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Proc. n.º 775/99
1ª Secção Rel.: Cons. Artur Maurício
(Cons. Vitor Nunes de Almeida)
ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:
1. – MSP, notificado da decisão do Presidente do Instituto da Conservação da Natureza que lhe aplicou uma coima de 100.000$00 por
'alteração da morfologia do solo e do coberto vegetal mediante o desmonte de pedra para transformação de calçada no local como também o arranque de alguns pés de azinheira e outros matos', actividade violadora do preceituado nos artigos 4º, n.º2, alínea c) do Decreto Regulamentar n.º 12/96, de 22 de Outubro e dos artigos 22º, 23º, 24º, e 25º do Decreto-Lei n.º 19/93, de 23 de Janeiro, veio dela recorrer para o Tribunal Judicial da Comarca de Ourém que, por decisão de 4 de Dezembro de 1998, julgou parcialmente procedente a impugnação judicial deduzida, reduzindo a coima aplicada para 50.000$00.
Não se conformando com o assim decidido, MSP pretendeu interpor recurso para o Tribunal Constitucional.
Com efeito, o recorrente tinha suscitado na sua impugnação de recurso uma questão de constitucionalidade que foi desatendida pela decisão recorrida.
Porém, face ao peculiar sistema de recurso instituído para as decisões que julgam recursos de impugnação de contra-ordenações previsto no artigo 73º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, o recorrente, por mera cautela, entendeu interpor recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra invocando o n.º2 do artigo 73º do Decreto-Lei n.º 433/82 (recurso necessário à melhoria do direito ou uniformidade da jurisprudência).
Por despacho de 11 de Janeiro de 1999, o processo foi remetido à Relação para decisão da questão prévia da admissão do recurso (artigo
74º, n.ºs 2 e3 do Decreto-Lei n.º 433/82).
Na Relação, o Ministério Público suscitou a questão prévia do não conhecimento do recurso.
O Tribunal da Relação, por acórdão de 12 de Maio de
1999, decidiu mandar baixar os autos para se proferir o despacho de admissibilidade do recurso, o que foi feito, no sentido de o mesmo ser admitido.
Remetidos de novo os autos à Relação, esta veio a proferir o acórdão de 10 de Novembro de 1999, pelo qual se veio a rejeitar o recurso.
Face a tal decisão, o recorrente veio então interpor recurso de constitucionalidade da decisão proferida na 1ª instância, pretendendo que se aprecie a conformidade constitucional da norma constante do artigo 4º, n.º2, do Decreto Regulamentar n.º 12/96, de 22 de Outubro.
Neste Tribunal, o recorrente apresentou alegações em que formulou as seguintes conclusões:
'1. O art. 4.º , n.º2, do Decreto Regulamentar n.º 12/96, de 22 de Outubro está ferido de inconstitucionalidade material, por violar o art. 62º da Constituição.
2. Com efeito, a amplitude das proibições de tal norma é tal que equivale a uma proibição absoluta de toda e qualquer actividade.
3. Ou seja, a uma expropriação de facto, relativamente aos proprietários de propriedades privadas incluídas no perímetro do Monumento – como é o caso do recorrente.
4. Expropriação de facto e sem justa indemnização, claramente interdita pelo art. 62º da Constituição.
5. Quando muito, a norma só não será inconstitucional se interpretada de forma a excluir do seu âmbito de aplicação as actividades pré-existentes.
6. Dado que na propriedade do recorrente está, desde há dezenas de anos, em funcionamento um estabelecimento industrial de extracção de calcário, devidamente manifestado em tempo oportuno e, por via disso, ressalvados os direitos do seu proprietário pelo art. 45º do DL n.º 98/90, a norma do art. 4º, n.º2, do Dec. Reg. N.º 12/96 é claramente uma expropriação informal, ilegal e sem justa indemnização, de estabelecimento industrial, assim proscrita pelo art.
62º da Constituição.'
Também o Ministério Público apresentou alegações, que concluiu pela forma seguinte:
'1 – É lícito ao Governo prever em decreto regulamentar – editado com base e em desenvolvimento de precedente decreto-lei que estabelece o regime das áreas protegidas – certos deveres de abstenção para os proprietários de terrenos abrangidos por determinado Monumento Natural, como forma de salvaguardar plenamente os interesses ambientais e culturais que lhe são inerentes, tipificando como contra-ordenação os comportamentos que os não acatam, desde que se mostrem respeitados os limites decorrentes da lei-quadro do ilícito de mera ordenação social.
2 – Extravasa claramente o âmbito – e a função típica – do processo contra-ordenacional a questão da eventual existência de um direito de indemnização do proprietário, como compensação das restrições decorrentes dos deveres de abstenção que decorrem da imposição de certa servidão administrativa sobre o prédio de que é titular.
3 – Na verdade, no processo contra-ordenacional apenas é legítimo discutir e apurar da existência do facto ilícito e da culpa, não podendo esta ser afastada com base na alegação, no âmbito deste processo, de que à imposição de certos deveres de abstenção deveria corresponder o arbitramento de indemnização ao proprietário dos terrenos onerados.
4. – Termos em que deverá improceder o presente recurso.'
Corridos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
2 - Ao recorrente foi aplicada uma coima por, no desenvolvimento da sua actividade de exploração de uma pedreira no perímetro do Monumento Natural das Pegadas de Dinossáurios de Ourém, ter alterado a morfologia do solo e do coberto vegetal (desmonte de pedra para transformação em calçada e arranque de alguns pés de azinheira e outro mato), em contravenção com o preceituado no artigo 4º, n.º2, alínea c), do Decreto Regulamentar n.º 12/96, de 22 de Outubro.
Sendo objecto do recurso de constitucionalidade, em fiscalização concreta, a norma aplicada (ou desaplicada), daqui desde logo decorre que, no caso, a verificação da constitucionalidade não possa abranger todo o complexo normativo constante do artigo 4º nº 2 do Decreto Regulamentar nº
12/96 mas tão só a norma que consta da citada alínea c) dos mesmos artigo e número.
Isto não significa, porém, que tal verificação – a ocorrer e nos termos em que o recorrente invoca a inconstitucionalidade - não devesse ponderar os restantes ónus que recaem sobre as áreas abrangidas por tal complexo normativo e que constam das restantes alíneas do mesmo artigo 4º nº 2.
O recorrente coloca a questão de constitucionalidade da norma no plano da ofensa do direito de propriedade tal como o tutela o artigo
62º da Constituição. Para ele, a norma em causa viola este preceito constitucional uma vez que as proibições e interdições dela constantes, dada a sua ampla extensão e não estando prevista uma indemnização, correspondem 'a uma expropriação informal e não indemnizada dos estabelecimentos industriais pré-existentes e uma violação de direitos adquiridos'.
Será assim?
Antes do mais importa apreciar uma questão suscitada pelo Ministério Público no sentido de que no processo de contra-ordenação apenas está em causa prima facie o incumprimento por parte do recorrente de determinados deveres, regulamentarmente impostos e derivados da criação do Monumento Natural das Pegadas de Dinossáurios e o seu sancionamento contra-ordenacional, razão por que não teria cabimento a discussão da questão da existência de um direito de indemnização.
É que – diz o Ministério Público – 'a circunstância de não ter sido arbitrada indemnização ao proprietário dos terrenos incluidos no referido monumento natural, como compensação da diminuição de utilidades por ele auferíveis do imóvel de que é titular não o autoriza a fazer tábua rasa dos deveres que lhe foram legal ou regulamentarmente impostos, realizando de pleno as actividades vedadas pelos diplomas (legais e regulamentares) editados para protecção dos interesses ambientais e culturais associados à área protegida em questão'.
Vejamos, em primeiro lugar, qual o teor da norma que o recorrente questiona.
'Artigo 4º
(Condicionamentos e interdições)
1 ..........................................
2– Na área abrangida pelo Monumento Natural são interditos os seguintes actos e actividades: a. ...................................... b. ......................................; c. A alteração da morfologia do solo e do coberto vegetal, nomeadamente mediante escavações, aterros, depósitos de inertes e o vazamento de entulhos, resíduos, lixos ou sucata, com excepção das operações imprescindíveis ao estudo e valorização da jazida de iconofósseis; d. ....................................... e. ....................................... f. ......................................' A norma está integrada num complexo de proibições de actividades na área protegida do monumento natural em causa – Monumento Natural das Pegadas de Dinossáurios, criado pelo citado Decreto Regulamentar nº 12/96: a realização de quaisquer obras de construção civil, nomeadamente urbanísticas, industriais, viárias ou de saneamento não abrangidas pela alínea c) do número anterior
(alínea a)), a exploração de recursos e a colheita ou detenção de exemplares geológicos e paleontológicos (alínea b)), a colheita ou detenção de exemplares ou partes deles pertencentes a quaisquer espécies vegetais ou animais sujeitas a medidas de protecção (alínea d)), a instalação de linhas eléctricas ou telefónicas, tubagens de gás e condutas de água ou saneamento, salvo as destinadas exclusivamente e consideradas imprescindíveis ao abastecimento das instalações referidas na alínea c) do número anterior (alínea e)), a prática de actividades desportivas motorizadas e equestres (alínea f) e o lançamento de
águas residuais (alínea g). A infracção a estas proibições é sancionada com uma coima nos termos dos artigos
22º nºs 1 alínea c) e 2 do DL nº 19/93, de 23 de Janeiro, por remissão constante do artigo 6º do Decreto Regulamentar nº 12/96.
Com a Lei nº 9/70, de 19 de Junho foram introduzidas na nossa ordem jurídica as noções de parque nacional e de reserva e iniciou-se entre nós o acompanhamento da evolução internacional da protecção da Natureza, tendo-se então criado o Parque Nacional da Peneda-Gerez e várias reservas; com a publicação da Lei de Bases do Ambiente – Lei nº 11/87, de 7 de Abril – consagraram-se os conceitos de área protegida de âmbito regional e local, consoante os interesses a salvaguardar, a iniciativa de classificação, regulamentação e gestão.
O decreto regulamentar que criou o Monumento Natural das Pegadas de Dinossáurios foi editado ao abrigo do artigo 13º do Decreto-Lei n.º
19/93, que regula os planos relativos à Rede Nacional de Áreas Protegidas
(diploma alterado pelo Decreto-Lei n.º 213/97, de 16 de Agosto e pelo Decreto-Lei n.º 151/95, de 24 de Junho). Estes planos integram-se nos ‘planos especiais de ordenamento do território’, regulados pelo Decreto-Lei n.º 151/95, de 24 de Junho, alterado pela Lei n.º 5/96, de 29 de Fevereiro. As áreas protegidas de interesse nacional previstas no diploma são: o parque nacional, a reserva natural, o parque natural e o monumento natural (artigo 2º, do DL
19/93).
O Monumento Natural aqui em questão insere-se no Parque Natural das Serras de Aire e Candeeiros, criado pelo Decreto-Lei n.º 118/79, de
4 de Maio, o que levou à sua classificação como monumento natural, visando a sua criação preservar o achado de uma das mais importantes jazidas conhecidas de pegadas de dinossáurio, 'tornado-o um polo de interesse das populações, com
ênfase na sua interface ambiental'.
A criação do Monumento Natural – uma das modalidades de
áreas protegidas, como decorre da disciplina jurídica da Rede Nacional das Áreas Protegidas – teve como consequência o estabelecimento de alguns condicionamentos e de várias interdições na área abrangida pelo Monumento e definida no diploma criador.
De acordo com o preceituado no artigo 5º do Decreto Regulamentar, o Monumento Natural é administrado directamente pelo Instituto da Conservação da Natureza que, segundo o artigo 6º do mesmo diploma, detém a competência para exercer as atribuições constantes dos artigos 24º e 25º do Decreto-Lei nº19/93, de 23 de Janeiro.
O artigo 24º determina quem tem competência para o processamento das contra-ordenações e para a aplicação das coimas e sanções acessórias definidas nos artigos 22º e 23º do diploma. Por sua vez, o artigo 25º prevê a possibilidade de reposição da situação anterior á infracção.
Como se referiu antes, o diploma que instituiu as áreas protegidas de âmbito nacional, regional e local estabeleceu que o decreto regulamentar de classificação de uma área protegida pode fixar condicionamentos ao uso, ocupação e transformação do solo, bem como interditar no interior da
área protegida as acções e actividades susceptíveis de prejudicar o desenvolvimento natural da fauna e da flora ou das características da área protegida, nomeadamente a introdução de espécies animais ou vegetais exóticas as quais, quando destinadas a fins agro-pecuários, devem ser expressamente identificadas, as actividades agrícolas, florestais, industriais, minerais, comerciais ou publicitárias, a execução de obras ou empreendimentos públicos ou privados, a extracção de materiais inertes, a utilização das águas, a circulação de pessoas e bens e o sobrevoo de aeronaves (artigo 13º, n.º6, do Decreto-Lei n.º 19/93).
A prática dos actos e actividades constantes das diversas alíneas do n.º1 do artigo 22º do DL nº 19/93, quando interditas ou condicionadas nos termos atrás referidos, constitui contra-ordenação, a punir com as coimas previstas no nº 2 do preceito, podendo tais comportamentos, quando a gravidade da infracção o justifique, levar à aplicação de sanções acessórias.
Uma das actividades interditas que constitui contra-ordenação é a realização de 'alterações à morfologia do solo, nomeadamente modificações do coberto vegetal, escavações, aterros, depósitos de sucata, areias ou outros resíduos sólidos que causem impacto visual negativo ou poluam o solo ou o ar'.
Pelo seu lado, como se viu, o diploma que criou o Monumento Natural das Pegadas de Dinossáurios de Ourém/Torres Novas interdita, na área abrangida pelo Monumento Natural, entre outros, o procedimento descrito no citado artigo 4º nº 2 alínea c).
É assim claro que o Governo, uma vez decidida a criação do Monumento Natural, dado o seu 'invulgar valor científico', estava credenciado para impor aos proprietários de terrenos ou explorações abrangidas pela área de protecção do Monumento os condicionamentos e interdições que considerasse indispensáveis para a conservação e salvaguarda da raridade do achado, assim como para sancionar o incumprimento desses condicionamentos ou a infracção dessas proibições.
Ora, se é certo que o processo em causa é um processo contra-ordenacional e visa apenas apurar o incumprimento dos deveres impostos e o seu sancionamento, não pode, porém, considerar-se de todo descabido que o arguido, na sua defesa, ponha em causa a constitucionalidade da norma que impõe tais deveres. Ao fazê-lo, e porque essas normas caracterizam o ilícito, o arguido estará a pôr em causa o próprio cometimento da contra-ordenação que lhe
é imputada, por falta de um seu elemento essencial. Julgando inconstitucionais essas normas, a decisão final do processo não poderia deixar de ser absolutória.
Crê-se, aliás, que a questão colocada pelo Exmo Magistrado do Ministério Público não compromete este entendimento. Na verdade, reportada a questão de inconstitucionalidade à norma aplicada, o que ela põe em causa é, no rigor das coisas, a pertinência do fundamento da inconstitucionalidade arguida pelo recorrente, ou seja, a da falta de indemnização devida pelo que o mesmo recorrente considera, atendendo à natureza e extensão dos deveres impostos, uma expropriação de facto.
E tem razão aquele Exmo Magistrado.
Na verdade, o recorrente assenta a sua arguição no facto de não estar prevista na lei uma indemnização pela imposição daqueles deveres que restringiriam de uma forma drástica e excessiva o seu direito de propriedade, com violação do artigo 62º da Constituição.
Ora, a norma em causa – e só ela foi aplicada na decisão recorrida - nada tinha que dispor sobre essa matéria, pelo que o seu silêncio não tem qualquer sentido quanto ao dever de indemnizar – a imposição do dever é lícita, como lícito é o seu sancionamento contra-ordenacional, não podendo o recorrente furtar-se ao cumprimento do mesmo dever com o fundamento na falta de indemnização.
Não é, aliás, líquido que, no caso, a indemnização não seja devida, no estrito plano do direito infraconstitucional – questão que ao Tribunal não cumpre agora apreciar – sendo aqui oportuno recordar que num caso em que a lei então em causa não previa expressamente um direito de indemnização, o Tribunal não emitiu juízo de inconstitucionalidade, apelando a outras normas do ordenamento jurídico infraconstitucional que confeririam esse direito (cfr. Acórdão nº 329/99, publicado in DR, II Série, de 20/7/99).
Situação diferente ocorreria, mas noutra sede, e, então, com plena pertinência da arguição, se p. ex. o proprietário do imóvel onerado tivesse requerido à Administração - e lhe fosse negada - uma indemnização, ou, em acção intentada para esse efeito, improcedesse a sua pretensão com fundamento em não ser indemnizável a restrição ou limitação do seu direito de propriedade.
Em suma, pois, pelo que se deixa dito e sem necessidade de outras considerações, não pode proceder a arguição de inconstitucionalidade, por violação da norma do artigo 62º da Constituição.
3 – Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em
15 Ucs. Lisboa, 13 de Fevereiro de 2001 Artur Maurício Luís Nunes de Almeida Maria Helena Brito Vítor Nunes de Almeida (vencido, conforme declaração de voto que junto) José Manuel Cardoso da Costa
DECLARAÇÃO DE VOTO
1. – Fiquei vencido no projecto que apresentei relativamente á questão de constitucionalidade que MSP suscitou nos presentes autos.
Vejamos.
MSP, proprietário de uma pedreira sita no perímetro do Monumento Natural das Pegadas de Dinossáurios de Ourém, foi acusado e condenado no pagamento de uma coima por, no desenvolvimento da sua actividade de exploração da pedreira, ter alterado a morfologia do solo e do coberto vegetal, em contravenção com o preceituado no artigo 4º, nº2, alínea c), do Decreto Regulamentar nº 12/96, de 22 de Outubro.
Na sua defesa, no processo contraordenacional, MSP suscitou a inconstitucionalidade do mencionado artigo 4º, por entender que o peso das limitações legais decorrentes de tal preceito correspondiam a uma verdadeira 'expropriação de facto' do seu negócio de exploração de pedreira, sem o pagamento da correspondente indemnização.
No projecto que apresentei e que não logrou obter vencimento, entendi que a norma em causa era inconstitucional, por violação do artigo 62º da Constituição.
A fundamentação que utilizei foi a seguinte:
A norma questionada tem o seguinte teor:
'Artigo 4º
(Condicionamentos e interdições)
1 – Na área abrangida pelo Monumento Natural privilegiam-se a protecção e valorização dos bens geológicos, icnológicos e palentológicos, sendo ali permitidas as seguintes actividades mediante parecer favorável do Instituto da Conservação da Natureza:
[...].
2 – Na área abrangida pelo Monumento Natural são interditos os seguintes actos e actividades: g. A realização de qualquer obre de construção civil, nomeadamente urbanísticas, industriais, viárias ou de saneamento, não abrangidas pela alínea c) do número anterior; h. A exploração de recursos e a colheita ou detenção de exemplares geológicos e paleontológicos; i. A alteração da morfologia do solo e do coberto vegetal, nomeadamente mediante escavações, aterros, depósitos de inertes e o vazamento de entulhos, resíduos, lixos ou sucata, com excepção das operações imprescindíveis ao estudo e valorização da jazida de icnofósseis; j. A colheita ou detenção de exemplares ou partes deles pertencentes a quaisquer espécies vegetais ou animais sujeitas a medidas de protecção; k. A instalação de linhas eléctricas ou telefónicas, tubagens de gás e condutas de água ou saneamento, salvo as destinadas exclusivamente e consideradas imprescindíveis ao abastecimento das instalações referidas na alínea c) do número anterior; l. A prática de actividades desportivas motorizadas e equestres; m. O lançamento de águas residuais.'
A decisão recorrida apenas aplicou a norma do artigo 4º, nº2, alínea c) do Decreto Regulamentar nº 12/96, apenas esta norma integra o objecto do presente recurso de constitucionalidade, embora o recorrente invoque outras alíneas.
2. - Com a Lei nº 9/70, de 19 de Junho foram introduzidas na nossa ordem jurídica as noções de parque nacional e reserva iniciou-se entre nós o acompanhamento da evolução internacional da protecção da Natureza, tendo-se então criado o Parque Nacional da Peneda-Gerês e várias reservas; com a publicação da Lei de Bases do Ambiente – Lei nº 11/87, de 7 de Abril – consagraram-se os conceitos de área protegida de âmbito regional e local, consoante os interesses a salvaguardar, a iniciativa de classificação, regulamentação e gestão.
O decreto regulamentar que criou o Monumento Natural das Pegadas de Dinossáurios foi editado ao abrigo do artigo 13º do Decreto-Lei n.º
19/93, de 23 de Janeiro, que regula os planos relativos à Rede Nacional de Áreas Protegidas (diploma alterado pelo Decreto-Lei n.º 213/97, de 16 de Agosto e pelo Decreto-Lei n.º 151/95, de 24 de Junho). Estes planos integram-se nos ‘planos especiais de ordenamento do território’, regulados pelo Decreto-Lei n.º 151/95, de 24 de Junho, alterado pela Lei n.º 5/96, de 29 de Fevereiro. As áreas protegidas de interesse nacional previstas no diploma são: o parque nacional, a reserva natural, o parque natural e a monumento natural (artigo2º, do DL 19/93).
O Monumento Natural aqui em questão insere-se no Parque Natural das Serras de Aire e Candeeiros, criado pelo Decreto-Lei n.º 118/79, de
4 de Maio, o que justificou a sua classificação como monumento natural, visando a sua criação preservar o achado de uma das mais importantes jazidas conhecidas de pegadas de dinossáurio, 'tornado-o um polo de interesse das populações, com
ênfase na sua interface ambiental'.
A criação do Monumento Natural – uma das modalidades de
áreas protegidas, como decorre da disciplina jurídica da Rede Nacional das Áreas Protegidas – teve como consequência o estabelecimento de alguns condicionamentos e de várias interdições na área abrangida pelo Monumento e definida no diploma criador.
É do âmbito excessivo da interdição prevista na alínea c) do nº2 do artigo 4º, enquanto torna inviável a continuação da exploração da pedreira que o arguido já explorava antes da criação do Monumento Natural e que agora se vê impossibilitado de continuar a explorar que o recorrente se queixa, considerando que ela impede 'todo e qualquer uso ou actividade das e nas propriedades privadas existentes no perímetro do Monumento Natural (...)', estando-se assim, segundo o recorrente, perante uma expropriação de facto que não de direito.
De acordo com o preceituado no artigo 5º do Decreto Regulamentar, o Monumento Natural é administrado directamente pelo Instituto da Conservação da Natureza que, segundo o artigo 6º do mesmo diploma, detém a competência para exercer as atribuições constantes dos artigos 24º e 25º do Decreto-Lei nº19/93, de 23 de Janeiro.
O artigo 24º determina quem tem competência para o processamento das contra-ordenações e para a aplicação das coimas e sanções acessórias definidas nos artigos 22º e 23º do diploma. Por sua vez, o artigo 25º prevê a possibilidade de reposição da situação anterior á infracção.
Como se referiu antes, o diploma que instituiu as áreas protegidas de âmbito nacional, regional e local estabeleceu que o decreto regulamentar de classificação de uma área protegida pode fixar condicionamentos ao uso, ocupação e transformação do solo, bem como interditar no interior da
área protegida as acções e actividades susceptíveis de prejudicar o desenvolvimento natural da fauna e da flora ou das características da área protegida, nomeadamente a introdução de espécies animais ou vegetais exóticas, as quais, quando destinadas a fins agro-pecuários, devem ser expressamente identificadas, as actividades agrícolas, florestais, industriais, minerais, comerciais ou publicitárias, a execução de obras ou empreendimentos públicos ou privados, a extracção de materiais inertes, a utilização das águas, a circulação de pessoas e bens e o sobrevoo de aeronaves (artigo 13º, n.º6, do Decreto-lei n.º 19/93).
A prática dos actos e actividades constantes das diversas alíneas do n.º1 do artigo 22º do DL 19/93, quando interditas ou condicionadas nos termos atrás referidos, constitui contra-ordenação, a punir com as coimas previstas no nº 2 do preceito, podendo tais comportamentos, quando a gravidade da infracção o justifique, levar à aplicação de sanções acessórias.
Uma das actividades interditas que constitui contra-ordenação é a realização de 'alterações à morfologia do solo, nomeadamente modificações do coberto vegetal, escavações, aterros, depósitos de sucata, areias ou outros resíduos sólidos que causem impacto visual negativo ou poluam o solo ou o ar'.
Pelo seu lado, o diploma que criou o Monumento Natural das Pegadas de Dinossáurios de Ourém/Torres Novas interdita, na área abrangida pelo Monumento natural a 'alteração da morfologia do solo e do coberto vegetal, nomeadamente mediante escavações, aterros, depósito de inertes e o vazamento de entulhos, resíduos, lixos ou sucatas, com excepção das operações imprescindíveis ao estudo e valorização da jazida de icnofósseis'.
3. - É assim claro que o Governo, uma vez decidida a criação do Monumento Natural, dado o seu invulgar valor científico estava credenciado para impor aos proprietários de terrenos ou explorações abrangidas pela área de protecção do Monumento os condicionamentos e interdições que considerasse indispensáveis para a conservação e salvaguarda da raridade do achado.
Porém, esses condicionamentos e interdições decorrentes da situação dos prédios e da exploração industrial em causa nos autos têm de respeitar os princípios constitucionais relevantes em matéria de direito de propriedade.
Com efeito, o direito de propriedade privada é um direito de natureza análoga aos direitos liberdades e garantias pelo menos enquanto direito de cada um não ser privado da sua propriedade, salvo por razões de utilidade pública, e em tal caso, mediante o pagamento de uma indemnização justa.
Na verdade, o artigo 62º da Constituição estabelece que
'a todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição (n.º1). A requisição e a expropriação por utilidade pública só podem ser efectuadas com base na lei e mediante o pagamento de justa indemnização (n.º2)'.
No caso em apreço, é manifesto que não se verificou nenhuma expropriação por utilidade pública: efectivamente, quer o decreto regulamentar que cria o Monumento Natural quer o diploma legal que o classifica como área protegida de interesse nacional, como se viu atrás, se, em geral, se limitam a fixar condicionamentos ao uso e ocupação do solo dentro da área protegida, todavia, estabelecem interdições relativamente a certos actos ou actividades.
Assim, de acordo com o diploma regulamentar na área abrangida pelo Monumento Natural fica proibida a realização de quaisquer obras de construção civil, nomeadamente urbanísticas, industriais, viárias ou de saneamento que não sejam as necessárias à instalação de equipamento para a valorização do património icnofóssil ou para apoio da investigação científica ou da educação ambiental relacionada com o Monumento (alínea a) do nº2 e c) do n.º1). Fica também proibida a exploração de recursos e a colheita ou detenção de exemplares geológicos e paleontológicos (alínea b), do n.º2 do artigo 4º), bem como a alteração da morfologia do solo e do coberto vegetal, nomeadamente mediante escavações, aterros, depósitos de inertes e o vazamento de entulhos, resíduos, lixos ou sucata, com excepção das operações imprescindíveis ao estudo e valorização da jazida de icnofósseis (alínea c), do n.º2).
O decreto regulamentar também interdita a instalação de linhas eléctricas ou telefónicas, tubagens de gás e condutas de água ou saneamento, salvo as destinadas á valorização do património icnofóssil e à investigação científica e à educação ambiental.
Destas interdições, apenas algumas delas se podem considerar como decorrentes da especial situação da propriedade do recorrente. Na verdade, uma vez que a propriedade do recorrente se situa dentro da área abrangida pelo Monumento Natural, esse facto confere-lhe uma particular natureza pela especial protecção e valorização do património geológico, icnológico e palentológico da área: é a chamada vinculação situacional da propriedade (cf. Alves Correia, in 'O Plano Urbanístico e o Princípio da Igualdade', Almedina,
1989,pág. 324 e 'Problemas Actuais do Direito do Urbanismo em Portugal', separata da 'Revista do Centro de Estudos do Direito do Ordenamento, do Urbanismo e do Ambiente'), que acarreta determinadas limitações de utilização do terreno ainda não efectivadas e que mais não são do que uma melhor definição do conteúdo da propriedade. Estão neste caso, a exploração de recursos e a colheita de exemplares geológicos e paleontológicos, a colheita de espécies, vegetais ou animais, sujeitas a medidas de protecção, a prática de actividades desportivas motorizadas e equestres ou o lançamento de águas residuais.
Porém, a proibição de alteração da morfologia do solo e do coberto vegetal, designadamente mediante escavações, por si só ou quando considerada em conjunto com a proibição de instalação de linhas eléctricas ou telefónicas e de condutas de água ou saneamento tornam absolutamente impossível o prosseguimento da actividade de exploração da pedreira a que o recorrente se dedicava e é a sua única fonte de rendimento.
Tais proibições ao inviabilizarem o desenvolvimento da actividade a que se dedicava o recorrente não sendo uma expropriação no sentido técnico-jurídico do termo, não podem deixar de ser tratadas como uma
«expropriação de sacrifício» que só é constitucionalmente admissível se o diploma que as impuser estabelecer a obrigação de pagamento de uma indemnização justa.
4. - No caso dos autos, o decreto regulamentar que estabelece tais interdições não prevê qualquer indemnização como compensação para as proibições ou interdições estabelecidas.
Tanto basta para que, devendo tratar-se a imposição das referidas interdições como se de uma «expropriação de sacrifício» se tratasse, a não previsão de uma justa indemnização torna a norma inconstitucional por violação do direito de propriedade. No caso, porém, ao recorrente veio a ser imposta uma coima pelo facto de não ter respeitado tais proibições. Ora, não é exigível ao recorrente que tenha de pagar uma coima pelo desrespeito de proibições que inviabilizam de modo absoluto a exploração da pedreira sua propriedade e que é a sua única fonte de rendimentos, quando o diploma que estabelece tais interdições nem sequer prevê o pagamento de uma indemnização justa pela necessária e consequente cessação da actividade.
As proibições referidas, sendo embora adequadas ao fim da lei – preservar a área do Monumento Natural -, todavia revelam-se verdadeiramente «expropriativas» para o proprietário e recorrente: de facto, a actividade de exploração de uma pedreira consiste necessariamente na alteração na alteração da morfologia do solo e do coberto vegetal mediante escavações e remoção de terras, conforme decorre dos artigos 2º, alínea d), 32º e 33º do Decreto-Lei n.º 89/90, de 16 de Março (aprova o regulamento de pedreiras).
Na verdade, as interdições decorrentes do diploma criador do Monumento Natural das Pegadas de Dinossáurios de Ourém/Torres Novas implicam para o proprietário recorrente um dano de gravidade e intensidade tais que torna injusta a sua não equiparação à expropriação, para o efeito de dever ser paga uma indemnização.
Assim, a norma do artigo 4º, n.º2, do Decreto Regulamentar n.º 12/96, de 22 de Outubro, ao não prever a fixação de uma indemnização como compensação para o estabelecimento das interdições que prevê quando a sua aplicação inviabilize a continuação da exploração de uma pedreira pré-existente ao Monumento Natural, única fonte de rendimento do seu proprietário, é inconstitucional por violar o artigo 62º, nº2 da Constituição da República Portuguesa.
Por todos estes fundamentos, não pude concordar com a maioria que fez vencimento nos autos.
Juiz Conselheiro Vítor Manuel Neves Nunes de Almeida