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Processo n.º 536/02
3ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A e mulher, impugnaram judicialmente a liquidação de IRS, referente ao ano de 1997, pedindo a respectiva anulação com fundamento em ilegalidade. Para o efeito, alegaram, em síntese, não ter sido considerado por parte da Administração Fiscal que um dos impugnantes padece de incapacidade em grau igual ou superior a 60%, conforme documento emitido pela Autoridade de Saúde competente, o que lhe confere direito a determinados benefícios fiscais consagrados na lei.
Por sentença do Tribunal Tributário de Viana do Castelo de 25 de Setembro de 2000, de fls. 45 e seguintes, a impugnação foi julgada integralmente improcedente. Como se pode ler na sentença, 'A questão a decidir é apenas uma: saber se o grau de invalidez de que o impugnante se declarou portador para efeitos de aceder aos benefícios previstos no Código do IRS (CIRS) e no Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF), se encontra ou não ‘devidamente comprovado pela entidade competente’ mediante a apresentação do atestado médico que se encontra junto aos autos.(...).
Está em causa IRS respeitante ao ano de 1997. Nessa altura, já se encontrava em vigor o DL 202/96 de 23 de Outubro (cfr. art.7º desse diploma).
Este diploma legal veio estabelecer, como se refere no seu art.1º,
‘o regime de avaliação de incapacidade de pessoas com deficiência, tal como definido no art.2º da Lei nº 9/89, de 2 de Maio, para efeitos de acesso às medidas e benefícios previstos na lei para facilitar a sua plena participação na comunidade’.
Em anexo a tal Decreto-Lei, estabelecem-se as ‘Instruções gerais’ para avaliação de incapacidades em deficientes civis, só relevando agora a disfunção residual, devendo, na determinação final da incapacidade, nomeadamente e sempre que a disfunção possa ser atenuada, no todo ou em parte, pela aplicação de meios de correcção ou compensação, o coeficiente de capacidade arbitrado corresponder à disfunção residual após aplicação de tais meios, sem limites máximos de redução dos coeficientes previstos na tabela.
Este modus operandi da determinação dos coeficientes de incapacidade, legalmente fixado, vale igualmente no que ao acesso a benefícios fiscais concerne. Assim a partir da entrada em vigor daquela lei, tal acesso, por parte de quem alegue ser portador de deficiência em grau igual ou superior a 60%, passou a estar dependente de comprovação nos termos que decorrem dessa mesma lei. Só mediante uma avaliação processada nos termos ali fixados é que a incapacidade se tem por devidamente comprovada para efeitos fiscais.' Ora, como os impugnantes não apresentaram 'um atestado médico emitido de acordo com os critérios definidos naquela lei', aplicável nos termos do disposto no nº
7 do artigo 14º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, uma vez que já estava em vigor na data relevante – o 'último dia do ano a que o imposto respeite' – faltava 'um dos pressupostos de que a lei fiscal faz depender o acesso aos benefícios que consagra – a devida comprovação do grau de invalidez'.
Inconformados, os impugnantes recorreram para o Tribunal Central Administrativo, tribunal que, por acórdão de 19 de Março de 2002, de fls. 79 e seguintes, negou provimento recurso, considerando também aplicável o novo regime de avaliação da deficiência, em vigor no momento relevante: o do último dia do ano a que respeita o imposto. Concluiu, portanto, tal como a 1ª instância, que
'não tendo o contribuinte provado a sua incapacidade segundo a nova lei, deveria a impugnação ter sido julgada improcedente'.
Para o que agora releva, o Tribunal Central Administrativo desatendeu a alegação de inconstitucionalidade suscitada pelos recorrentes, nos seguintes termos: 'Nem se diga que ocorre violação do disposto nos arts.106º, nº
2, 168º, nºs 1, al. i) e 2 da CRP (na redacção ao tempo):
Com efeito, não se questionando que vigora, nesta matéria, o princípio da reserva (relativa) de lei formal (arts.106º, nº 2 e 168º, al. i) da CRP (versão de 1992, aqui aplicável), no caso vertente existiu, lei de habilitação da AR ao Governo (...)'.
2. Novamente inconformados, os impugnantes vieram recorrer para o Tribunal Constitucional, 'ao abrigo do disposto, entre o mais, nos artº 71º, n.º
1, 72º (maxime no seu n.º 2), artº 70º, b), artº 75º, artº 75º-A (maxime nos seus n.º 1 e 2), artº 76º, artº 78º e artº 80º, todos da Lei n.º 28/82, de
15/11'. As normas cuja inconstitucionalidades os recorrentes invocam 'são todas as constantes do DL n.º 202/96, de 23 de Outubro (artºs 1º a 7º, mas, fundamentalmente, artigos 1º e 4º), incluindo, naturalmente os respectivos Anexos I e II, bem como as alterações introduzidas pelo DL n.º 174/97, de 19 de Julho (todos os seus artigos: 1 a 3), quando interpretadas, como o foram, com o sentido aplicado nos autos, ou seja, de regular matéria relativa ao sistema fiscal (benefícios fiscais) e, assim, de reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, por falta de autorização desta, como se vê de tais diplomas (o Governo legislou, como se pode ver da parte final do preâmbulo desses diplomas, apenas com base na alínea a) do n.º 1 do artigo 201º da Constituição que vigorava), em violação, pois, das disposições conjuntas dos artigos 18º, 71º, 106º e 168º, n.º 1, alínea i), da Constituição então vigente
(Lei Constitucional n.º 1/92, de 25 de Novembro), a que correspondem os artigos
18º, 71º, 103 e 165º, n.º 1, al. i), da actual Constituição da República Portuguesa (Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro)'.
3. Notificadas para o efeito, as partes apresentaram as suas alegações. Os recorrentes formularam as seguintes conclusões:
'1ª - Ao caso dos autos foi aplicado o DL n.º 202/96, de 23 de Setembro e, assim, os seus artºs 1º a 7º (maxime, 1º e 4º) e respectivos Anexos, com as correspondentes alterações introduzidas pelo DL n.º 174/97, de 19 de Julho
(artºs 1º e 3º), aí (nessas decisões ora em recurso) se julgando que as ditas normas estabelecem o regime (incluindo os critérios de determinação do coeficiente de incapacidade de avaliação da deficiência, para efeitos de benefícios fiscais legalmente previstos, no caso concreto da recorrente, indicado nos presentes autos, exigindo a prova da deficiência nos termos previstos em tais normas;
2ª - Como resulta dos pertinentes diplomas legais (cfr. artº 44º, n.ºs 1 e 5, do Estatuto dos Benefícios Fiscais, aprovado, com a necessária autorização legislativa, pelo DL n.º 215/89, de 1 de Julho, cfr. a lei de autorização para o Governo legislar quanto aos impostos sobre o rendimento – Lei n.º 106/88, de 17 de Setembro – e cfr. artigos 25º e 80º do C.I.R.S.), deficiente, para os fins aí previstos, é o portador de um grau de invalidez permanente igual ou superior a
60%;
3ª - Segundo o citado artº 106º, sob a epígrafe ‘sistema fiscal’, no seu n.º 2
(hoje artº 103º, n.º 2, da CRP) ‘Os impostos são criados por lei que determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais ...’;
4ª - Por seu turno, o citado artº 168º, n.º 1, alínea i) – a que, hoje, corresponde o artº 165º, n.º 1, alínea i), da dita CRP – dispõe: ‘É da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização ao Governo: ... i) Criação de impostos e sistema fiscal’;
5ª - O Governo, ao legislar sobre tais matéria, como efectivamente legislou, através das questionadas normas (onde veio, inclusive, definir, pela forma nelas prevista, a qualidade/natureza de beneficiário, para os indicados efeitos – sistema fiscal –, atenta a alteração ou definição daquilo que constitui uma situação de invalidez permanente de grau igual ou superior a 60%), sem a devida autorização da Assembleia da República, extravasou as suas competências e daí que as apontadas normas sejam formalmente inconstitucionais;
6ª - Essas normas legais sobre que se suscita tal inconstitucionalidade são todas as constantes do DL n.º 202/96, de 23 de Outubro (artºs 1º a 7º, mas, fundamentalmente, artºs 1º e 4º), incluindo, naturalmente, os respectivos Anexos I e II, bem como as correspondentes alterações introduzidas pelo DL n.º 174/97, de 19 de Julho (os seus artºs 1º e 3º), quando interpretadas, como o foram, com o sentido aplicado nos autos, ou seja de regularem matéria relativa ao sistema fiscal (benefícios fiscais) e, assim, de reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, por falta de autorização desta, como se vê de tais diplomas (o Governo legislou, como se pode ver da parte final do preâmbulo desses diplomas, apenas com base na alínea a) do n.º 1 do artigo 201º da Constituição que vigorava), em violação, pois, das disposições conjuntas dos artigos 18º, 71º, 106º e 168º, n.º 1, alínea i), da Constituição então vigente
(Lei Constitucional n.º 1/92, de 25 de Novembro), a que correspondem os artigos
18º, 71º, 103 e 165º, n.º 1, alínea i), da actual Constituição da República Portuguesa (Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro).'
A Fazenda Pública não apresentou alegações.
4. Admitindo a hipótese de não conhecimento parcial do objecto do recurso, a relatora fez notificar às partes o parecer de fls. 108, que se transcreve:
«1. No requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional e nas alegações posteriormente apresentadas, os recorrentes, A e mulher, definem o objecto do mesmo como sendo 'todas as [normas] constantes do DL n.º 202/96, de 23 de Outubro (artºs 1º a 7º, mas, fundamentalmente, artºs 1º e 4º), incluindo naturalmente os respectivos Anexos I e II, bem como as alterações introduzidas pelo DL n.º 174/97, de 19 de Julho (todos os seus artºs:
1º a 3º)'. Parece, assim, que os próprios recorrentes, ao evidenciarem as normas dos artigos 1º e 4º do Decreto-Lei nº 202/96, estão a reconhecer que nem todas as disposições dos diplomas legais citados apresentam igual relevância para a solução do caso dos autos.
2. Com efeito, coloca-se a hipótese de apenas terem sido efectivamente aplicadas pelo acórdão recorrido as normas dos artigos 1º, 4º e 7º do Decreto-Lei n.º 202/96, com as alterações introduzidas pelos artigos 1º e 3º do Decreto-Lei n.º 174/97. Só dessas normas, que determinam o âmbito de aplicação do regime de avaliação de incapacidade dos deficientes e o processo de fixação dos coeficientes de incapacidade, se retira a conclusão de que o regime nelas contido se aplica no que toca ao acesso aos benefícios fiscais. As demais normas dos diplomas mencionados, sobre competências e composição das juntas médicas (artigo 2º do Decreto-Lei n.º 202/96), sobre o procedimento de avaliação de incapacidade (artigo 3º do mesmo diploma), sobre os recursos administrativos que cabem da avaliação (artigo 5º) e sobre a comissão de normalização (artigo
6º), parece serem irrelevantes para o presente recurso, não merecendo sequer qualquer referência por parte do acórdão recorrido. Com efeito, a sua aplicação ao caso dos autos pressuporia que os recorrentes tivessem seguido o procedimento de avaliação de incapacidade previsto no Decreto-Lei n.º 202/96, o que justamente não sucedeu.
3. Ora, não tendo sido aplicadas pelo Tribunal Central Administrativo, nem as normas constantes dos artigos 2º, 3º, 5º e 6º do Decreto-Lei n.º 202/96, nem as normas constantes do artigo 2º do Decreto-Lei nº
174/97, como ratio decidendi pelo acórdão recorrido, admite-se que o Tribunal Constitucional não possa conhecer, nessa parte, do presente recurso, como resulta da lei (artigo 79º-C da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro ) e o Tribunal tem repetidamente afirmado (cfr., a título de exemplo, os Acórdãos n.ºs 311/94,
187/95 e 366/96, Diário da República, II Série, respectivamente de 1 de Agosto de 1994, 22 de Junho de 1995 e de 10 de Maio de 1996). Nestes termos, convidam-se as partes para se pronunciarem, querendo, sobre o presente parecer, nos termos do disposto nos artigos 69º da Lei nº 28/82 e do nº
1 do artigo 704º do Código de Processo Civil. »
Nenhum das partes se pronunciou sobre este parecer.
5. Cumpre começar por fixar o objecto do presente recurso, que se considera, pela razão apontada no parecer acima transcrito, reduzido às normas constantes dos artigos 1º, 4º e 7º do Decreto-Lei n.º 202/96, de 23 de Outubro, com as alterações introduzidas, no que concerne ao citado artigo 4º, pelo Decreto-Lei n.º 174/97, de 19 de Julho: Artigo 1º
Âmbito O presente diploma estabelece o regime de avaliação de incapacidade dos deficientes, tal como definidos no artigo 2º da Lei n.º 9/89, de 2 de Maio, para efeitos de acesso às medidas e benefícios previstos na lei para facilitar a sua plena participação na comunidade.
Artigo 4º Avaliação de incapacidade
1 – A avaliação de incapacidade é calculada de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 341/93, de 30 de Setembro, observando-se as instruções gerais constantes do anexo I a este diploma, bem como, em tudo o que não contrarie, as instruções específicas anexas àquela Tabela.
2 – Findo o exame, o presidente da junta médica passará o respectivo atestado médico de incapacidade, o qual obedecerá ao modelo constante do Anexo II a este diploma.
3 – Quando o grau de incapacidade arbitrado for susceptível de variação futura, a junta deve indicar a data do novo exame, levando em consideração o previsto na Tabela Nacional de Incapacidades ou na fundamentação clínica que lhe tenha sido presente.
4 – Sempre que a lei faça depender a atribuição de benefícios de determinados requisitos específicos, o atestado de incapacidade deve indicar o fim a que se destina e respectivos efeitos e condições legais, bem como a natureza das deficiências e os condicionalismos relevantes para a concessão do benefício.
5 – Sempre que a junta médica entender ser necessário esclarecimento adicional no âmbito de especialidade médico-cirúrgica, deverá o presidente solicitar exames complementares, técnicos ou de especialidade, cujo relatório deve ser apresentado no prazo de 30 dias.
6 – Os atestados de incapacidade podem ser utilizados para todos os fins legalmente previstos, adquirindo uma função multiuso, devendo todas as entidades públicas ou privadas, perante quem sejam exibidos, devolvê-los aos interessados ou seus representantes após anotação de conformidade com o original, aposta em fotocópia simples.
Artigo 7º Entrada em vigor
1 – O presente diploma entra em vigor no último dia do mês seguinte ao da sua publicação.
2 – O presente diploma aplica-se, com as devidas adaptações, aos processos em curso.
Com efeito, o acórdão recorrido aplicou, expressa ou implicitamente, estas normas, entendendo que, para a comprovação da deficiência em causa 'no que tange ao IRS de 1997, o contribuinte deveria apresentar certificado médico emitido à luz do novo critério do Decreto-Lei n.º 202/96', não podendo
'prevalecer-se da perícia certificada anteriormente a 10 de Novembro de 1996 sob o critério do Decreto-Lei n.º 341/93, de 30 de Setembro'.
Trata-se, pois, de saber se, como sustentam os recorrentes, o Governo, ao aprovar as normas impugnadas por decreto-lei não precedido de autorização legislativa infringiu ou não o disposto nos artigos 18º, 71º, 106º e
168º, n.º 1, alínea i), da Constituição, na versão em vigor à data dos factos [e a que correspondem hoje os artigos 18º, 71º, 103º e 165º, n.º 1, alínea i)]. Note-se que os recorrentes, não obstante indicarem como violados também os artigos 18º e 71º da Constituição, apenas colocam ao Tribunal Constitucional uma questão de inconstitucionalidade orgânica.
6. Para fundamentar a inconstitucionalidade que apontam os recorrentes seguem duas vias distintas.
A primeira das vias apontadas consiste em sustentar que, ao definir o conceito de deficiente para efeitos fiscais em diplomas autorizados pela Assembleia da República, isto é, no Código do IRS e no Estatuto dos Benefícios Fiscais, o legislador 'teve em mente o vasto número de situações (como, por exemplo, determinada amputação de um membro inferior) previstas na Tabela e normas que vigoravam (...), onde a incapacidade era daquela dimensão; conhecedor dos critérios reinantes para a aferição do coeficiente das incapacidades, definiu, para os fins previstos nesses diplomas, o conceito de deficiente – o portador de um grau de invalidez permanente igual ou superior a 60%'. Ora, uma vez que as normas, nas redacções em vigor à data dos factos, dos artigos 44º do Estatuto dos Benefícios Fiscais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º
215/89, de 1 de Julho, e 25º e 80º do CIRS, aprovado pelo Decreto-Lei n.º
442-/88, de 30 de Dezembro, fazem depender certos efeitos da verificação de 'um grau de invalidez permanente, devidamente comprovado pela entidade competente, igual ou superior a 60%', e que esta definição de deficiente 'terá tido, naturalmente, em atenção o que, no sistema jurídico vigente, se traduzia num grau de invalidez permanente igual ou superior a 60%', isso significa que os elementos do sistema jurídico que estiveram na base de tal definição foram incorporados nela (ou 'importados' para ela, na terminologia dos recorrentes). Decorreria daqui que as 'Tabela e normas que vigoravam' à data em que foram aprovadas as normas do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares e do Estatuto dos Benefícios Fiscais, isto é, a Tabela Nacional de Incapacidades aprovada pelo Decreto n.º 43.189, de 23 de Setembro de 1960, e com base nas quais se terá procedido à definição do conceito de deficiente constante destas últimas, só poderiam ser alteradas por diploma da Assembleia da República ou por ela autorizado. Ora, dado que as normas impugnadas conduzem à não aceitação, como meio de prova da incapacidade, do atestado médico apresentado pelos recorrentes, baseado na referida Tabela Nacional de Incapacidades, e que as mesmas não foram emitidas ao abrigo de autorização legislativa, segue-se que as mesmas seriam organicamente inconstitucionais por violação do disposto nos artigos 106º e 168º, n.º 1, alínea i), da Constituição, na versão aplicável.
A segunda via percorrida pelos recorrentes para sustentar a inconstitucionalidade orgânica das normas impugnadas consiste simplesmente em afirmar que a definição dos critérios com base nos quais se apura um determinado grau de invalidez integra a reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República. Se assim se não entendesse, pretendem os recorrentes, bastaria que o Governo, sem autorização, estabelecesse critérios diferentes daqueles que estiveram subjacentes à definição do conceito de deficiente como aquele que é portador de um grau de invalidez permanente igual ou superior a
60%, para contrariar os comandos da Assembleia da República.
7. A verdade é que em qualquer das duas vias argumentativas se tem como adquirido aquilo que justamente haveria que demonstrar, ou seja, que a definição de deficiente acolhida no Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares e no Estatuto dos Benefícios Fiscais como 'aquele que apresente um grau de invalidez permanente, devidamente comprovado pela entidade competente, igual ou superior a 60%', se apresenta como indissociável dos critérios e procedimentos que permitem concluir pela verificação do grau de invalidez em causa. Seria esta indissociabilidade que tornaria extensível às instruções gerais e específicas, contidas na Tabela Nacional de Incapacidades, de acordo com as quais se determina o valor da incapacidade, expresso em percentagem, a reserva de competência legislativa sobre tais matérias à Assembleia da República. O argumento não procede, no entanto, por várias razões.
Em primeiro lugar, a afirmação dos recorrentes, aliás indemonstrada, segundo a qual a definição de deficiente, para efeitos fiscais, como todo aquele que apresente um grau de invalidez permanente igual ou superior a 60% teve em atenção o que no sistema jurídico vigente se traduzia num grau de invalidez permanente com essa percentagem, não permite concluir que a alteração do sistema jurídico vigente quanto a este aspecto implique, só por si, uma alteração daquela definição. Essa conclusão não seria sequer logicamente necessária ainda que se adoptasse na interpretação das normas onde se contém aquela definição (à data dos factos, os artigos 44º do Estatuto dos Benefícios Fiscais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 215/89, de 1 de Julho, e 25º e 80º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, aprovado pelo Decreto-Lei n.º
442-/88, de 30 de Dezembro) uma orientação subjectivista e historicista, dificilmente defensável. Ora, a argumentação dos recorrentes quanto à inconstitucionalidade orgânica só poderia, eventualmente, proceder, caso se demonstrasse que estas implicam uma alteração da definição de deficiente para efeitos fiscais, o que justamente não sucede.
As regras relativas à avaliação da incapacidade, objecto das normas impugnadas, respeitam a uma matéria completamente distinta dos benefícios fiscais a que se referem os artigos 27º da Lei n.º 106/88, de 17 de Dezembro,
25º e 80º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares
(aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442-/88, de 30 de Dezembro, e autorizados pela referida Lei nº 106/88) ou 44º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 215/89, de 1 de Julho, emitido ao abrigo da Lei nº 8/89, de 22 de Abril. Enquanto estas normas contêm conceitos necessariamente genéricos tendo em vista, designadamente, a sua aplicação num horizonte temporal longo, as normas impugnadas, bem como as instruções contidas na Tabela Nacional de Incapacidades, têm um carácter eminentemente técnico, o que determina, desde logo, que a sua alteração não dependa essencialmente de decisões valorativas do legislador, mas de considerações provindas de ciências alheias ao direito. O que poderia suceder, no limite, é que essas considerações aconselhassem uma alteração da definição legal de deficiente para efeitos de atribuição de benefícios fiscais e, nesse caso, mas só nesse caso, seria necessária uma intervenção legislativa da Assembleia da República, a coberto do disposto nos actuais artigos 103º, n.º 2, e 165º, n.º 1, alínea i), da Constituição.
8. Em segundo lugar, na sequência do acaba de ser dito e de modo ainda mais decisivo, a argumentação dos recorrentes quanto à inconstitucionalidade orgânica das normas impugnadas esquece o objecto próprio das mesmas. Estas, como se sabe, versam sobre o regime de avaliação de incapacidade das pessoas com deficiência, alterando, no seu âmbito de aplicação, as instruções gerais constantes da Tabela Nacional de Incapacidades, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 341/93, de 30 de Setembro. Tais normas revestem um indubitável carácter técnico, como resulta da simples leitura das instruções gerais constantes do Anexo I ao diploma onde se contêm. A questão de constitucionalidade objecto dos presentes autos é, aliás, semelhante a outras que já foram apreciadas por este Tribunal.
Assim, a propósito da alegada inconstitucionalidade orgânica do diploma que prevê o regime jurídico fiscal das reintegrações e amortizações de bens do activo imobilizado corpóreo, afirmou-se, no Acórdão n.º 236/2001 (Diário da República, II Série, de 18 de Julho de 2001) o seguinte:
'(...) O princípio da legalidade em matéria fiscal não impede que determinados aspectos do regime estritamente técnicos sejam objecto de regulamento (ou de decreto-lei), nomeadamente por remissão expressa da lei parlamentar (ou de decreto-lei autorizado). Na verdade, as questões especificamente contabilísticas, relacionadas com o cálculo e a determinação das despesas e do lucro da empresa, apresentam uma complexidade técnica dificilmente compatível com o grau de clareza que a lei fiscal, para exercer eficazmente a sua função de garantia, deve revestir, para além de que não compete ao direito fiscal regular todos os aspectos contabilísticos das sociedades comerciais (cf., neste sentido, CARLOS PAMPLONA CORTE-REAL, Curso de Direito Fiscal, vol. I, 1982, p. 74 e ss.; SALDANHA SANCHES, Manual de Direito Fiscal, 1998, p. 32 e ss.; e, ainda, JOSÉ MANUEL CARDOSO DA COSTA, Curso de Direito Fiscal, 1972, pp. 63, nota 2, 175, nota 2 e 176, onde o Autor, a propósito do regime das isenções, admite ser
'perfeitamente lícito deixar depois à administração a possibilidade de, mediante regulamento ou mesmo simples acto administrativo individual, concretizar ou conceder ou não aqueles e fixar a quota tributária dentro dos limites legais'; quanto à relevância das 'leis comerciais' nas 'questões tributárias', cf. SALDANHA SANCHES, A qualificação da obrigação tributária, 1995, p. 305 e ss.; cf., por último, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º. 756/95 – D.R., II, de
27 de Março de 1996 -, onde o Tribunal considerou constitucionalmente legítima a utilização de conceitos indeterminados em matéria fiscal). Assim, é constitucionalmente admissível que a lei fiscal remeta para diplomas regulamentares a definição de determinados aspectos técnicos de regime que exprimem apenas um saber no qual o Direito se apoia e que não exige qualquer decisão valorativa. É o que acontece quando o artigo 29º, n.º. 1, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (norma que, de resto, não integra o objecto do presente recurso de constitucionalidade), remete para decreto regulamentar (...) a definição do regime das reintegrações e amortizações'.
Ora, estas mesmas considerações (já aceites, por exemplo, no Acórdão n.º 451/01, publicado no Diário da República, II Série, de 30 de Novembro de
2001), têm inteira aplicação no caso dos autos. Também aqui está em causa 'a definição de determinados aspectos técnicos de regime que exprimem apenas um saber no qual o Direito se apoia e que não exige qualquer decisão valorativa'. Isto mesmo se reconhece na sentença do Tribunal Tributário de Viana do Castelo, confirmada pelo acórdão recorrido, quando nela se afirma que, caso se aceitasse a tese dos recorrentes, 'tudo se passaria como se a ciência médica não sofresse avanços, como se aquilo para que hoje não se conhece possibilidade de cura assim viesse a continuar para todo o sempre'. Não procede assim a invocada inconstitucionalidade orgânica das normas impugnadas. Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida no que toca à questão da constitucionalidade. Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 15 ucs., em conjunto. Lisboa, 28 de Março de 2003 Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Alberto Tavares da Costa Bravo Serra Gil Galvão Luís Nunes de Almeida