Imprimir acórdão
Proc.º n.º418/99 PLENÁRIO Consº Vítor Nunes de Almeida
ACORDAM NO PLENÁRIO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
I - RELATÓRIO:
1. - O Presidente da Assembleia Municipal de Portimão enviou ao Tribunal Constitucional, com um ofício de 4 de Junho de 1999, um requerimento através do qual solicitou, de acordo com o preceituado no artigo
1º, n.º 1, da Lei n.º 49/90, de 24 de Agosto, a apreciação da legalidade e da constitucionalidade de uma consulta directa a nível local, com incidência nos eleitores das freguesias do concelho de Portimão sobre o projecto que implica a demolição do antigo 'mercado da verdura'.
Anexou ao requerimento certidão da acta da reunião da Câmara Municipal de Portimão de 20 de Abril de 1999, registo da recepção pela Assembleia Municipal de Portimão, da proposta, extracto da acta n.º 5/99, da Assembleia Municipal de Portimão, com o texto da deliberação e certidão da acta nº 5/99 da sessão extraordinária da Assembleia Municipal de Portimão de 28 de Maio de 1999.
2. - Dos documentos juntos aos autos, consideram-se assentes os seguintes factos, com interesse para a decisão: A. Subscrita pelo Presidente da Câmara Municipal de Portimão, foi elaborada uma proposta datada de 4 de Junho de 1999, nos seguintes termos:
'Considerando que a Câmara Municipal aprovou um projecto de construção de uma ampla alameda na Praça da República, visando a revitalização da zona mais nobre e comercial da cidade; Considerando que essa ampla alameda, constituída por espaços verdes e de lazer, bem como de um estacionamento subterrâneo, será um factor de dinamização do comércio tradicional, em fase de crise evidente; Considerando que a construção desta alameda implica a demolição do antigo
'mercado da verdura'; Considerando que desde há bastante tempo, e seguramente para sempre, o antigo
'mercado da verdura' não voltará a ser utilizado como tal, face à existência de novo local para o efeito; Considerando que o referido edifício não é classificado, e que segundo o IPPAR não tem valor arquitectónico, mas tão só algum valor rememorativo; Considerando que o projecto aprovado vai também potenciar a reposição da grandeza e dignidade da Igreja do Colégio, monumento do Séc. XVII e do rossio que lhe fica em frente, Considerando, contudo, que o empolamento da polémica em volta deste projecto está ultrapassando o elementar senso comum e a que urge pôr cobro; Considerando que é vontade do órgão executivo continuar a pugnar pelo bem estar da população, entendendo, por isso, neste caso, dever escutar a sua vontade e decidir consequentemente; Considerando o disposto na Lei n.o 49/90, de 24 de Agosto, sobre as consultas locais e no novo artigo 240.o da Constituição da República Portuguesa; Tenho a honra de propor que a Câmara delibere:
1 - Nos termos da Lei n.º 49/90, solicitar ao Tribunal Constitucional a apreciação de constitucionalidade e legalidade de uma consulta directa a nível local, com incidência nos eleitores das freguesias do concelho de Portimão sobre o projecto que implica a demolição do antigo 'mercado da verdura'.
2 - A pergunta a fazer aos eleitores deve ter o seguinte teor:
--------------------------------Concorda com a construção de uma alameda na Praça da República, entre a Rua Diogo Tomé e a R. França Borges, com a criação de uma ampla zona verde e de lazer o que implica a demolição do antigo 'mercado da verdura, Sim... Não...
3 - Submeter esta proposta à deliberação da Assembleia Municipal
4 - Em caso de concordância do órgão deliberativo e da aprovação pelo Tribunal Constitucional, promover um amplo debate acerca das vantagens e inconvenientes do projecto aprovado, antes da consulta aos eleitores. A Câmara delibera aprovar, por unanimidade, a proposta apresentada pelo Sr. Presidente da Câmara. Os Srs. Vereadores do PSD apresentaram declaração de voto. Mais foi deliberado remeter à Assembleia Municipal, para deliberação' B. Esta proposta foi submetida a deliberação na Câmara Municipal de Portimão, tendo sido aprovada por unanimidade, mas tendo os vereadores do PSD apresentado uma declaração de voto; C. Em 13 de Maio de 1999, foi tal proposta recebida na Assembleia Municipal de Portimão; D. Em 28 de Maio de 1999, no decorrer da sessão extraordinária n.º 5/99, da Assembleia Municipal, foi submetida a deliberação a «Proposta da Câmara Municipal de Portimão, nos termos da Lei Número quarenta e nove barra noventa, de solicitar ao Tribunal Constitucional, a apreciação de constitucionalidade e legalidade de uma consulta directa a nível local, com incidência nos eleitores das freguesias do concelho de Portimão sobre o Projecto que implica a demolição do mercado da verdura», tendo sido aprovada com vinte votos favoráveis, duas abstenções e dois votos contra. E. Nessa mesma sessão, foi submetida a votação a proposta da pergunta a submeter aos cidadãos eleitores na consulta directa, tendo a mesma sido aprovada por maioria, com catorze votos favoráveis e dez votos contra.
II - FUNDAMENTOS:
3. - Não existem irregularidades processuais.
De facto, a proposta de consulta foi apresentada pelo
órgão executivo da autarquia (artigo 8º, alínea a), da Lei n.º 49/90); a proposta contém uma única pergunta a submeter aos eleitores das freguesias do concelho de Portimão (artigo 240º, n.º1, da Constituição e artigos 3º, n.º1, 4º e 9º, n.º1 da Lei n.º 49/90); a deliberação sobre a realização da consulta foi tomada pela Assembleia Municipal à pluralidade de votos – 14 votos favoráveis e dez votos contra (artigo 10º da Lei n.º 49/90), dentro do prazo de 15 dias a contar da recepção da proposta (artigos 6º, n.ºs 1 e 2, da referida Lei); o requerimento do Presidente da Assembleia Municipal a pedir a apreciação da legalidade e constitucionalidade da consulta local foi enviado ao Presidente do Tribunal Constitucional dentro do prazo de oito dias ( no dia 7 de Junho de
1999) a contar da deliberação (tomada no dia 28 de Maio, caindo o oitavo dia a um sábado e estando o Tribunal fechado nos dias 5 e 6 de Junho); o requerimento vinha acompanhado do texto da deliberação e certidão da acta da sessão em que foi tomada (n.ºs 1 e 2 do artigo 11º da Lei n.º 49/90).
4. - Afastada a existência de irregularidades processuais, importa apurar se o objecto da consulta se inscreve na matéria de competência da autarquia local, uma vez que, de acordo com o que se preceitua no artigo 240º, n.º1 da Constituição em vigor, as autarquias locais só podem submeter a referendo 'matérias incluídas nas competências dos seus órgãos, nos termos e com a eficácia que a lei estabelecer'. Este preceito corresponde ao n.º3 do artigo 241º da anterior versão da Constituição, que se referia à
«competência exclusiva» dos órgãos das autarquias locais.
O Tribunal Constitucional já teve oportunidade de se pronunciar sobre o sentido desta alteração, tendo concluído que após a Revisão de 1997, podem constituir matéria de referendo local as matérias de competência meramente consultiva dos órgãos das autarquias locais (cfr. neste sentido, o Acórdão n.º 390/98, in 'Diário da República', Iª Série – A, de 9 de Novembro de
1998). Neste acórdão, o Tribunal não se pronunciou sobre se a modificação do preceito constitucional implicou a revogação implícita do n.º1 do artigo 2º da Lei n.º 49/90, de 24 de Agosto. Esta questão que se tem mantido em aberto, também não necessita de ser enfrentada no caso em apreço, uma vez que a matéria que vai constituir objecto do referendo em análise não invade a esfera de competência de qualquer outro ente público.
De qualquer modo, importa demonstrar que a matéria em questão se integra na competência dos órgãos da autarquia local.
De acordo com o n.º2 do artigo 235º da Constituição, 'as autarquias locais são pessoas colectivas territoriais dotadas de órgãos representativos, que visam a prossecução de interesses próprios das populações respectivas'.
Estes interesses não podem deixar de ser os interesses comuns dos cidadãos residentes na área da autarquia e que são diferentes dos interesses nacionais e podem também diferenciar-se dos interesses de outras comunidades. Assim, os órgãos autárquicos definem e representam um interesse próprio, o interesse colectivo da comunidade autárquica, cuja realização lhes está atribuído: na verdade, a lei (Decreto-Lei n.º 100/84, de 29 de Março – artigo 2º, n.º1)) atribui às autarquias locais tudo o que 'diz respeito aos interesses próprios, comuns e específicos das respectivas populações'.
A lei faz uma enumeração exemplificativa de tais atribuições, importando aqui salientar os seguintes aspectos: cabe às autarquias locais a administração de bens próprios e sob a sua jurisdição, o desenvolvimento e a defesa e protecção do meio ambiente e da qualidade de vida do respectivo agregado populacional (alíneas a), b) e i), do n.º1 do artigo 2º da Lei n.º 100/84).
A proposta de referendo em causa, recaindo sobre a construção de uma alameda, em Portimão, com a criação de uma ampla zona verde e de lazer, o que implica a demolição do antigo mercado de verdura, tem de se considerar como abrangendo matéria da competência dos órgãos da autarquia local. No que respeita à Câmara Municipal, tem ela competência, no âmbito da planeamento do urbanismo e da construção, para elaborar o plano anual de actividades e o orçamento e proceder à sua execução, conceder licenças para construção e aprovar os respectivos projectos (alíneas a) e b) do n.º2 do artigo
51º do Decreto-Lei n.º 100/84). Quanto à Assembleia Municipal, compete-lhe pronunciar-se e deliberar sobre assuntos que visem a prossecução de interesses próprios da autarquia (alínea h), do n.º1 do artigo 39º do Decreto-Lei n.º
100/84). Assim, tem de se concluir que o objecto da consulta em questão é matéria da competência dos órgãos autárquicos de Portimão.
5. – Finalmente, importa apreciar o conteúdo da consulta e a formulação da pergunta aprovada e a submeter aos cidadãos eleitores.
5. 1 - De acordo com o preceituado no artigo 7º da Lei n.º 49/90, as perguntas devem ser formuladas 'em termos que permitam uma resposta inequívoca pela simples afirmativa ou negativa' (n.º1), e 'não podem ser formuladas em termos que sugiram explícita ou implicitamente uma resposta, quer de concordância quer de discordância, com a deliberação de um órgão que não seja aquele que determina a realização da consulta' (n.º2).
É, assim, uma exigência comum que o referendo recaia sobre uma única matéria e que a pergunta (ou perguntas) objecto do referendo local deve(m) ser formulada(s) com «objectividade, clareza e precisão, para respostas de sim ou não» (artigo 115º, n.º6, primeira parte, da Constituição).
A pergunta que se contém na proposta de referendo em apreciação tem o seguinte teor: Concorda com a construção de uma alameda na praça da República, entre a Rua Diogo Tomé e a Rua França Borges, com a criação de uma ampla zona verde e de lazer o que implica a demolição do antigo ‘mercado da verdura’?
Dos considerandos que integram a proposta apresentada pela Presidente da Câmara à Assembleia Municipal resulta que se pretende referendar um projecto de construção de uma alameda na zona nobre e comercial da cidade, constituída por espaços verdes e de lazer , com um estacionamento subterrâneo, projecto de construção este que acarreta a demolição do antigo
«mercado da verdura». Da mesma proposta consta que este edifício do mercado não voltará a ser utilizado, face à existência de um novo local para o efeito, sendo certo que tal edifício não está classificado nem tem valor arquitectónico, mas apenas 'algum valor rememorativo'.
A discussão da proposta de referendo, cuja transcrição integra a acta n.º 5/99, em que se aprovou a sua realização, não é muito esclarecedora da situação que levou à aprovação da pergunta para o referendo. Com efeito, apenas através de uma declaração de voto de um dos membros da Assembleia se tornou claro que, face a 'duas alternativas quanto à reabilitação da Praça da República, uma mantendo o edifício do antigo mercado e outra, propondo a sua demolição, a escolha seria apenas entre os dois modelos, não se constituindo o Mercado como figura determinante e impeditiva da futura decisão, como a pergunta deixa supor'. Tendo sido feita, durante a discussão, uma proposta de alteração do teor da pergunta (Concorda com a demolição do antigo
‘mercado da verdura’?), tal proposta foi reprovada, por maioria, com oito votos favoráveis e dezasseis votos contra.
5.2 – A formulação da pergunta a submeter aos eleitores do município de Portimão não deixa de suscitar algumas perplexidades.
Desde logo, trata-se de uma pergunta na qual se concentram três questões, o que, manifestamente, torna a pergunta complexa. Com efeito, começa-se por questionar a construção de uma alameda na Praça da República, para, de seguida, se referir a criação de uma ampla zona verde e de lazer, e finalmente se aludir à demolição do antigo 'mercado da verdura'.
A apreciação da constitucionalidade e legalidade da pergunta referendária pressupõe a interpretação da formulação consagrada na proposta. Esta interpretação não pode deixar de ter como parâmetro de aferição da compreensão das perguntas o cidadão eleitor médio, com um grau médio de conhecimento sobre as matérias a que deve responder.
E, nesta perspectiva, uma dúvida surge de imediato: é a construção da alameda que implica a demolição do 'antigo mercado da verdura', ou, antes, é a criação da zona verde e de lazer que implica tal consequência?
Esta dúvida, inteiramente pertinente, torna desde logo a pergunta pouco objectiva e pouco clara.
Tem, assim, de se concluir que a pergunta objecto do presente referendo não preenche as exigências de objectividade e clareza impostas pelo artigo 115º, n.º6, primeira parte, da Constituição. III – DECISÃO:
Pelo exposto, o Tribunal Constitucional decide: A. Considerar que a proposta de referendo local aprovada pela Assembleia Municipal de Portimão não respeita os requisitos de objectividade e clareza dos artigos 115º, n.º6, primeira parte, da Constituição e 7º, n.º1 da Lei n.º 49/90, de 24 de Agosto; B. Consequentemente, ter por não verificada a constitucionalidade e legalidade do referendo proposto na deliberação aprovada pela Assembleia Municipal de Portimão, de 28 de Maio de 1999. Lisboa, 23 de Junho de 1999 Vítor Nunes de Almeida Paulo Mota Pinto Alberto Tavares da Costa Bravo Serra Maria Helena Brito Artur Maurício Messias Bento Maria Fernanda Palma (vencida pelo essencial das razões constantes da declaração de voto do Excelentíssimo Senhor Conselheiro Luís Nunes de Almeida Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (vencida pelo essencial das razões constantes da declaração do Exmº Senhor Conselheiro Luís Nunes de Almeida) Luís Nunes de Almeida (vencido, conforme declaração junta) DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido, por entender que o teor da pergunta formulada não suscita a dúvida a que faz referência o acórdão que obteve vencimento – a saber,
«é a construção da alameda que implica a demolição do antigo 'mercado da verdura', ou, antes, é a criação da zona verde e de lazer que implica tal consequência?».
Na verdade, decorre com clareza, quer dos autos, quer da própria pergunta, que o que se pretende com a consulta referendária é apurar se os eleitores concordam com a execução de um projecto que inclui a construção de uma alameda e a criação de uma zona verde, com a consequente demolição do mercado. Isto é, o que implica a demolição do referido «antigo mercado da verdura» não é a construção da alameda, nem a criação da zona verde, consideradas de per si
–isto é, individualmente – mas antes a execução de um projecto global que integra ambas as obras.