o disposto no artº 180º n.º
2, al. b) do Cód. Penal'.
Desde logo, por se tratar de formulação de juízos ofensivos e não da imputação de factos ou reprodução das correspondentes imputações. O que, desde logo afasta a aplicação, 'in casu' da causa de justificação enunciada no citado preceito legal - atente-se no teor dos artºs 180º n.ºs 1 e 2 e 181º n.ºs 1 e 2 do Cód. Penal.
E pela simples razão que só quanto à imputação de factos ou à reprodução das correspondentes imputações possa ter lugar a causa de justificação - artº 180º n.º 2, do Cód. Penal.'
Em suma, pois, há que introduzir uma limitação no objecto do recurso, enquanto reportado ao artigo 180º n.º 2 alínea b) do Código Penal, conhecendo da interpretação da norma ali contida no sentido de que a causa de justificação se refere apenas a factos.
4 – Dispõe o artigo 180º do Código Penal:
“Artigo 180º
(Difamação)
1. Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias.
2. A conduta não é punível quando: a) A imputação for feita para realizar interesses legítimos; e b) O agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira”
Ora, com a interpretação feita no acórdão recorrido, a norma em causa – adiante-se já - não enferma de inconstitucionalidade, maxime por violação dos artigos 37º, nºs. 1 e 2 e 38º nº. 1 da Constituição.
Começa por se dizer – mas sem que isto interfira no julgamento de constitucionalidade da interpretação normativa em causa - que a interpretação acolhida pelo acórdão recorrido se insere numa linha jurisprudencial corrente nos nossos tribunais (cfr., entre outros Acs.da Relação de Évora in BMJ n.º 460, pág 817 e da Relação de Coimbra in CJ XXIII, tomo 2, pág. 64) e tem claro apoio na letra do preceito que utiliza a expressão 'imputação', quando no n.º 1 do mesmo artigo 180º se distinguem as situações de 'imputar a outra pessoa (...) um facto' e de 'formular sobre ela um juízo (...) ou reproduzir uma tal imputação ou juízo'.
Diz a propósito Faria Costa, em anotação ao artigo 180º do Código Penal (Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, págs. 609 e segs.) que
“(...) há interesse, e interesse real e efectivo em saber distinguir um facto de um juízo, mormente quando se tiver que lidar com a específica causa de exclusão de ilicitude em que a noção de facto constitui um ponto nuclear (...)”
A imputação de um facto depende da manifestação exterior em que se materializa esse acto. O facto é algo de objectivo.
A formulação de um juízo – ofensivo ou não – é algo de profundamente subjectivo, de reflexivo até. E isto, quer se trate de um juízo sobre factos ou acontecimentos, quer incida sobre pessoas e respectivos comportamentos.
De um ponto de vista puramente gramatical (não jurídico), juízo tem o significado de “acção, efeito ou faculdade intelectual de julgar” ou, doutro modo, “acto, expressão, função do espírito, operação do entendimento, que permite julgar, apreciar, perceber a existência de uma relação entre pessoas, ideias ou coisas, destrinçar os atributos ou predicados existentes em algum sujeito; discernimento, inteligência” [cf. José Pedro Machado (coord.), Grande Dicionário da Língua Portuguesa, vol. III, págs. 499 a 500].
No Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa, juízo aparece como sinónimo de “faculdade intelectual de comparar; acto ou efeito de julgar. Discernimento, entendimento, raciocínio. Pensamento expresso sob a forma de proposição enunciativa. (…) Maturidade intelectual aliada a um comportamento responsável”.
Na entrada “juízo de valor” encontramos “opinião que encerra uma apreciação, uma classificação” (cf., vol. G-Z, págs. 2196 a 2197).
Ora, desde logo, por se tratar de uma convicção, não é mesmo possível – até de um ponto de vista puramente lógico – fazer a prova da veracidade dessa mesma convicção.
Um juízo de valor, enquanto e como convicção é, pela própria natureza das coisas, indemonstrável, “improvável”.
E não se vê que a tutela constitucional do direito de livre expressão do pensamento e da liberdade de imprensa imponha uma norma que permita a prova da verdade (a exceptio veritatis) de um juízo de valor ofensivo da honra e consideração devidas a terceiros em ordem a justificar o facto ofensivo.
Coisa diversa é a protecção da liberdade de imprensa fazendo nela compreender, como exercício de um direito, a expressão de juízos de valor que, embora lesivos da honra e do bom nome de terceiros, possam decorrer dos factos verídicos relatados, muito particularmente quando o visado é uma personalidade pública e a noticia possa relevar para a formação democrática da opinião pública.
E se as restrições à liberdade de expressão e informação são de algum modo devolvidas para o direito criminal (artigo 37º nº 3 da CRP), no pressuposto de que o uso dessa liberdade pode atingir – e frequentemente atinge – outros bens e valores constitucionalmente tutelados, nem por isso o legislador penal, na solução que, explicita ou implicitamente, dá à colisão de direitos, deixa de estar vinculado aos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade a que devem obedecer as leis restritivas dos direitos, liberdades e garantias
(artigo 18º nºs 2 e 3 da CRP) – cfr. Figueiredo Dias “Direito de Informação e Tutela da Honra no Direito Penal da Imprensa Português” in Revista de Legislação e Jusrisprudência, ano 115, pág. 102)
Nesta medida, aceita-se que a vinculação do legislador penal se deva dimensionar em termos tais que, em certas condições, se faça prevalecer a liberdade de imprensa relativamente aos direitos ao bom nome e reputação, com particular tolerância para as opiniões ou juízos de valor emitidos de boa fé e assentes em factos verídicos.
Em tal conformidade, a tutela constitucional da liberdade de imprensa mostra-se assegurada, sem que ela reclame a exclusão da ilicitude. em casos de juízos de valor ofensivos, com fundamento na “prova improvável” da veracidade desses juízos.
É que a norma ínsita no artigo 180º nº 2 do Código Penal não é, no plano do direito infraconstitucional, a única convocável para julgar se os juízos de valor ainda justificam a ofensa a outros direitos, afastando a sua ilicitude.
E que é assim revela-o o próprio acórdão recorrido quando, sem embargo de admitir que elas ofendiam a honra do visado, aprecia os juízos de valor que se insinuam na notícia, para aferir da sua plausibilidade, tendo em conta os factos noticiados.
Tal só pode compreender-se numa lógica que, no caso, poderia levar à justificação do facto se a conclusão (o juízo de valor) “radica(sse) nas premissas” ou “(tivesse) a ver com o conteúdo da notícia”, o que, segundo o acórdão – num âmbito que está fora dos poderes cognitivos do Tribunal Constitucional – não aconteceu.
É, pois, no plano da configuração do direito em causa e com a ponderação dos bens conflituantes – liberdade de imprensa versus bom nome dos visados – que o julgador poderá fazer relevar a justificação dos juízos de valor ofensivos ou difamatórios, como estando estes ainda compreendidos no “exercício de um direito” (artigo 31º nº 2 do Código Penal).
Existe, assim, no nosso ordenamento jurídico-penal – maxime no citado artigo 31º nº 2 do Código Penal - norma que permite considerar legítimos juízos de valor ofensivos ou difamatórios, formulados no exercício da liberdade de expressão através da imprensa (e era o que, no caso, o recorrente pretendia), sendo certo que a norma do artigo 180º nº 2 alínea b) do Código Penal não esgota a protecção dessa liberdade, deixando a descoberto, com algo de espúrio à tutela constitucional, a emissão daqueles juízos.
Em suma, pois, a norma do artigo 180º nº 2 alínea b) do Código Penal, interpretada em termos de ela não abranger juízos de valor, não viola qualquer princípio ou preceito constitucional.
6 – Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 Ucs.
Lisboa, 24 de Março de 2004
Artur Maurício Rui Manuel Moura Ramos Carlos Pamplona de Oliveira Maria Helena Brito Luís Nunes de Almeida
ACÓRDÃ0 N.º 201/2004 Proc. nº. 361/03 TC - 1ª Secção Relator: Cons.º Artur Maurício
Acórdão na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 – A. interpõe recurso para este Tribunal, ao abrigo da alínea b) do nº. 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, por não se conformar com o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra que, mantendo a decisão da 1ª instância, o condenou como autor de um crime de difamação, p. e p. pelos artigos 180º, nº. 1 e 183º, nº 2 do Código Penal na pena de 130 dias de multa, à taxa diária de Esc.
1 250$00, no montante de 162 500$00.
Inconformado com a sentença condenatória proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca da ----------, o arguido recorreu para o Tribunal da Relação de Coimbra, versando o recurso sobre matéria de facto e de direito, tendo dito nas conclusões da sua alegação, no que tange à questão de constitucionalidade:
“(...) XIII – Igualmente, a douta sentença em apreço, ao sobrevalorizar a pretensa honra e consideração do assistente face à liberdade de expressão e de imprensa, violou os artºs. 37º nºs. 1 e 2 e 38º nº 1 da Constituição da República Portuguesa à luz dos quais devia ser interpretada a aplicação em concreto do artº. 180º do C.P.. XIV – Por último, dir-se-á, que a douta sentença violou a liberdade de expressão consagrada no artº. 10º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, sendo absolutamente injustificada, por desnecessária e desproporcionada, a condenação criminal e cível do recorrente. XV – Termos em que deverá ser revogada a sentença “a quo” e substituída por outra que absolva o recorrente criminal e civilmente por ser legítima a sua actuação”.
Por acórdão de 19 de Março de 2003, o Tribunal da Relação de Coimbra negou provimento ao recurso na parte criminal e quanto ao pedido de indemnização civil, condenou o arguido “(...), além do mais, no pagamento de juros de mora, vencidos e vincendos, sobre o montante indemnizatório, desde a prolação da sentença de 1ª instância e até integral pagamento daquela.”
De novo inconformado, o arguido interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, tendo dito no respectivo requerimento de interposição:
“1. O recorrente pretende ver apreciada a inconstitucionalidade dos artigos
180º, nºs. 1 e 2 e 31º, nº. 2, alínea b), ambos do Código Penal, no entendimento que lhes foi dado pelo Tribunal da Relação de Coimbra, em violação dos artigos
37º, nº 1 e 2 e 38º, nº 1 do Constituição da República Portuguesa.
2. No entendimento deste Tribunal, um trabalho jornalístico, sério e credível, que resulta de uma investigação jornalística e que versa sobre um assunto de interesse público, em que estão envolvidas entidades públicas, extravasa o
âmbito da liberdade de informação e de imprensa, a que se referem os referidos artigos da CRP, por estarem em causa juízos de valor e não a imputação de factos.
3. Em consequência, considerou que estando-se perante juízos de valor ofensivos não tem aplicação o artigo 180º, nº 2 do CP, que apenas se aplica a imputações de facto, e não tem aplicação o artigo 31º, nº. 2, alínea b) do CP, por se estar perante uma conduta ilícita.
4. Tal entendimento põe em causa de forma constitucionalmente inadmissível a liberdade de opinião e de imprensa.
5. Embora a posição assumida no douto acórdão seja inesperada, contrariando a jurisprudência generalizada, o recorrente já havia suscitado a questão da inconstitucionalidade no recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra”.
Admitido o recurso, o Recorrente apresentou as suas alegações que concluiu como segue:
“I. A não aplicação pelo Tribunal da Relação de Lisboa (sic) das causas de exclusão da ilicitude previstas nos artigos 180º, nº. 1 e 2 e 31º, nº 2, al. b), ambos do Código Penal às expressões em causa, por se tratarem de juízos de valor e não imputações de factos, viola os artigos 37º, nº 1 e 2 e 38º, nº. 1 da Constituição da República Portuguesa, em virtude de a liberdade de opinião ser uma componente fundamental da liberdade de expressão e de informação, protegidos nos referidos artigos da lei fundamental. II. O recorrente fez um trabalho de investigação jornalística sério, ouvindo todos os interessados (incluindo o assistente) e recorrendo a diversas fontes de informação – documentais e testemunhais – sendo que os factos relatados na notícia correspondem, no essencial, aos relatos que recolheu. III. O assunto da notícia é de relevante interesse público, em que estão envolvidas entidades públicas (compra de um imóvel por um partido político a uma instituição privada de solidariedade social, que dera origem a uma investigação por parte da Inspecção-Geral da Segurança Social), sendo o assistente uma figura pública a nível local, pelos cargos políticos e associativos que exercia. IV. Estando em causa um assunto de relevante interesse público e uma figura pública os limites da crítica admissível são maiores, só não sendo admitida quando a mesma é gratuita, quando se trata de puro e simples insulto, proferido com a mera intenção de ofender e sem qualquer fundamentação de facto. V. A publicação de juízos de valor ofensivos da honra e consideração de terceiros não é, de per si, ilícita, devendo avaliar-se se a conduta em causa é ou não ilícita, por aplicação das causas de exclusão da ilicitude previstas nos artigos 180º, nº 2 e 31º, nº 2, al. b) do CP, sob pena de se coarctar ilicitamente a liberdade de opinião. VI. A legitimidade da publicação de juízos de valor advém da prova da veracidade dos factos que lhes servem de suporte, ou da prova de que existia uma convicção séria de que eram verdadeiros, uma vez que estes são pressupostos necessários para a formação daqueles. VII. “O direito de informação ligado à função pública da imprensa como causa justificativa da ofensa à honra define-se decerto pelo seu conteúdo, mas também pelas condições concretas do seu exercício. Tais condições são reveladas no artigo 180º, nº 2 do Código Penal e constituem o pressuposto de funcionamento da respectiva causa de justificação” – cfr. voto de vencido do acórdão recorrido. VIII. A publicação dos juízos de valor em causa está justificada, nos termos do artigo 180º, nº. 2 do CP, pelo que a conduta do recorrente não é punível. IX. Acresce que, estando a publicação justificada, nos termos do artigo 180º, nº2 do CP, a conduta do arguido enquadra-se no exercício do direito de expressão, de informação e de imprensa do arguido, o que vale como causa de exclusão da ilicitude nos termos do artigo 31º, nº2, al. b) do CP . X. Pelo exposto, o acórdão recorrido padece de uma dupla inconstitucionalidade por violação dos artigos 37º e 38º da CRP: por um lado, é inconstitucional o entendimento de que a causa de exclusão da ilicitude prevista no artigo 180º, nº. 2, al. b) do CP não se aplica a juízos de valor fundamentados e, por outro lado, é inconstitucional o entendimento de que juízos de valor ofensivos da honra e consideração exorbitam, de per si, o normal exercício do direito de informação, o que conduz à inaplicabilidade da causa de exclusão da ilicitude prevista no artigo 31º, nº. 2, al.b) do CP”.
O Procurador-Geral Adjunto em exercício neste Tribunal contra-alegou, tendo dito a concluir:
“1. Está fora dos poderes cognitivos do Tribunal Constitucional sindicar a natureza típica e ilícita da acção do recorrente, tal como a decisão recorrida a caracterizou, afastando a verificação de qualquer causa de exclusão da ilicitude.
2. Assente que está a função instrumental do recurso de constitucionalidade, carece de interesse processual o conhecimento das questões suscitadas, tal como o recorrente as coloca, pois que daí nenhum efeito útil resultaria, que pudesse inverter o sentido condenatório da decisão de mérito proferida no processo.
3. Termos em que não deverá proceder o presente recurso”.
O assistente B. também contra-alegou, apresentando as seguintes conclusões:
“A) Salvo o elevado e devido respeito pela douta Alegação apresentada pelo recorrente A., o presente recurso não merece provimento, pois que, o douto acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, aqui atacado, é correcto, tanto na forma como no conteúdo, encontrando-se bem estribado na questão aqui vertente e encontrando plena correspondência com os dispositivos constitucionais alegadamente violados. B) Quer o direito de informar quer os direitos de cidadania – o direito à vida,
à integridade física e moral, ao bom nome, à imagem à liberdade e à reserva da intimidade – têm consagração constitucional, e nenhum deles, em princípio, se sobrepõe aos demais, devendo cada um, no seu exercício, ceder o estritamente necessário e em termos proporcionais de forma a permitirem a concretização adequada aos outros direito. C) O arguido A., na notícia dos autos formulou opiniões e juízos de desvalor e ofensivos do direito à honra, integridade moral, ao bom nome e à imagem do recorrido, ultrapassando e muito o exercício do legítimo direito de informar, no
âmbito de uma questão de discutível interesse público, agindo de má fé e nunca no estrito propósito de informar. D) Ora, pelo exposto, não está o conteúdo da notícia compreendida no exercício dos limites que se impõem ao direito de informar. O recorrente não exerceu o direito à informação e à liberdade de imprensa. Ao invés ABUSOU desses direitos! E) Aqueles juízos de valor, como refere a douta sentença proferida em primeira instância pelo Tribunal Judicial da Comarca da ---------, “não só lança uma suspeita sobre a honorabilidade do assistente, como – em face dos factos a noticiar – se mostra desnecessário e excedendo os limites do adequado, para os fins visados com o artigo jornalístico”. F) Pelo exposto, fácil se torna concluir que o recorrente, com a sua conduta, praticou um crime de difamação, praticado através de meios que facilitam a sua divulgação – imprensa – previsto e punido pelos artigos 180, nº. 1 e 183, nº. 1 alínea a) e b) e nº 2 do Código Penal, sem que houvesse qualquer causa que justifique a conduta do recorrente. G) Consequentemente: o entendimento que o douto acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra conferiu aos artigos 180º, números 1 e 2 e artigo 31º, número 2, alínea b) não viola o artigo 37º, número 1 e 2 e o artigo 38º, número 1 da Constituição da República Portuguesa”.
Foi o recorrente notificado do despacho do relator para se pronunciar, querendo, sobre a alegação do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional por ser possível “entender-se que naquela peça vem suscitada uma questão prévia susceptível de levar ao não conhecimento do objecto do recurso”.
O recorrente respondeu, afirmando o efeito útil do recurso por, em síntese,
“apesar da forma como o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra está redigido, a declaração de inconstitucionalidade proferida este tribunal teria um efeito
útil para o recorrente, o que obriga a um conhecimento do objecto do recurso.
10. Acresce que a apreciação do recurso e a eventual declaração da inconstitucionalidade da interpretação em causa, teria, também, o efeito útil de tornar desnecessário o eventual recurso ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem para o recorrente ver reconhecido o seu direito à liberdade de expressão e de opinião”.
Cumpre apreciar e decidir.
2 – Nas suas contra-alegações, tendo claramente em conta a invocada inconstitucionalidade do artigo 31º nº 2 alínea b) do Código Penal, enquanto exclui a ilicitude do facto quando praticado no exercício de um direito (no caso, o direito de informação), o Ministério Público sustentou que, considerando a instrumentalidade do recurso de constitucionalidade, em fiscalização concreta, o recurso era, no caso inútil. Isto, por o Tribunal não poder sindicar o juízo formulado no acórdão recorrido no sentido de que a conduta do arguido, na parte em que emitira juízos de valor ofensivos da honra e consideração devidos ao visado, se situava já fora do exercício do referido direito de informação.
Mas não tem razão.
Não cabe, com efeito, ao Tribunal Constitucional sindicar os termos em que a decisão judicial recorrida procede à subsunção dos factos dados como provados a uma determinada previsão legal. Mas, ao fazê-lo, a mesma decisão expressa, ou deixa implícita, uma certa interpretação da norma aplicada. E, nesta medida, apreciar se essa norma (ou essa interpretação normativa) se mostra conforme à Constituição, integra-se nos poderes cognitivos do Tribunal Constitucional no âmbito do recurso previsto no artigo 70º nº 1 alínea b) da LTC.
Ora, no caso, se não compete ao Tribunal apreciar se dos factos dados como provados resulta, ou não, que o arguido tenha ultrapassado os limites do direito de informação, já não se subtrai aos seus poderes verificar se o critério normativo acolhido pela decisão impugnada que justificou aquele juízo ofende a Constituição.
E não sobram dúvidas de que o acórdão recorrido fundamenta o seu entendimento na circunstância de os factos referidos na notícia que o arguido redigiu não justificarem o juízo de valor (ofensivo da honra do visado) feito na mesma notícia.
Tal claramente resulta da seguinte passagem do acórdão:
“Mas se tudo isto se pode pôr no campo do possível, ou mesmo do previsível, mas nunca inequívoco, o que é facto é que nunca se curou de saber qual o destino a dar ao imóvel.
Acrescendo a tal conclusão o facto de a proposta do C. ser a mais alta do conjunto das propostas com o fim da venda do imóvel, como pode concluir-se que houve favorecimento do proponente C. ?
Mas, o mais preocupante é como se pode extrapolar daqui para a situação de que tal favorecimento teve em vista o alcançar de um benefício por parte do assistente: o beneficiar de um cargo político Municipal! É algo, face ao expendido, que não radica nas premissas.” (sublinhado nosso)
E, mais adiante:
“Ademais tal imputação nada tem a ver com o conteúdo da notícia.
Se temos de realçar o empenho e seriedade do jornalista na feitura do artigo – os autos falam por si – parece-nos que o “toque final” deita por terra tudo aquilo que poderia ser uma boa e sagaz notícia.” (sublinhado nosso)
Por último quando expressamente afronta a invocada violação do artigo 31º nº 2 alínea b) do Código Penal, diz o aresto:
“Não se mostrando excluída a ilicitude por o facto não ter sido praticado no exercício do direito de expressão e de informação, não tem cabimento avocar-se o disposto no artº 31º, nº 2, al b), do Cód. Penal.”
Ora, face a estes trechos da decisão impugnada, é para o Tribunal claro que se entende que o direito de expressão e de informação não abrange os juízos de valor ofensivos da honra e consideração de terceiros quando estes não são justificados pelos factos noticiados ou mesmo nada têm a ver com o conteúdo da notícia.
O que significa que a norma contida no artigo 31º nº 2 alínea b) do Código Penal, enquanto reportada ao direito de expressão e de informação, é interpretada naquele sentido, pelo que nada obstaria a que o Tribunal Constitucional a sindicasse no confronto com normas e princípios constitucionais. E se a julgasse inconstitucional tal relevaria para a reforma da decisão recorrida, não podendo esta, ao menos, voltar a fundar o seu juízo na mesma interpretação normativa – o recurso não seria, portanto, inútil.
Só que – deve reconhecer-se – o recorrente não pretende a apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 31º nº 2 alínea b) do Código Penal nesta precisa interpretação.
Com efeito, do que o recorrente discorda é de uma pretensa interpretação que subtraia ao conteúdo dos direitos de expressão e de informação a formulação de juízos de valor que, assim, não gozariam da tutela penal e constitucional conferida àqueles direitos.
Ora essa interpretação – ao menos e para já, no que concerne ao disposto no artigo 31º nº 2 alínea b) do Código Penal – não foi acolhida, como se demonstrou, pelo acórdão recorrido. Dele poderá até dizer-se que implicitamente aceita a inclusão dos juízos de valor ofensivos da honra e consideração devidas a terceiros desde que eles se suportem, lógica e adequadamente, nos factos noticiados.
Em suma, o recurso não é inútil mas não pode conhecer-se do objecto do recurso na parte em que se reporta à norma do artigo 31º nº 2 alínea b) do Código Penal.
3 - A outra norma cuja constitucionalidade o recorrente pretende ver sindicada sub specie constitutionis é a que consta do artigo 180º n.º 2 alínea b) do Código Penal no entendimento de que a causa de exclusão de ilicitude ali prevista 'não se aplica a juízos de valor fundamentados' (isto apesar de, por vezes, o recorrente se referir ao artigo 180º nº 2, em geral, sendo certo que a norma aplicada foi apenas a que consta da alínea b) daquele preceito, como, de resto, o mesmo recorrente acaba por evidenciar nos nºs 45, 54 e, decisivamente,
72 das alegações de recurso)
Cumpre, desde já, assinalar que, embora aplicada no acórdão recorrido, a norma não foi interpretada com aquele sentido.
Com efeito, o recorrente não deixa de revelar aqui - no recorte que dá à interpretação que diz ter sido acolhida - a razão essencial da sua discordância do julgado: e ela é a de o acórdão não ter considerado fundamentado o juízo de valor ínsito na notícia em causa.
Simplesmente, sendo certo - disse-se já - que o acórdão considera que esse juízo
'não radica nas premissas [os factos noticiados]' e 'nada tem a ver com o conteúdo da notícia', não pode o Tribunal, no âmbito do presente recurso, exercer qualquer censura sobre tal ilacção de facto.
Por outro lado, sob pena de incongruência no discurso argumentativo do aresto, não pode entender-se que, ao afrontar a alegação de violação do citado artigo
180º n.º 2 alínea b) do Código Penal, a decisão recorrida tivesse em conta a expressão de juízos de valor fundamentados.
E, de facto, que assim não é, revela-o, desde logo o seguinte trecho do acórdão:
'(...) não tem cabimento avocar-se o disposto no artº 31º, n.º 2, al. b) do Cód. Penal e muito menos chamar à colação o disposto no artº 180º n.º
2, al. b) do Cód. Penal'.
Desde logo, por se tratar de formulação de juízos ofensivos e não da imputação de factos ou reprodução das correspondentes imputações. O que, desde logo afasta a aplicação, 'in casu' da causa de justificação enunciada no citado preceito legal - atente-se no teor dos artºs 180º n.ºs 1 e 2 e 181º n.ºs 1 e 2 do Cód. Penal.
E pela simples razão que só quanto à imputação de factos ou à reprodução das correspondentes imputações possa ter lugar a causa de justificação - artº 180º n.º 2, do Cód. Penal.'
Em suma, pois, há que introduzir uma limitação no objecto do recurso, enquanto reportado ao artigo 180º n.º 2 alínea b) do Código Penal, conhecendo da interpretação da norma ali contida no sentido de que a causa de justificação se refere apenas a factos.
4 – Dispõe o artigo 180º do Código Penal:
“Artigo 180º
(Difamação)
2. Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias.
2. A conduta não é punível quando: c) A imputação for feita para realizar interesses legítimos; e d) O agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira”
Ora, com a interpretação feita no acórdão recorrido, a norma em causa – adiante-se já - não enferma de inconstitucionalidade, maxime por violação dos artigos 37º, nºs. 1 e 2 e 38º nº. 1 da Constituição.
Começa por se dizer – mas sem que isto interfira no julgamento de constitucionalidade da interpretação normativa em causa - que a interpretação acolhida pelo acórdão recorrido se insere numa linha jurisprudencial corrente nos nossos tribunais (cfr., entre outros Acs.da Relação de Évora in BMJ n.º 460, pág 817 e da Relação de Coimbra in CJ XXIII, tomo 2, pág. 64) e tem claro apoio na letra do preceito que utiliza a expressão 'imputação', quando no n.º 1 do mesmo artigo 180º se distinguem as situações de 'imputar a outra pessoa (...) um facto' e de 'formular sobre ela um juízo (...) ou reproduzir uma tal imputação ou juízo'.
Diz a propósito Faria Costa, em anotação ao artigo 180º do Código Penal (Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, págs. 609 e segs.) que
“(...) há interesse, e interesse real e efectivo em saber distinguir um facto de um juízo, mormente quando se tiver que lidar com a específica causa de exclusão de ilicitude em que a noção de facto constitui um ponto nuclear (...)”
A imputação de um facto depende da manifestação exterior em que se materializa esse acto. O facto é algo de objectivo.
A formulação de um juízo – ofensivo ou não – é algo de profundamente subjectivo, de reflexivo até. E isto, quer se trate de um juízo sobre factos ou acontecimentos, quer incida sobre pessoas e respectivos comportamentos.
De um ponto de vista puramente gramatical (não jurídico), juízo tem o significado de “acção, efeito ou faculdade intelectual de julgar” ou, doutro modo, “acto, expressão, função do espírito, operação do entendimento, que permite julgar, apreciar, perceber a existência de uma relação entre pessoas, ideias ou coisas, destrinçar os atributos ou predicados existentes em algum sujeito; discernimento, inteligência” [cf. José Pedro Machado (coord.), Grande Dicionário da Língua Portuguesa, vol. III, págs. 499 a 500].
No Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa, juízo aparece como sinónimo de “faculdade intelectual de comparar; acto ou efeito de julgar. Discernimento, entendimento, raciocínio. Pensamento expresso sob a forma de proposição enunciativa. (…) Maturidade intelectual aliada a um comportamento responsável”.
Na entrada “juízo de valor” encontramos “opinião que encerra uma apreciação, uma classificação” (cf., vol. G-Z, págs. 2196 a 2197).
Ora, desde logo, por se tratar de uma convicção, não é mesmo possível – até de um ponto de vista puramente lógico – fazer a prova da veracidade dessa mesma convicção.
Um juízo de valor, enquanto e como convicção é, pela própria natureza das coisas, indemonstrável, “improvável”.
E não se vê que a tutela constitucional do direito de livre expressão do pensamento e da liberdade de imprensa imponha uma norma que permita a prova da verdade (a exceptio veritatis) de um juízo de valor ofensivo da honra e consideração devidas a terceiros em ordem a justificar o facto ofensivo.
Coisa diversa é a protecção da liberdade de imprensa fazendo nela compreender, como exercício de um direito, a expressão de juízos de valor que, embora lesivos da honra e do bom nome de terceiros, possam decorrer dos factos verídicos relatados, muito particularmente quando o visado é uma personalidade pública e a noticia possa relevar para a formação democrática da opinião pública.
E se as restrições à liberdade de expressão e informação são de algum modo devolvidas para o direito criminal (artigo 37º nº 3 da CRP), no pressuposto de que o uso dessa liberdade pode atingir – e frequentemente atinge – outros bens e valores constitucionalmente tutelados, nem por isso o legislador penal, na solução que, explicita ou implicitamente, dá à colisão de direitos, deixa de estar vinculado aos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade a que devem obedecer as leis restritivas dos direitos, liberdades e garantias
(artigo 18º nºs 2 e 3 da CRP) – cfr. Figueiredo Dias “Direito de Informação e Tutela da Honra no Direito Penal da Imprensa Português” in Revista de Legislação e Jusrisprudência, ano 115, pág. 102)
Nesta medida, aceita-se que a vinculação do legislador penal se deva dimensionar em termos tais que, em certas condições, se faça prevalecer a liberdade de imprensa relativamente aos direitos ao bom nome e reputação, com particular tolerância para as opiniões ou juízos de valor emitidos de boa fé e assentes em factos verídicos.
Em tal conformidade, a tutela constitucional da liberdade de imprensa mostra-se assegurada, sem que ela reclame a exclusão da ilicitude. em casos de juízos de valor ofensivos, com fundamento na “prova improvável” da veracidade desses juízos.
É que a norma ínsita no artigo 180º nº 2 do Código Penal não é, no plano do direito infraconstitucional, a única convocável para julgar se os juízos de valor ainda justificam a ofensa a outros direitos, afastando a sua ilicitude.
E que é assim revela-o o próprio acórdão recorrido quando, sem embargo de admitir que elas ofendiam a honra do visado, aprecia os juízos de valor que se insinuam na notícia, para aferir da sua plausibilidade, tendo em conta os factos noticiados.
Tal só pode compreender-se numa lógica que, no caso, poderia levar à justificação do facto se a conclusão (o juízo de valor) “radica(sse) nas premissas” ou “(tivesse) a ver com o conteúdo da notícia”, o que, segundo o acórdão – num âmbito que está fora dos poderes cognitivos do Tribunal Constitucional – não aconteceu.
É, pois, no plano da configuração do direito em causa e com a ponderação dos bens conflituantes – liberdade de imprensa versus bom nome dos visados – que o julgador poderá fazer relevar a justificação dos juízos de valor ofensivos ou difamatórios, como estando estes ainda compreendidos no “exercício de um direito” (artigo 31º nº 2 do Código Penal).
Existe, assim, no nosso ordenamento jurídico-penal – maxime no citado artigo 31º nº 2 do Código Penal - norma que permite considerar legítimos juízos de valor ofensivos ou difamatórios, formulados no exercício da liberdade de expressão através da imprensa (e era o que, no caso, o recorrente pretendia), sendo certo que a norma do artigo 180º nº 2 alínea b) do Código Penal não esgota a protecção dessa liberdade, deixando a descoberto, com algo de espúrio à tutela constitucional, a emissão daqueles juízos.
Em suma, pois, a norma do artigo 180º nº 2 alínea b) do Código Penal, interpretada em termos de ela não abranger juízos de valor, não viola qualquer princípio ou preceito constitucional.
6 – Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 Ucs. Lisboa, 24 de Março de 2004 Artur Maurício Rui Manuel Moura Ramos Carlos Pamplona de Oliveira Maria Helena Brito Luís Nunes de Almeida