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Proc. nº 1130/98 TC – 1ª Secção Relator: Consº. Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
Nos autos de expropriação urgente em que é expropriante a Câmara Municipal de Oeiras e expropriados S... e outros, foi por estes revogada a procuração forense outorgada a favor de M... (fls. 247/248), advogada, com os demais sinais dos autos.
Ordenado o cumprimento do disposto no art. 39º do CPC, insurgiu-se a ora recorrente – a citada advogada Dra. M... – nos termos da reclamação de fls. 261 e segs., que, no essencial, expressava a pretensão de manutenção do mandato forense.
O requerimento foi indeferido e dele interposto recurso, pela mesma Dra. M..., para o Tribunal da Relação de Lisboa.
Por acórdão de fls. 360 e segs., o Tribunal da Relação de Lisboa negou provimento ao recurso.
A recorrente interpôs recurso de tal decisão para o STJ.
Por acórdão de fls. 497 e segs. o STJ negou provimento ao recurso.
É deste acórdão que vem interposto o presente recurso para o Tribunal Constitucional.
No requerimento de interposição de recurso, para este Tribunal, ao abrigo das alíneas b) e c) do nº. 1 do artigo 70º da Lei nº. 28/82, a recorrente disse pretender que o Tribunal apreciasse a 'ilegalidade/inconstitucionalidade das normas do artigo 1170º nº. 1 do C.C., do artigo 39º do CPC, bem como a recusa de aplicação do artigo 334º do C. Civil'.
Apontou como 'violados os artigos 13º e 18º da Lei Fundamental'.
A final referiu que 'a explicitação do sentido ilegal e inconstitucional atribuído pelo acórdão recorrido será feito nas alegações, pois este requerimento é meramente indicativo'.
Admitido o recurso no tribunal 'a quo' e remetidos os autos a este Tribunal, determinou o relator a produção de alegações nas quais a recorrente formulou as seguintes conclusões:
'8. Nos termos e pelos fundamentos expostos, o agravante conclui que deve: a – Julgar-se inconstitucional o normativo do artigo 1170º/1/ do CC e do art.
39º do CPC, na interpretação que lhes foi dada pelo Acórdão recorrido, ou seja, de que cabe à parte processual, mesmo com abuso de direito, arbitrária e desrazoavelmente, revogar a procuração forense, por violação dos arts. 13º, 18º,
20/1/ e 208º da Lei Fundamental e do art. 334º do Cód. Civil; b – Julgar-se inconstitucional a recusa de aplicação da norma do art. 334º do CC, por violação dessa lei de valor reforçado (art. 112º/3/ da CRP), dotada de dignidade jurídico-constitucional e ética; c – Consequentemente, conceder-se provimento ao recurso e revogar o Acórdão recorrido, que deve ser reformado, de acordo com o que for decidido sobre a questão de constitucionalidade, de forma a construir-se uma Advocacia digna, livre e independente.'
Juntas as alegações dos recorridos, o relator exarou a fls. 529 e segs o seguinte despacho:
'No requerimento de interposição de recurso disse a recorrente:
'A explicitação do sentido ilegal e inconstitucional atribuído pelo acórdão recorrido será feita nas alegações, pois este requerimento é meramente indicativo'.
Ora, tendo em conta as alegações apresentadas e, mais precisamente as conclusões onde a recorrente sintetiza os fundamentos da sua impugnação sou levado a concluir, dentro das soluções plausíveis, que se não deve tomar conhecimento do objecto do recurso, pela seguinte ordem de razões:
A recorrente invoca a violação de 'lei com valor reforçado', - o Código Civil – por 'recusa de aplicação de norma do artigo 334º do Código Civil':
E daí que o recurso venha interposto simultaneamente ao abrigo das alíneas b) e c) do nº. 1 do artigo 70º da LTC.
Sucede, porém, que no acórdão recorrido não se vislumbra qualquer recusa de aplicação do artigo 334º do Código Civil, mas tão-só a decisão de que a situação em causa – revogação do mandato forense – não integra o previsto naquele preceito.
Recusar a aplicação de uma norma, no sentido do artigo 70º nº. 1 al. c) da LTC,
é afastar a sua aplicação por razões que se situam à margem da operação subsuntiva dos factos a essa norma.
Por outro lado, 'violação da lei com valor reforçado' é o fundamento da recusa de aplicação de outra norma que não pode contrariar o disposto naquela lei, o que não é o caso.
Não parece, assim, poder conhecer-se da invocada questão ao abrigo da alínea c) do nº. 1 do art. 70º da LTC.
Invoca depois a recorrente a inconstitucionalidade da norma do artigo 1170º nº.
1 do Código Civil 'na interpretação que lhes foi dada pelo acórdão recorrido, ou seja de que cabe à parte processual, mesmo com abuso de direito, arbitrária e desrazoavelmente, revogar a procuração forense (...)'
Ora o que a recorrente alega não tem a mínima correspondência com o acórdão recorrido, bastando para o demonstrar o que se lê neste acórdão a fls. 499 (dois
últimos parágrafos), onde afastando-se a existência de abuso de direito, se não faz qualquer interpretação da norma do citado artigo 1170º nº. 1 do C.C. no sentido da licitude da revogação do mandato forense com abuso de direito,
'arbitrária e desrazoavelmente'.
Não se faz, nenhuma aplicação da norma, na interpretação que, segundo a recorrente, a tornaria inconstitucional.
Falecem, pois, os pressupostos de admissibilidade do recurso constantes do artigo 70º nº. 1 alíneas b) e c) da LTC.
Convido, assim, a recorrente, em cumprimento do princípio do contraditório, a pronunciar-se, querendo, sobre a questão agora suscitada.'
A recorrente pronunciou-se nos termos da peça junta a fls. 533 e segs., sustentando, no essencial, que:
transitado em julgado o despacho que ordenou alegações, tomar conhecimento do
objecto do recurso é a única solução admissível;
o despacho de fls. 529 e segs. é uma 'decisão surpresa' inoportuna e ilegal;
a 1ª e 2ª instâncias (em especial esta) acolheram a tese da livre
revogabilidade do mandato, mesmo sendo ela abusiva, assim se recusando a
aplicação do artigo 334º do Código Civil.
Cumpre decidir.
2 – Antes do mais, importa corrigir o lapso manifesto da recorrente quando qualifica o despacho de fls. 529 e segs. como 'decisão-surpresa'.
Ele não tem carácter decisório e destina-se, precisamente, a evitar decisões-surpresa, no estrito cumprimento do disposto no artigo 3º nº. 3 do Código de Processo Civil.
Com efeito, o despacho, como nele se não deixou de assinalar, justificou-se pela circunstância de as alegações da recorrente e, em particular, as respectivas conclusões, terem vindo a definir, com melhor e mais preciso contorno, as questões de constitucionalidade que a recorrente pretendia ver apreciadas pelo Tribunal.
E dessa melhor definição resultava como plausível uma decisão, a proferir pelo colégio de juízes que compõem a Secção, de não tomada de conhecimento do objecto do recurso, por se não mostrarem preenchidos os pressupostos do recurso ao abrigo das alíneas b) e c) do nº. 1 do artigo 70º da Lei nº. 28/82.
Em tal conformidade, facultou o relator à recorrente pronúncia sobre aquela
(plausível) decisão, de modo a evitar que ela viesse a ser, aqui sim, surpreendida por um julgado de não conhecimento do objecto do recurso, questão que nunca e até então fora suscitada.
Nenhum comando legal obstava a este procedimento – antes ele se impunha face ao citado art. 3º nº. 3 do CPC – sendo certo que o facto de se haver determinado a produção de alegações não preclude a possibilidade de um julgamento pela Secção no sentido que se anteviu como plausível.
Na verdade se, nos termos do artigo 78º-A da Lei nº. 28/82, compete ao relator, num exame liminar do recurso e verificada a falta de pressupostos de admissibilidade do recurso, proferir decisão sumária no sentido de não admissão de recurso, nada obsta a que, na ausência desta decisão e apresentadas alegações, a Secção conclua que o que, numa apreciação liminar, não surgia como evidência bastante para justificar a decisão sumária, se reconhece afinal com suficiente consistência para fundamentar a decisão, agora colegial, de não tomar conhecimento do objecto do recurso.
É, aliás, o que sucede no caso presente pelas razões expressas no despacho de fls. 529 e segs., como se passa a demonstrar.
Antes ainda, assinala-se que, nas conclusões das alegações, a recorrente omite qualquer referência à norma do artigo 39º do CPC – invocada no requerimento de interposição do recurso como norma cuja constitucionalidade se pretendia ver apreciada pelo Tribunal – assim restringindo o objecto do recurso às normas dos artigos 1170º nº. 1 do Código Civil e à 'recusa de aplicação' do artigo 334º do mesmo Código.
Ora, em primeiro lugar, fica patente que, impondo o recurso previsto no artigo
70º nº. 1 alínea c) da Lei nº. 28/82, a recusa de aplicação de uma norma com fundamento na sua ilegalidade por violação de lei com valor reforçado, tal não ocorreu no acórdão recorrido.
Na verdade, nele se não vê que o tribunal 'a quo' tenha afastado a aplicação da norma do artigo 334º do Código Civil por entender que ela infringia o disposto em qualquer lei com valor reforçado.
Sucedeu foi que, como se verá, se entendeu – e, desde logo, decisivamente – que se não verificara qualquer situação de abuso de direito.
Não pode assim conhecer-se do recurso interposto ao abrigo do artigo 70º nº. 1 alínea c) da Lei nº. 28/82 por alegada recusa de aplicação do artigo 334º do Código Civil.
Vejamos agora o que se passa com a aplicação da norma do artigo 1170º nº. 1 do Código Civil que, segundo a recorrente, teria sido interpretada no sentido de que 'cabe à parte processual, mesmo com abuso de direito, arbitrária e desrazoavelmente, revogar a procuração forense (...)'
Alegara a recorrente no recurso para o STJ a inadmissibilidade da revogação do mandato por este lhe ter sido conferido também no interesse do mandatário.
Esta alegação, que o acórdão recorrido julgou improcedente, nada tem a ver com uma suposta ilegalidade da mesma revogação por abuso de direito.
Ora, quanto a esta, o julgado do STJ resultou no seguinte:
'Alegam, ainda, que a revogação do mandato constitui abuso do direito. Mas não indicam as razões justificativas da sua discordância com o acórdão da Relação, pelo que não vemos necessidade de voltar a apreciar a questão, até porque está bem decidida. E não se diga que pelo facto de os recorrentes, após a revogação do mandato, terem continuada a alegar e contra-alegar que há abuso de direito. São situações que não permitem concluir que haja abuso do expropriado ao revogar-lhes o mandato, sendo certo que quem actuou erradamente foram os recorrentes ao praticar actos no processo quando já havia outros advogados constituídos nos autos e o mandato se encontrava revogado.' (sublinhado nosso)
Ou seja, a improcedência da alegação teve, desde logo, como fundamento decisivo, o facto de a recorrente não ter oposto razões de discordância relativamente ao decidido pela Relação.
É certo que, para além disso, o STJ diz que a questão 'está bem decidida (pela Relação)', podendo aí supor-se o acolhimento da tese sustentada no acórdão então impugnado, o que nos remeteria para o julgado em 2ª instância.
Não abdicando do entendimento de que essa seria uma razão excedentária, não deixará, no entanto, de se analisar o que a propósito se julgou no acórdão da Relação de Lisboa e que – adianta-se – não dá apoio à tese da recorrente.
Por outro lado, no mesmo acórdão recorrido se decide – agora reportado a momento posterior à revogação do mandato – que não há abuso de direito, imputando-se à recorrente uma actuação errada continuando a advogar no processo quando já havia outros advogados constituídos.
Centrando agora a atenção no acórdão da Relação, também dele resulta claramente, que a primeira e decisiva razão invocada para a improcedência da suposta ilegalidade da revogação do mandato com abuso de direito foi a de se entender que a conduta do mandante não era susceptível de se caracterizar como abusiva.
Ali se diz:
'Mas, referem os recorrentes que existe abuso de direito nessa revogação. Não perfilhamos tal posição; com efeito, não se vê que tal figura jurídica, como é definida no artigo 334º do Cód. Civil, esteja caracterizada na conduta de Satúrio Novo.' (sublinhado nosso)
Não se nega que, seguidamente, no mesmo acórdão se defende que a revogação é livre não a obstaculizando o abuso do mandante.
De todo o modo, esta afirmação surge no acórdão recorrido como razão suplementar
– embora só por si também decisiva – da improcedência da alegação que – repete-se – desde logo soçobra por se não dar por verificada uma conduta abusiva.
Daí que não possa concluir-se que a norma do artigo 1170º nº. 1 do Código Civil, na interpretação que a recorrente imputa ao acórdão recorrido, tenha sido aplicada como 'ratio decidendi' no mesmo aresto, o que vale por dizer que se não verifica um dos requisitos do recurso previsto no artigo 70º nº. 1 alínea b) da Lei nº. 28/82.
3 – Decisão
Pelo exposto e em conclusão, decide-se não tomar conhecimento do objecto do recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6 Ucs.
Lisboa, 29 de Junho de 1999 Artur Maurício Vítor Nunes de Almeida Maria Helena Brito Luís Nunes de Almeida