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Proc. n.º 278/00
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. O promotor de justiça junto do 1º Tribunal Militar Territorial de Lisboa deduziu, em 17 de Setembro de 1998, libelo contra JC, soldado da Guarda Nacional Republicana, imputando-lhe a prática de um crime de corrupção, previsto e punível pelo artigo 191º, n.º 1, do Código de Justiça Militar (fls. 76 a 77).
2. Na contestação (fls. 119 e seguintes), JC concluiu dizendo, nomeadamente, que '[a] dedução do libelo por um oficial superior do Exército, na qualidade de promotor de justiça, e não por um magistrado do Ministério Público, viola o disposto no artigo 219º, da CRP e, consequentemente, o artigo 377º do Código de Justiça Militar é inconstitucional, o que desde já é arguido'.
3. No texto do despacho do 1º Tribunal Militar Territorial de Lisboa, de fls. 122 v.º, lê-se o seguinte: 'A constitucionalidade do funcionamento e da constituição deste Tribunal. Advém-lhe neste momento, do disposto no Artº 197 da Lei Constitucional n.º 1/97, preceito que tem o mesmo valor constitucional dos preceitos que prevêem, para futuro, a criação de tribunais com competência para julgar crimes de natureza estritamente militar, integrados na jurisdição comum. Este Tribunal não vislumbra, assim, as inconstitucionalidades suscitadas pela defesa, pelo que, a esse respeito, nada mais há a decidir'.
4. Por acórdão de 19 de Maio de 1999 (fls. 127 e seguintes), o 1º Tribunal Militar Territorial de Lisboa julgou a acusação provada e procedente e, em consequência, condenou o réu como autor material de um crime de corrupção passiva, previsto e punível no artigo 191º, n.º 1, do Código de Justiça Militar, e no artigo 372º do Código Penal, na pena de um ano de prisão, substituída por igual tempo de prisão militar. Nos termos do disposto no artigo 50º do Código Penal, o Tribunal suspendeu a execução da pena pelo período de dois anos.
5. Do despacho de fls. 122 v.º (supra, 3.) recorreu o réu, por meio de declaração para a acta, tendo o recurso sido admitido (fls. 122 v.º). Nas alegações (fls. 140 e seguintes), concluiu do seguinte modo, para o que aqui releva:
'1. A dedução do libelo por um oficial superior do Exército, na qualidade de promotor de justiça, e não por um magistrado do Ministério Público, viola o disposto no artigo 219º da Constituição da República Portuguesa, com o texto revisto pela Lei Constitucional nº 1/97, de 20 de Setembro, e, consequentemente, o artigo 377º do Código de Justiça Militar é inconstitucional, o que desde já é arguido.
2. A representação do Ministério Público na audiência de julgamento pelo Digno Promotor de Justiça, oficial superior do Exército, e não magistrado, viola o disposto no artigo 219º da Constituição da República Portuguesa, com texto revisto pela Lei Constitucional nº 1/97, de 20 de Setembro, e, consequentemente, os artigos 251º a 257º do Código de Justiça Militar são inconstitucionais, o que desde já é arguido.
[...]'
6. Do acórdão de 19 de Maio de 1999 (supra, 4.) recorreram tanto o promotor de justiça junto do 1º Tribunal Militar Territorial de Lisboa como o réu. O promotor de justiça apresentou as seguintes conclusões (fls. 146 e 147):
'1. O presente recurso é interposto nos termos do art. 427 alínea c) do CJM.
2. Ao réu foi-lhe aplicada a pena de 1 (um) ano de prisão substituída por igual tempo de Prisão Militar.
3. Tal pena foi-lhe suspensa por 2 (dois) anos.
4. Na jurisdição militar sob jurisprudência do Supremo Tribunal Militar não é admitida a suspensão da pena.'
O réu JC, por seu turno, concluiu as alegações (fls. 154 e seguintes) de modo semelhante ao já assinalado (supra, 5.), isto é, suscitando a inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 377º e 251º a 257º do Código de Justiça Militar. Este recurso interposto pelo réu foi admitido por despacho de fls. 158 e v.º.
7. Por despacho de fls. 174 a 176, o juiz auditor do 1º Tribunal Militar Territorial de Lisboa decidiu não receber o recurso interposto pelo promotor de justiça (supra, 6.), com os seguintes fundamentos:
'A fls. 146 e 147 o Exmº Promotor vem interpor recurso nos termos do artº 427º, alínea e), do C.J. Militar, por ordem hierárquica, a qual lhe foi transmitida pelas circulares nºs 7947 de 20/11/98 do Gabinete do CEME e circular nº 19/79
(Confidencial) expedida pelo Exmº Brigadeiro Director do Serviço da Repartição de Justiça do Estado Maior do Exército, por determinação do C.E.M.E.. A circular nº 7947 de 20/11/98 reporta-se à circular nº 19/79 e assume a natureza de informação no sentido «... que, em relação aos processos respeitantes a este ramo, deverá continuar a ser observado o disposto na sobredita circular de
07/12/79 quanto à obrigatoriedade de interposição de recurso para o Supremo Tribunal Militar». A Ordem Jurídica Portuguesa sofreu entretanto (posteriormente
à circular nº 19/79) alterações que retiram legitimidade e, portanto, relevância jurídica, à determinação contida na circular nº 19/79. O exercício da acção penal, nomeadamente no respeitante ao poder-dever de recorrer de decisões judiciais é, constitucionalmente, atribuído ao Ministério Público (artº 219º nº
1 in fine da C.R.P.). As funções de Ministério Público são exercidas, no âmbito da Justiça Penal Militar, pelo Promotor de Justiça (artº 254º, do CJM). Ora, as
«funções de Ministério Público» exercidas pelo Exmº Promotor não se compadecem, agora, com a existência de um vínculo hierárquico relativamente ao Exmº Chefe do Estado Maior do Exército, em termos de este poder determinar a sua actuação no
âmbito de processos penais militares decidindo, v.g., a interposição de recurso. A Lei nº 29/82 de 11 de Dezembro (Lei da Defesa Nacional e das Forças Armadas) determina que «As Forças Armadas obedecem aos órgãos de soberania competentes nos termos da Constituição e da lei (artº 19º) inserindo-se na administração directa do Estado através do Ministério da Defesa Nacional (artº 35º, nº 1) dependendo o Exmº C.E.M.E. do Ministro da Defesa Nacional (artº 35º, nº 2). O Exmº CEME é nomeado e exonerado (em ambos os casos discricionariamente e por critérios políticos) pelo Senhor Presidente da República sob proposta do Governo
(artº 38º, nº 4, alínea e) e 42º, nº 1, alínea m) e 56º nº 2, Lei cit.), sendo nomeado por um período de 3 anos prorrogável por dois anos, podendo ser exonerado «... a todo o tempo...». A República Portuguesa é um Estado de Direito Democrático baseado «... na separação e interdependência de poderes...» (artº 2º da C.R.P.) estando vedado ao Exmº Presidente da República e ao Governo a interferência, por ordem directa, no exercício das funções de Ministério Público
(artº 219º da C.R.P.), magistratura com assento no Órgão de Soberania, Tribunais, como se infere da sua integração na sistemática da nossa Lei Fundamental (capitulo IV do Titulo V, versando este sobre os Tribunais). E não será despiciendo lembrar que «os Tribunais são órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo» (artº 110º e 202º nº 2, C.R.P.) observando a separação e a interdependência estabelecidas na Constituição com os restantes órgãos de soberania, a saber, o Presidente da República, a Assembleia da República e Governo. Das competências constitucionalmente atribuídas a estes órgãos de soberania não faz parte a possibilidade de conformação do exercício das funções do Ministério Público
(artº 133º-135º, quanto ao Presidente da República; os artºs 161º-165º, quanto à Assembleia da República e artºs 197º-201º, quanto ao Governo). A estes órgãos de soberania está constitucionalmente vedada a possibilidade de darem ordem ao Exmº Promotor no exercício das suas funções de Ministério Público. O Exmº C.E.M.E.
órgão das Forças Armadas integrado na administração directa do Estado e dependendo do Presidente da República e do Governo, não pode exercer poderes que nem a estes órgãos de soberania assistem. Assim, o artº 427º, alínea e), do C.J.M., a ser interpretado como permitindo ao Exmº C.E.M.E., ao Exmº C.E.M.G.F.A. ou outro órgão das Forças Armadas, darem ordem ao Exmº Promotor no exercício das suas funções de Ministério Público, não pode deixar de se considerar inconstitucional. Lamentamos que ainda não tenha sido dado cumprimento ao disposto no artº 73º, nº 1, alínea a) da Lei nº 29/82. A ordem jurídica que decorre da nova Lei Fundamental exige uma rápida actualização, em direito legislativo, da Lei Processual Penal Militar e do Estatuto que aos seus intervenientes assiste, atenta a dificuldade que, diariamente, se coloca aos Tribunais, no exercício das suas atribuições constitucionais e na determinação das «... disposições legais vigentes» (artº 197º, da Lei Constitucional nº 1/97, de 20/09). A ilegalidade, por violação de normas constitucionais, da «ordem para interpor recurso», veiculada pela circular nº 19/79 e repristinada pela circular nº 7947 de 20/11/98, não pode deixar de acarretar consequências processuais. O Exmº Promotor junto deste 1º T.M.T.L. tem legitimidade, por si, para interpor recurso das decisões deste Tribunal. Poderíamos, assim, entender que o requerimento de interposição de recurso, expurgado da ordem ilegítima veiculada pelas citadas circulares, subsistiria por si mesmo, como acto do Exmº Promotor na execução das suas funções de Ministério Público. Afigura-se-nos, não obstante, não podemos obnubilar a realidade, que não é essa. Processualmente estamos perante um recurso interposto pelo Exmº Promotor, por determinação do Exmº C.E.M.E.. A inconstitucionalidade da norma em que se estriba (o artº 427º, alínea e), do C.J.M. no sentido interpretativo referido supra) e a ilegalidade da ordem não poderão deixar de ter consequências jurídicas a nível processual. E estas não poderão ser outras que a rejeição do recurso.'
8. O promotor de justiça junto do 1º Tribunal Militar Territorial de Lisboa reclamou (fls. 181), para o presidente do Supremo Tribunal Militar, do despacho de fls. 174 a 176 que indeferiu o recurso por si interposto. Por despacho do presidente do Supremo Tribunal Militar (fls. 216 a 218), foi decidido atender a reclamação do promotor de justiça e revogar o despacho reclamado, nos seguintes termos:
'[...] Preceitua o artº 427º, alínea e) do C.J.M.:
«É obrigatória a interposição do recurso por parte do promotor: e) Quando o superior hierárquico lho ordenar». O Mmº Juiz Auditor reclamado entende que esta norma é inconstitucional na medida em que, sendo as autoridades militares parte da administração directa do Estado e subordinadas ao poder político, o seu poder de mandar ao Promotor de Justiça recorrer das decisões jurisdicionais violaria o princípio da separação de poderes entre o Governo e os tribunais. Diga-se, desde logo, que a norma em causa estatuindo um dever funcional do Promotor de Justiça não é passível de ser apreciada pelo Tribunal ou pelo juiz. De facto, a referida norma contém matéria de relações internas entre o Promotor e os seus superiores hierárquicos e só estes podem recusar eventualmente a sua aplicação por inconstitucionalidade, ilegalidade ou outra razão. Note-se que a obrigatoriedade imposta pela dita alínea e) não dispensa o Promotor de formular o requerimento de interposição de recurso, o que ele pode recusar se entender haver inconstitucionalidade da norma, incompetência da entidade que dá a ordem ou ilegalidade desta. Mas, ao recusar ao Promotor de Justiça a possibilidade de cumprir uma ordem, que ele tem por constitucional, legal e legítima, o Juiz interfere nas competências daquele, violando a autonomia do Ministério Público e a liberdade de actuação deste, o que é proibido pela lei. Daí que, por incompetência do seu autor, o despacho judicial que julga inconstitucional determinada obrigação funcional do Promotor de Justiça não deva subsistir. Acresce que a referida alínea e) do artº 427º do C.J.M. não é inconstitucional. Escreveu-se no acórdão deste Supremo Tribunal de 24 de Setembro de 1998
(Colecção de acórdãos de 1998, págs. 310 e 311): «A acção penal nos tribunais militares, inicialmente conferida aos próprios chefes militares, foi depois confiada a promotores de justiça que, todavia, actuam sob a direcção das autoridades militares, funcionando como verdadeiros delegados destes. Na vigência dos Códigos de Justiça Militar anteriores ao actual, o processo criminal militar iniciava-se por um corpo de delito instruído pela autoridade militar que, no final, mandava (ao promotor de justiça) deduzir um sumário de culpa (acusação provisória). E era ainda a autoridade militar que, sobre uma exposição elaborada pelo juiz auditor, ordenava a acusação, sendo esta, em forma de libelo, deduzida em conformidade com aquela ordem. No Código vigente, embora a instrução do processo seja dirigida por um juiz, a ordem para a acusação continua a ser formulada pela autoridade militar (artº
361º, nº 1, alínea a) do C.J.M.), sendo o libelo deduzido em conformidade com aquela ordem (artº 378º, nº 1 do C.J.M.). A autoridade militar continua a ser «o chefe da administração da justiça militar», podendo ordenar ao promotor o que entender por conveniente, incluindo a interposição ou a desistência de recursos ou a dedução de incidentes. Assim sendo, poderá afirmar-se que o exercício da acção penal nos processos criminais militares compete não ao Ministério Público, mas sim às autoridades militares competentes. E porque os promotores de justiça representam essas autoridades e actuam junto dos tribunais militares conforme a orientação delas, o C.J.M. atribuiu-lhes funções de Ministério Público». Resulta do texto transcrito que dentro do sistema do C.J.M. vigente, os promotores de justiça são delegados das autoridades militares e estas as verdadeiras detentoras do exercício da acção penal, pelo que o direito de ordenar a interposição de recurso se integra na relação delegante – delegado existente entre estas autoridades e aqueles promotores. Ora, não sendo posta em crise a constitucionalidade do sistema estatuído no C.J.M., mantido em vigor pelo artº 197º da Lei Constitucional nº 1/97, de 20 de Setembro, não pode ter-se como inconstitucional a norma que concede ao chefe militar o poder de mandar ao promotor recorrer, norma que se integra e é corolário directo dos demais poderes de direcção resultantes do sistema em vigor.
[...].'
Nos termos do decidido pelo presidente do Supremo Tribunal Militar, foi proferido pelo juiz auditor do 1º Tribunal Militar Territorial de Lisboa o despacho de fls. 224, admitindo o recurso interposto pelo promotor de justiça a fls. 146. O juiz auditor proferiu ainda o despacho de fls. 226 a 232, no qual manteve o despacho de fls. 122 (supra, 3.), bem como a orientação perfilhada no despacho de fls. 174 a 176 sobre a questão de inconstitucionalidade nele apreciada
(supra, 7.), tendo ainda considerado, a propósito da admissibilidade da aplicação do instituto da suspensão da execução da pena no âmbito do Código de Justiça Militar, que:
'[...] Não obstante a jurisprudência desse Venerando Supremo Tribunal Militar, no exercício das suas atribuições constitucionais (artº 202º, 203º e 204º da CRP), este Tribunal, no caso «sub judice», aplicou o instituto da suspensão da execução da pena. Fê-lo em cumprimento do artº 8º do CPenal e dos princípios constitucionais da igualdade (artº 13º CRP) e da proporcionalidade das reacções penais (artº 18º nº 2, da CRP), por entender que:
1) No direito penal militar é admissível a aplicação desse instituto.
2) No caso sub-judice estavam reunidos os pressupostos substantivos para o decretamento da suspensão da pena. [...].'
9. O promotor de justiça junto do Supremo Tribunal Militar, no parecer de fls. 239 a 241 vº, pronunciou-se no sentido do indeferimento da pretensão do recorrente, quando argui a inconstitucionalidade dos artigos 377º e 252º a 257º do Código de Justiça Militar, e do provimento do recurso interposto pelo promotor de justiça junto do 1º Tribunal Militar Territorial de Lisboa, na parte em que o mesmo, nos termos do artº 427º, alínea e), do Código de Justiça Militar, recorre da sentença que suspendeu a execução da pena de 1 ano de prisão militar. Na resposta ao referido parecer (fls. 244 a 245), JC arguiu a inconstitucionalidade dos artigos 283º a 288º e 427º, alínea e), do Código de Justiça Militar. Notificado, nos termos do despacho de fls. 246 v.º, para se pronunciar sobre certas nulidades invocadas neste requerimento, o promotor de justiça junto do Supremo Tribunal Militar emitiu o parecer de fls. 248 e v.º, no qual referiu, nomeadamente, que 'carece de fundamento a arguição de inconstitucionalidade das normas que lhes atribuem [aos promotores de justiça] competência para exercer, na jurisdição criminal militar, as funções de Ministério Público. Se tal viesse a ser considerado ficaria, outro tanto, em crise, o próprio sistema, enquanto se não regulamentasse o regime de assessoria especial junto do Ministério Público previsto no n.º 3 do artigo 219º da Constituição da República Portuguesa'.
10. Por acórdão de 30 de Março de 2000 (fls. 257 e seguintes), o Supremo Tribunal Militar negou provimento ao recurso interposto pelo réu e deu provimento ao recurso interposto pelo promotor de justiça. Lê-se no texto do acórdão, para o que aqui releva:
[...]. No seu despacho de sustentação, o Mmº Juiz Auditor do Tribunal recorrido insiste na tese da não admissibilidade do recurso do Exmº Promotor de Justiça, com fundamento na inconstitucionalidade que entende atingir a alínea e) do artº 427º do C.J.M., com base na qual foi interposto o mesmo recurso. Nas suas alegações complementares apresentadas neste Supremo Tribunal, o réu adere a esta tese. Não lhes assiste, porém, razão. Nos termos do artº 414º, nº 2 do C.P. Penal, subsidiariamente aplicável dado o C.J.M. nada dispor sobre a admissão dos recursos, «o recurso não é admitido quando a decisão for irrecorrível, quando for interposto fora de tempo, quando o recorrente não tiver as condições necessárias para recorrer ou quando faltar a motivação». No caso sub judicibus, a decisão é recorrível, o recurso foi tempestivamente apresentado conjuntamente com as respectivas alegações e o recorrente tem legitimidade. Assim sendo, por imperativo do citado artº 414º, nº 2, como de harmonia com o artº 687º, nº 3 do C.P. Civil, não existe fundamento para a não admissão do recurso. Efectivamente, não é motivo para a rejeição do recurso a razão que leva o recorrente a interpô-lo (ordem de superior hierárquico, discordância pessoal da decisão, conselho de um amigo ou de um colega, sugestão do secretário etc...). Esta matéria escapa completamente ao conhecimento do Tribunal que não está autorizado a dela conhecer.
É certo que em caso de recurso obrigatório interposto pelo Promotor de Justiça está este dispensado de apresentar alegações (artº 432º, nº 2 do C.J.M.), pelo que, nesta hipótese, terá o juiz de averiguar se efectivamente existe a obrigatoriedade legal de interposição de recurso, podendo questionar a inconstitucionalidade do preceito que impõe tal obrigatoriedade. Simplesmente, caso chegue à conclusão de ser inconstitucional a norma que impõe o recurso obrigatório, o juiz deverá julgar deserto o recurso (artº 432º, nº 1 do C.J.M.) não o admitindo por falta de alegações e não pela invalidade da norma que impunha o recurso obrigatório. In casu, porém, tendo sido apresentadas alegações, não há lugar à deserção de recurso que, por isso, devia ser admitido e tem de ser apreciado. O réu recorrente vem arguir a nulidade do artº 119º, alínea b) do C.P. Penal resultante da intervenção, na dedução do libelo e na representação do Ministério Público no julgamento, do Promotor de Justiça, oficial superior do Exército e que não é magistrado do Ministério Público. Em seu entender, os artºs 251º a 257º e 377º do Código de Justiça Militar são inconstitucionais por violação do artº 219º da C.R.P., na redacção dada pela Lei Constitucional nº 1/97, de 20 de Setembro. Já neste Supremo Tribunal, o mesmo recorrente veio arguir a nulidade da intervenção do Exmº Promotor de Justiça junto deste Tribunal, por, em seu juízo, serem inconstitucionais os artºs 283º a 288º do C.J.M.. Esta questão é idêntica à que foi suscitada no processo nº 14/C/9/G/99, sendo apreciada e decidida pelo acórdão de 20 de Janeiro de 2000 (Colecção de acórdãos do ano de 2000, págs. 1 e seguintes), cujos fundamentos são in casu inteiramente aplicáveis. Escreveu-se nesse acórdão: «Da mesma forma que a Constituição não refere expressamente se atribui o exercício da acção penal ao Ministério Público em regime de exclusividade ou não, também não esclarece expressamente se a atribuição desse exercício se reporta ou não a todo e qualquer tipo de acção penal, isto é, se atribui ao Ministério Público a função de exercer a acção penal, qualquer que ela seja. Diga-se desde já que entendemos não se estender ao exercício da acção penal militar junto dos actuais tribunais militares. Nesse sentido aponta o facto de as promotorias de justiça se encontrarem em exercício de funções, nomeadamente no exercício da acção penal militar, há vários séculos... e, na vigência da actual Constituição, há quase um quarto de século, sem que tal tenha sido juridicamente declarado inconstitucional». E mais adiante: «Com efeito, não pode, coerentemente, admitir-se que para o exercício da acção penal por crime militar junto de um tribunal judicial, a Constituição exija que o Ministério Público esteja assessorado de forma especial e já não exigisse pelo menos essa assessoria no caso de eventual actuação do mesmo Ministério Público junto de um tribunal militar... O facto de só agora (com as alterações introduzidas pela Lei Constitucional nº
1/97, de 20 de Setembro) a Constituição ter exigido essa dita forma especial de assessoria do Ministério Público no caso de crimes de natureza estritamente militar, parece-nos sinal evidente de que, anteriormente, não determinava obrigatoriamente nem sequer pressupunha qualquer intervenção processual penal do Ministério Público junto dos tribunais militares. O legislador constitucional considerou que um agente do Ministério Público, civil sem qualquer formação militar, não pode considerar-se, só por si, suficientemente vocacionado para «exercer a acção penal» militar, seja em pleno teatro ou ambiência de guerra, seja mesmo em tempo de paz». No que toca à intervenção do Exmº Promotor de Justiça junto deste Supremo Tribunal escreveu-se no aludido acórdão: «Conforme resulta do já acima exposto, nada há que confira ao Ministério Público o exercício da acção junto dos tribunais militares que permanecem em funções, ou que imponha a sua intervenção junto destes. Assim, não se mostra que as normas constantes dos citados artºs
283º a 288º do Código de Justiça Militar, nos vários aspectos que regem, violem o artº 219º da Constituição. E não resultando desta que o processo penal militar deva ser promovido, junto dos tribunais militares, pelo Ministério Público, cairia, desde já, pela base o raciocínio em que se fundou o réu arguente da nulidade». Concluiu-se, assim, que não são inconstitucionais os citados preceitos, do C.J.M. (artºs 251º a 257º e 283º a 288º e 377º) pelo que se indeferiu a arguição das nulidades correspondentes, decisão que, com base em todos os fundamentos explanados no mencionado acórdão, se repete agora.'
11. Não se conformando com este acórdão de 30 de Março de 2000, JC dele interpôs recurso para o Tribunal Constitucional (fls. 269), ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, pretendendo a apreciação da inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 377º, 251º a 257º, 283º a 287º e 427º, alínea e), todos do Código de Justiça Militar O recurso foi admitido por despacho de fls. 270, tendo sido determinada a junção aos autos da cópia de um acórdão do Supremo Tribunal Militar cujos fundamentos serviram de base aos do acórdão lavrado no presente processo. Já no Tribunal Constitucional, e nos termos do artigo 75º-A, n.º 6, da Lei do Tribunal Constitucional, foi proferido o despacho de fls. 305, ordenando a notificação do recorrente para, relativamente a cada uma das normas ou grupos de normas que submete à apreciação do Tribunal, indicar qual a norma ou princípio constitucional que considera violado. Em cumprimento deste despacho, o recorrente veio dizer o seguinte (fls. 306):
'Os artigos 251º a 257º, 283º a 287º, 377º, do Código de Justiça Militar violam o preceituado nos n.º s 2 e 3 do artigo 219º da Constituição da República Portuguesa. O artigo 427º, alínea e), do Código de Justiça Militar, viola os artigos 110º e
202º, n.º 2, e 219º, n.º 2, e o princípio da independência da Constituição da República Portuguesa.'
12. Nas alegações apresentadas junto do Tribunal Constitucional (fls. 321 e seguintes), o recorrente concluiu do seguinte modo:
'1. A dedução do libelo por um oficial superior do Exército, na qualidade de promotor de justiça, e não por um magistrado do Ministério Público, viola o disposto no artigo 219º da Constituição da República Portuguesa, com o texto revisto pela Lei Constitucional nº 1/97, de 20 de Setembro, e, consequentemente, o artigo 377º do Código de Justiça Militar é inconstitucional.
2. A intervenção do promotor de justiça nas audiências e em demais diligências processuais previstas no Código de Justiça Militar viola o disposto no artigo
219º da Constituição da República Portuguesa e, consequentemente, são inconstitucionais os artigos 251º a 257º e 283º a 288º do citado Código.
3. O artigo 427º, alínea e), do Código de Justiça Militar, a ser interpretado como permitindo ao Chefe de Estado Maior do Exército e ao Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, ou a outro órgão das Forças Armadas, darem ordem ao promotor de justiça no exercício das suas funções, não pode deixar de se considerar inconstitucional por violar os artigos 2º, 110º, 202º, nº 2, e 219º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa.' O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional contra-alegou (fls. 333 e seguintes), tendo sustentado que, relativamente à questão da inconstitucionalidade da norma constante do artigo 427º, alínea e), do Código de Justiça Militar, não deveria conhecer-se do objecto do recurso,
'por o Supremo Tribunal Militar ter considerado que, no caso, nem interessa ponderar se a suspensão da execução da pena é ou não legalmente admissível em processo castrense, uma vez que o tipo e a gravidade do crime cometido, a intensidade do dolo, as necessidades de prevenção e o grau de culpa do agente afastam a possibilidade de se considerar que a simples censura do facto e a ameaça de pena são suficientes como adequada sanção para a conduta do réu recorrente'. Relativamente à questão da inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 251º a 257º, 377º e 283º a 288º, o representante do Ministério Público concluiu em sentido negativo, pois que, 'enquanto se mantiverem em funções os tribunais militares, caberá ao Promotor de Justiça no exercício da acção penal nos processos criminais militares funções de Ministério Público'. Atenta a questão prévia de não conhecimento (parcial) do recurso suscitada pelo Ministério Público, foi ordenada, por despacho de fls. 342, a notificação do recorrente para responder, querendo, no prazo legal. O recorrente respondeu (fls. 344), sustentando que a questão prévia não devia ser atendida, pois que se o promotor de justiça não tivesse que obedecer à ordem do superior hierárquico, nos termos do artigo 427º, alínea e), do Código de Justiça Militar, 'não tinha interposto o recurso, porque o intentou sem qualquer motivação, e o Supremo Tribunal Militar não tinha tido ocasião de o apreciar, considerar, concluir e decidir pela não suspensão da execução da pena'. II
13. Analisar-se-á em primeiro lugar a questão prévia suscitada pelo Ministério Público, relativa à apreciação da norma constante do artigo 427º, alínea e), do Código de Justiça Militar. Sustenta o Ministério Público que, quanto a tal norma, não deve conhecer-se do objecto do recurso, pois que o Supremo Tribunal Militar considerou que as circunstâncias da infracção afastavam a possibilidade da suspensão da execução da pena e, como tal, não teria sequer interesse ponderar se este instituto era ou não admissível em processo castrense. Basicamente, pois, o Ministério Público alega a falta de interesse processual no conhecimento do objecto do recurso, no que se refere à norma do artigo 427º, alínea e), do Código de Justiça Militar. Quanto a este aspecto, a razão está do lado do recorrente, isto é, que tem utilidade a apreciação dessa norma. Efectivamente, a questão prévia suscitada pelo Ministério Público só seria pertinente se o recorrente pretendesse a apreciação da constitucionalidade da interpretação normativa que considera inadmissível a suspensão da execução da pena em processo castrense. Mas não é essa a pretensão do recorrente: o recorrente pretende a apreciação de uma questão completamente diferente e anterior, que é a da conformidade constitucional da norma – a do artigo 427º, alínea e), do Código de Justiça Militar – que torna obrigatória para o promotor de justiça a interposição de um recurso, caso o superior hierárquico lho ordene. E a resolução de tal questão pelo Tribunal Constitucional é naturalmente susceptível de se repercutir no sentido da decisão recorrida, na medida em que, se se concluir que tal norma é inconstitucional, conclui-se igualmente que o Supremo Tribunal Militar não podia ter-se nela fundado para receber o recurso interposto pelo promotor de justiça. Verifica-se, pois, o pressuposto do interesse processual, no que toca à apreciação da norma constante do artigo 427º, alínea e), do Código de Justiça Militar.
14. Passando agora ao conhecimento do objecto do recurso, são três as questões colocadas pelo recorrente no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional: a) a de saber se é inconstitucional (nomeadamente, por violação do artigo 219º da Constituição) o artigo 377º do Código de Justiça Militar, que prevê a dedução do libelo por um oficial superior do Exército, na qualidade de promotor de justiça, e não por um magistrado do Ministério Público; b) a de saber se são inconstitucionais (nomeadamente, por violação do artigo 219º da Constituição) os artigos 251º a 257º e 283º a 287º do Código de Justiça Militar, que prevêem a intervenção do promotor de justiça nas audiências de julgamento e em demais diligências processuais previstas no Código de Justiça Militar; c) a de saber se é inconstitucional (nomeadamente, por violação dos artigos 2º, 110º, 202º, n.º 2, e 219º, n.º 2, da Constituição) o artigo 427º, alínea e), do Código de Justiça Militar, interpretado no sentido de permitir a um órgão das Forças Armadas dar ordem ao promotor de justiça no exercício das suas funções. Nas alegações para o Tribunal Constitucional o recorrente requer ainda a apreciação da norma constante do artigo 288º do Código de Justiça Militar. Todavia, como tal preceito não é referido no requerimento de interposição do recurso (fls. 269) e nas alegações não pode alargar-se o respectivo objecto, não se conhecerá da norma correspondente. As duas primeiras questões (supra, a) e b)) serão tratadas em simultâneo, já que essencialmente se reduzem a uma só: a de saber se é inconstitucional a atribuição à promotoria de justiça do exercício da acção penal, no âmbito da jurisdição militar. A terceira questão (supra, c)) assume autonomia e, por isso, será analisada em separado: com efeito, mesmo que se conclua não ser inconstitucional o cometimento à promotoria de justiça do exercício da acção penal, pode suceder que o seja a obrigatoriedade de um promotor de justiça interpor um recurso, quando receba ordens do superior hierárquico nesse sentido.
15. Comecemos então pela análise das duas primeiras questões assinaladas.
15.1. O Código de Justiça Militar, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 141/77, de 9 de Abril, regula, nos seus artigos 251º a 257º, a promotoria de justiça que funciona junto de cada tribunal militar de instância. A promotoria de justiça é, nos termos do artigo 251º, composta por um promotor de justiça e, eventualmente, por um ou mais adjuntos do promotor de justiça. O promotor de justiça é um oficial superior dos quadros permanentes do respectivo ramo das forças armadas, na situação do activo (artigo 252º, n.º 1), regulando os artigos 252º, n.º 2, 253º e 257º a respectiva nomeação e comissão de serviço. O artigo 254º, por sua vez, determina que os promotores de justiça exercem funções de Ministério Público perante os tribunais militares, incumbindo-lhes nomeadamente intervir nos processos criminais, requerendo neles e promovendo quanto for de justiça. Os artigos 255º, 256º e 257º regulam, respectivamente, a substituição do promotor de justiça nas suas faltas e impedimentos, e os adjuntos e assessores do promotor de justiça. Nos artigos 283º a 287º, o Código de Justiça Militar regula a promotoria de justiça que funciona junto do Supremo Tribunal Militar. O artigo 283º, n.º 1, determina que o promotor de justiça é um oficial superior dos quadros permanentes de qualquer ramo das forças armadas, na situação do activo, nomeado por escolha, através de portaria conjunta do Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas e do Chefe do Estado-Maior respectivo. À nomeação se refere ainda o artigo 283º, n.º 2, e o artigo 284º à comissão de serviço. O artigo 285º regula as funções do promotor de justiça perante o Supremo Tribunal Militar em termos mais amplos do que o já mencionado artigo 254º. Assim, dispõem as alíneas a) e b) desse artigo que ao promotor incumbe 'velar pela fiel observância das leis e por que as regras da competência e da ordem das jurisdições sejam guardadas', bem como 'requerer e promover quanto for a bem da justiça e da disciplina em todos os processos que subirem ao tribunal'. Os artigos 286º e 287º regulam a substituição e os adjuntos do promotor de justiça. Finalmente, no artigo 377º, o Código de Justiça Militar determina que, 'recebido o processo com a ordem para instaurar a acusação, o promotor de justiça, depois de identificar o réu, deduzirá nos autos, por artigos, o libelo', do qual deverão constar determinados elementos (os constantes do n.º 2 daquele preceito). Regula ainda o mencionado preceito o número máximo de testemunhas a arrolar (cfr. n.º 3) e o prazo para a dedução do libelo (cfr. n.º 4).
15.2. A apreciação da conformidade constitucional dos mencionados preceitos pressupõe a análise do artigo 197º da Lei Constitucional n.º 1/97. De acordo com este preceito, 'os tribunais militares, aplicando as disposições legais vigentes, permanecem em funções até à data da entrada em vigor da legislação que regulamenta o disposto no n.º 3 do artigo 211º da Constituição'.
No acórdão do Tribunal Constitucional n.º 392/99, de 23 de Junho
(Diário da República, II, n.º 261, de 9 de Novembro de 1999, p. 16870 ss), afirma-se que do mencionado preceito decorre que 'se mantém transitoriamente inalterada a competência daqueles tribunais [militares] até à data da entrada em vigor da legislação que vier regulamentar a composição dos tribunais judiciais que julguem crimes de natureza estritamente militar'. Esse é, segundo a orientação do mencionado acórdão, 'o sentido da permanência em funções dos tribunais militares, aplicando as disposições legais vigentes, o que só pode significar a manutenção do Código de Justiça Militar (em tudo o que não fosse já inconstitucional, face à versão anterior da Lei Fundamental)'.
O artigo 197º da Lei Constitucional n.º 1/97, portanto, manteve transitoriamente inalterada a competência dos tribunais militares e, bem assim, manteve transitoriamente em vigor as normas do Código de Justiça Militar que não padecessem já de inconstitucionalidade. Esse o alcance inequívoco do preceito.
Porém, se é inequívoca a transitória manutenção da competência dos tribunais militares, também dúvidas não suscita a transitória manutenção da própria organização judiciária militar. Por outras palavras, quando no artigo
197º da Lei Constitucional n.º 1/97 se diz que os tribunais militares permanecem em funções, tal expressão significa a manutenção, não apenas da competência antes atribuída aos tribunais militares (para o julgamento dos crimes essencialmente militares), mas também a manutenção da organização judiciária militar.
A ilustração desta conclusão implica uma breve referência ao tratamento dado pela Constituição, nas suas várias versões, aos tribunais militares.
15.3. À competência dos tribunais militares fazia a Constituição referência logo na sua versão originária. Aí se dizia, no artigo 218º, que 'os tribunais militares têm competência para o julgamento, em matéria criminal, dos crimes essencialmente militares' (n.º 1), e que 'a lei, por motivo relevante, poderá incluir na jurisdição dos tribunais militares crimes dolosos equiparáveis aos previstos no n.º 1' (n.º 2). O artigo 293º da Constituição, inserido nas disposições finais e transitórias, impunha ainda a revisão do Código de Justiça Militar e legislação complementar. O referido artigo 218º da Constituição foi alterado pela revisão de 1982, nele passando a dizer-se que 'compete aos tribunais militares o julgamento dos crimes essencialmente militares' (n.º 1), que 'a lei, por motivo relevante, poderá incluir na jurisdição dos tribunais militares crimes dolosos equiparáveis aos previstos no n.º 1' (n.º 2) e que 'a lei pode atribuir aos tribunais militares competência para a aplicação de medidas disciplinares' (n.º 3). Por outro lado, o artigo 212º passou a referir expressamente os tribunais militares nas categorias de tribunais e o artigo 214º, n.º 4, ao proibir a existência de tribunais com competência exclusiva para o julgamento de certas categorias de crimes, ressalvou os tribunais militares. Com a revisão de 1989, a norma relativa aos tribunais militares, constante do anterior artigo 218º, passou a ter a sua sede no artigo 215º da Constituição. A revisão de 1997 alterou várias disposições da Constituição relacionadas com a jurisdição militar. Assim, por exemplo, a Constituição: deixou de referir os tribunais militares nas categorias de tribunais (constantes do actual artigo
209º); passou a dispor, no artigo 211º, n.º 3, que 'da composição dos tribunais de qualquer instância que julguem crimes de natureza estritamente militar fazem parte um ou mais juízes militares, nos termos da lei'; no artigo 213º, determinou que 'durante a vigência do estado de guerra serão constituídos tribunais militares com competência para o julgamento de crimes de natureza estritamente militar'; e, no artigo 219º, n.º 3, impôs formas especiais de assessoria junto do Ministério Público nos casos dos crimes estritamente militares, a estabelecer por lei. Na síntese de António de Araújo ('A jurisdição militar (do Conselho de Guerra à revisão constitucional de 1997)', in AAVV, O Direito da Defesa Nacional e das Forças Armadas, Lisboa, 2000, p. 529 ss. (568)), 'realizou-se [com a revisão de
1997] uma extinção 'cautelosa' dos tribunais militares, visto que: a) circunscreve-se apenas ao tempo de paz e não é, como pretendiam alguns projectos de revisão, uma extinção total, para todas as circunstâncias (cfr. art. 213º); b) a extinção dos tribunais militares foi acompanhada da previsão de juízes militares nos tribunais de qualquer instância que julguem crimes estritamente militares (art. 211º, n.º 3); c) a extinção dos tribunais militares foi acompanhada da previsão de formas especiais de assessoria junto do Ministério Público nos casos de crimes estritamente militares (art. 219º, n.º 3); d) a extinção dos tribunais militares foi acompanhada de uma norma transitória, destinada a impedir hiatos ou vazios legais. Esta norma transitória consta do acima referido artigo 197º da Lei Constitucional n.º 1/97.
15.4. A breve referência que se fez ao tratamento dado pela Constituição, nas suas várias versões, aos tribunais militares, obriga a concluir, tal como o fazem Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, p. 807), que, no que se refere a tais tribunais, a Constituição apenas regulou a respectiva competência, sendo 'totalmente omissa quanto à sua estrutura, à sua organização, ao seu funcionamento, ao regime de designação dos respectivos juízes, etc., competindo a definição de tais matérias
à lei, observados os princípios constitucionais pertinentes'. Mas, se é verdade que a Constituição nunca regulou estes aspectos relativos aos tribunais militares, certamente que sempre pressupôs que tais aspectos estivessem regulados na lei, sob pena de os tribunais militares não poderem funcionar. Assim, quando no artigo 197º da Lei Constitucional n.º 1/97 se refere que os tribunais militares permanecem em funções até à data da entrada em vigor da legislação que regulamenta o disposto no n.º 3 do artigo 211º da Constituição, pretendeu-se salvaguardar, não só a competência dos tribunais militares, mas a própria organização judiciária militar. Com efeito, sem a manutenção da organização judiciária até à data existente, seria necessária a criação de um regime transitório de organização judiciária militar, ao qual aquela Lei Constitucional não alude e que certamente não pretende, dado que a natural demora na sua aprovação provocaria a imediata paralisação dos tribunais militares. Não quer com isto evidentemente dizer-se que o artigo 197º da Lei Constitucional n.º 1/97 tenha o alcance de sancionar todos os preceitos do Código de Justiça Militar. Todavia, sob pena de os tribunais militares não se poderem manter transitoriamente em funcionamento, aplicando o Código de Justiça Militar, forçoso é concluir que aquele preceito ressalvou as especificidades da organização judiciária militar.
15.5. Problema que se pode colocar é o de saber se uma dessas especificidades
é a promotoria de justiça, isto é, se a intenção de manutenção transitória da organização judiciária militar, expressa no artigo 197º da Lei Constitucional n.º 1/97, significa também a intenção de manutenção transitória da promotoria de justiça. Para responder a esta questão é necessário ter em conta a inserção sistemática das normas relativas à promotoria de justiça no Código de Justiça Militar e diplomas avulsos anteriores à data da aprovação daquela Lei Constitucional, ou seja, é necessário verificar se esse Código e esses diplomas tratavam da promotoria de justiça a propósito da organização judiciária militar. Se se concluir afirmativamente, existem razões para supor que o artigo 197º da Lei Constitucional n.º 1/97, ao manter transitoriamente a organização judiciária militar, manteve transitoriamente também a promotoria de justiça. Ora, nos termos dos artigos 210º e 213º do Código de Justiça Militar, a organização judiciária militar em tempo de paz compreende, designadamente, a existência de tribunais militares, que são os tribunais militares de instância e o Supremo Tribunal Militar. E quando regula, nos artigos 214º a 216º, o exercício de funções nos tribunais militares, estabelecendo incompatibilidades e impedimentos para o efeito, esse Código trata em simultâneo dos juízes militares e dos promotores de justiça. Por outro lado, o artigo 232º do Código de Justiça Militar, depois de regular a constituição dos tribunais militares (n.º 1), estabelece que junto de cada um desses tribunais funciona uma promotoria de justiça (n.º 2). Os artigos 251º a 257º, 272º e 282º a 287º reafirmam a ligação orgânica das promotorias de justiça aos tribunais militares. O panorama nos diplomas avulsos não é muito diverso, no que toca à inserção das promotorias de justiça na organização judiciária militar. Assim, o Decreto-Lei n.º 145-A/77, de 9 de Abril, que regula a constituição dos tribunais militares territoriais, trata simultaneamente dos cargos de juiz militar e de promotor de justiça. Também o Decreto-Lei n.º 319-A/77, de 5 de Agosto, que regula em simultâneo o desempenho de funções de juiz militar e de promotor de justiça, considera que tais funções são exercidas nos tribunais militares. O Decreto-Lei n.º 28/78, de 27 de Janeiro, a propósito do funcionamento dos tribunais militares de instância, autoriza a criação de juízes e promotores auxiliares, implicitamente considerando, portanto, que estas pessoas exercem as suas funções nos tribunais militares. Finalmente, o Decreto-Lei n.º 224/78, de 4 de Agosto, a propósito do Tribunal Territorial de Macau, trata simultaneamente das funções e nomeação dos juízes militares e promotor de justiça.
15.6. Pode, pois, concluir-se com segurança que o artigo 197º da Lei Constitucional n.º 1/97, ao referir a permanência em funções dos tribunais militares, pretendeu salvaguardar transitoriamente, não apenas a competência dos tribunais militares, mas também os vários serviços e entidades que exerciam, até
à data, funções junto dos tribunais militares. Todos eles eram necessários para o funcionamento dos tribunais militares, que se pretendeu manter transitoriamente. Tal não significa, obviamente, que o tribunal militar e o promotor de justiça não sejam sujeitos processuais distintos. Mas desta diferenciação não pode retirar-se a inaplicabilidade do artigo 197º daquela Lei Constitucional às promotorias de justiça: esta inferência (que o recorrente parece fazer, nas suas alegações para este Tribunal) parte do errado pressuposto de que bastaria a manutenção da competência e da composição (no que se refere aos juízes) dos tribunais militares, para manter em funcionamento os tribunais militares. Ora não é assim, já que a abolição das outras especificidades da organização judiciária militar existente redundaria na criação de uma nova forma de funcionamento dos tribunais militares, situação não querida pelo referido artigo
197º. O artigo 219º, n.º 1, da Constituição, ao cometer o exercício da acção penal ao Ministério Público, não significa assim a atribuição a esta entidade do monopólio da acção penal junto dos tribunais militares, enquanto estes permaneçam em funcionamento. Efectivamente, mantendo o artigo 197º da Lei Constitucional n.º 1/97 transitoriamente em funções as promotorias de justiça – na medida em que, como se disse, mantém em funções os próprios tribunais militares –, forçoso é concluir que, no campo da justiça militar, a legitimidade de tais promotorias para o exercício da acção penal tem de continuar a ser reconhecida. Os artigos 251º a 257º, 283º a 287º e 377º do Código de Justiça Militar – ao preverem a intervenção do promotor de justiça nas audiências de julgamento e em demais diligências processuais previstas no Código de Justiça Militar, e ao preverem a dedução do libelo pelo promotor de justiça – não violam, pois, o artigo 219º da Constituição, que tem de ser interpretado em conjugação com o artigo 197º da Lei Constitucional n.º 1/97.
16. Apreciar-se-á agora a norma constante do artigo 427º, alínea e), do Código de Justiça Militar, que torna obrigatória a interposição do recurso por parte do promotor de justiça quando o superior hierárquico lho ordene.
16.1. Invoca o recorrente a violação dos artigos 2º, 110º, 202º, n.º 2, e
219º, n.º 2, da Constituição. A invocação do artigo 2º parece resumir-se à invocação da violação do princípio da separação de poderes. O artigo 110º enumera os órgãos de soberania. O artigo 202º, n.º 2, densifica o conceito de administração de justiça, que incumbe apenas aos tribunais. Finalmente, o artigo
219º, n.º 2, determina que o Ministério Público goza de estatuto próprio e de autonomia, nos termos da lei. Os preceitos invocados pelo recorrente não são, porém, pertinentes para a resolução da questão em análise. Efectivamente, a partir do momento em que o artigo 197º da Lei Constitucional n.º 1/97 salvaguarda a existência das promotorias de justiça, salvaguarda a sua própria organização interna. Essa organização interna é obviamente diversa da organização do próprio Ministério Público, pelo que não pode entender-se que a ordem de interposição de um recurso dada por um superior hierárquico ao promotor de justiça equivale a uma ordem dada por um órgão das forças armadas ao próprio Ministério Público. Dito de outro modo, ao ordenar ao promotor de justiça que interponha um recurso, o respectivo superior hierárquico não está a interferir na esfera de competências do Ministério Público porque, embora o promotor de justiça assuma as vestes de Ministério Público junto dos tribunais militares, não se insere evidentemente no Ministério Público, integrando-se numa hierarquia própria. Por isso, tal ordem não coloca qualquer problema de constitucionalidade face ao princípio da separação de poderes, ao princípio da reserva da função jurisdicional aos tribunais, ou ao estatuto da autonomia do Ministério Público.
16.2. O que interessa questionar é se tal ordem pode, de algum modo, violar as garantias de defesa do arguido, a que alude a Constituição no seu artigo 32º, n.º 1. Por outras palavras, verá o arguido em processo penal militar de algum modo diminuídas as suas garantias, em virtude de a entidade que interpõe o recurso (o promotor de justiça) o fazer por ordem de um superior hierárquico? Quanto a este aspecto, impõe-se uma resposta negativa. Na verdade, o recurso será apreciado por um tribunal (o Supremo Tribunal Militar), sendo certo que o próprio tribunal recorrido admitiu até que o promotor de justiça podia recusar-se a formular o requerimento de interposição do recurso se entendesse haver inconstitucionalidade da norma que o impõe, incompetência da entidade que dá a ordem ou ilegitimidade desta (cfr. acórdão de fls. 216 e seguintes). As funções de promotor de justiça são ainda rodeadas de cautelas de imparcialidade, nos termos dos artigos 215º e 216º do Código de Justiça Militar. Não se vendo que a ordem prevista no artigo 427º, alínea e), do Código de Justiça Militar possa, de algum modo, violar as garantias de defesa do arguido, resta concluir que ela é um natural reflexo de uma especificidade da organização judiciária militar transitoriamente subsistente: a promotoria de justiça. Organização judiciária essa que, nas palavras de Figueiredo Dias (in Justiça Militar (Colóquio Parlamentar), Lisboa, 1995, p. 21), decorre do 'carácter profundamente específico da instituição que lhe dá base, dos problemas de que ela cura e, sobretudo, da importância decisiva que assume na defesa das condições de todo o tipo – políticas, sociais, económicas e culturais – indispensáveis à subsistência e ao desenvolvimento das livres condições de vida comunitária'.
III
17. Nestes termos e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide: a) Não julgar inconstitucional o artigo 377º do Código de Justiça Militar, que prevê a dedução do libelo por um oficial superior do Exército, na qualidade de promotor de justiça, e não por um magistrado do Ministério Público; b) Não julgar inconstitucionais os artigos 251º a 257º e 283º a 287º do Código de Justiça Militar, que prevêem a intervenção do promotor de justiça nas audiências de julgamento e em demais diligências processuais previstas no Código de Justiça Militar; c) Não julgar inconstitucional o artigo 427º, alínea e), do Código de Justiça Militar, interpretado no sentido de permitir a um órgão das Forças Armadas dar ordem ao promotor de justiça no exercício das suas funções; d) Em consequência, negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida, no que às questões de constitucionalidade suscitadas e apreciadas diz respeito.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta, a cobrar nas condições previstas no artigo 54º do Decreto-Lei nº
387-B/87, de 29 de Dezembro.
Lisboa, 13 de Fevereiro de 2001 Maria Helena Brito Vítor Nunes de Almeida Artur Maurício Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa