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Proc. n.º 643/03
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A. e mulher propuseram, no Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, acção declarativa com processo comum ordinário contra B. e outros, pedindo que os réus fossem solidariamente condenados a pagar aos autores a quantia de
3.556.740$00, acrescida de juros vincendos à taxa legal de 10%, desde a citação até ao integral pagamento.
Alegaram os autores, entre o mais, terem pago uma livrança que todos (autores e réus) haviam avalizado a favor do subscritor da livrança (C.) e não terem conseguido a cobrança coerciva da importância paga: como tal, seriam titulares de um direito de regresso, de harmonia com as regras das obrigações solidárias, contra os outros co-avalistas.
Os réus contestaram (fls. 59 e seguintes), tendo nomeadamente alegado que o facto de serem avalistas do subscritor da livrança não significava a assunção de uma obrigação perante os demais co-avalistas. Formularam ainda pedido reconvencional.
Foi deduzida réplica (fls. 93 e seguintes).
2. Por despacho saneador de fls. 122 e seguintes decidiu-se condenar cada um dos Réus a pagar ¼ a quantia de Esc. 3.556.740$00, acrescida dos juros legais desde a citação, com os seguintes fundamentos:
“[...] Pretendem os aqui Réus que o facto de serem avalistas, tal como os Autores, da firma aceitante, não os responsabiliza pelo pagamento perante os co-avalistas que hajam pago a dívida cambiária e que não é aplicável, às relações entre os mesmos avalistas, o regime da fiança civil, designadamente o disposto no art.
650º do CCivil. O avalista, ao prestar o seu aval em favor do subscritor de uma livrança, cauciona o pagamento por parte deste último, assumindo uma obrigação cambiaria idêntica à do avalizado (cfr. arts. 30º e 32º da LULL, aplicável às livranças ex vi art. 77º do mesmo diploma). Portanto, uma vez paga a livrança pelo avalista do subscritor, os direitos que ele adquire são, no quadro do direito cambiário, os que resultam do disposto no terceiro parágrafo do mencionado art. 32º da LULL: o avalista fica sub-rogado nos direitos emergentes da livrança contra a pessoa a favor de quem foi dado o aval e contra os obrigados para com esta em virtude da livrança, pois que a prestação de um aval em favor do subscritor da livrança importa a assunção de uma obrigação cambiária face ao tomador ou à pessoa a quem este haja transmitido cambiariamente a livrança, até à data do vencimento. Entretanto, a maior parte da nossa jurisprudência e doutrina tem admitido que a assinatura de alguém numa letra pode traduzir a vontade de, além de prestar aval, querer garantir a obrigação subjacente por fiança [...]. Se isto é assim no domínio das relações cambiárias (desde que, em nosso entender, haja elementos para indagar da vontade real no sentido de prestar fiança [...]), ainda mais se justifica que, em situações de perfeita similitude como o são as relações não cambiárias entre co-avalistas, se recorra a um regime que preenche uma lacuna, assegurando a posição daquele que paga a totalidade ou uma grande parte da dívida garantida. Depois de excutidos todos os bens do subscritor do titulo (ou quando o sacador seja declarado falido) e depois de ser judicialmente demandado para o pagamento da dívida, pode o avalista exercer o direito de regresso, de harmonia com as regras das obrigações solidárias, contra os outros fiadores (co-avalistas), já que fica sub-rogado nos direitos do credor (art. 650º-1 do CCivil).
É que, além da acção cambiária, o avalista que paga uma livrança, tem ainda acção não cambiária contra os outros avalistas da mesma pessoa, para com eles repartir a parte não cobrada dos devedores principais [...]. A aplicação do regime da fiança impõe-se em todos aqueles casos em que não haja colisão com a disciplina própria das relações cambiárias, colisão que manifestamente não existe nas relações entre co-avalistas. E não sendo cambiárias as relações entre eles, mas apenas de direito comum com uma função de garantia, deve aplicar-se as normas da fiança. Portanto, e para concluir, os aqui Réus, enquanto co-avalistas, devem ser condenados a pagar a sua quota parte na dívida titulada pela livrança.
[...].”
3. Inconformados com o despacho saneador, na parte em que apreciou o pedido principal, B. e outros dele recorreram para o Tribunal da Relação de Coimbra (fls. 128), tendo nas alegações respectivas (fls. 160 e seguintes) concluído do seguinte modo:
“1ª- Uma vez paga a livrança pelo avalista do subscritor, os direitos que ele adquire são apenas os que resultam do disposto no terceiro parágrafo do mencionado art. 32º da LULL.
2ª- Nenhum vínculo cambiário se estabelece entre os avalistas de um mesmo subscritor de uma livrança.
3ª- Daí que a única entidade cambiariamente obrigada perante os apelados seja a C., e que só desta última possam aqueles obter, por via de regresso, o reembolso daquilo que pagaram ao banco D..
4ª- A existência de relações não cambiárias entre os avalistas de um mesmo subscritor de uma livrança não se presume, mas antes tem de resultar da matéria de facto alegada e provada nos autos.
5ª- A prova, feita nos autos, de que foi prestado aval a favor da C., quer pelos apelantes quer pelos apelados, numa livrança por esta subscrita em que tomador era o banco D., é manifestamente insuficiente para que se possa concluir pela existência de quaisquer outras relações entre as partes, às quais devesse aplicar-se o regime jurídico da fiança.
6ª- A pura e simples subscrição da livrança como avalista não é elemento de prova suficiente que permita sustentar a convolação da obrigação assumida pelo avalista numa fiança.
7ª- A fiança e o aval são figuras jurídicas distintas e sujeitas a regimes jurídicos diversos, os quais são inspirados por interesses que não lhes são comuns e visam a satisfação de necessidades específicas, pelo que entre os institutos em causa não existe a analogia invocada no douto despacho saneador.
8ª- Ainda que tal similitude existisse, nem por isso se poderia dar como verificada no regime jurídico do aval uma lacuna que justificasse a aplicação à situação dos autos da norma do art. 650º, nº 1, do Código Civil.
9ª- Mesmo que subjacente à prestação de um aval pudesse estar a assunção de uma obrigação como fiador, certo é que isso nunca se poderia dar como verificado na situação dos autos, porquanto o art. 628º, nº 1, do Código Civil, exige que a vontade de prestar fiança seja declarada de modo expresso e pela forma exigida para a obrigação principal.
10ª- O douto despacho saneador recorrido violou, pois, por errada interpretação e aplicação, a norma do art. 650º, nº 1, do Código Civil, e devia ter feito aplicação da norma do art. 32º, 3º parágrafo, da LULL.”
Os recorridos contra-alegaram (fls. 177 e seguintes), sustentando que ao recurso devia ser negado provimento.
4. Entretanto, foi proferida sentença, julgando improcedente o pedido reconvencional (fls. 254 e seguintes).
Dela também interpuseram recurso B. e outros (fls. 263 e seguintes), tendo havido alegações (fls. 266 e seguintes) e contra-alegações (fls. 287 e seguintes).
5. Por acórdão de 19 de Novembro de 2002 (fls. 318 e seguintes), o Tribunal da Relação de Coimbra negou provimento a ambos os recursos, podendo ler-se no respectivo texto, no que ao primeiro recurso diz respeito, o seguinte:
“[...] No saneador/sentença decidiu-se que os réus, enquanto co-avalistas, devem ser condenados a pagar a sua quota parte na dívida titulada pela livrança, uma vez que o avalista que paga uma livrança tem uma acção não cambiária contra os outros avalistas da mesma pessoa, para com eles repartir a parte não cobrada do devedor principal, impondo-se a aplicação do regime da fiança, visto não serem cambiárias as relações entre eles, mas apenas de direito comum com uma função de garantia. Posição diferente têm os recorrentes, como vimos, segundo os quais, uma vez paga a livrança pelo avalista do subscritor, os direitos que ele adquire são apenas os que resultam do disposto no § 3° do art° 32° da LULL, não sendo aplicável ao caso o regime da fiança. Vejamos. Dispõe o referido § 3° do art° 32° da LULL que «se o dador de aval paga a letra, fica sub-rogado nos direitos emergentes da letra a favor de quem foi dado o aval e contra os obrigados para com esta em virtude da letra». Esta disposição é aplicável à livrança por força do disposto no artº 77° da LULL. Infere-se daquela norma que, quando um avalista paga a obrigação incorporada no título, apenas fica com o direito de regresso sobre a subscritora desse título, que foi a pessoa por ele avalizada. Tal norma regula, portanto, apenas as relações entre o avalista e a pessoa a favor de quem foi dado o aval. Trata-se de um vínculo estritamente cambiário, que não é susceptível de ser estabelecido entre co-avalistas (cfr. Acs. do S.T.J. de 03/04/1991, AJ n° 18, e de 07/07/1999, CJ, T3-14). Entre estes (co-avalistas) apenas pode haver relações de direito comum (cfr. a Consideração 75ª do Relatório da Conferência de Genebra, segundo a qual «...não havia entre co-avalistas relações cambiárias, mas somente de direito comum que uma lei uniforme sobre letras não tinha que regular»). Segundo o Ac. do S.T.J. de 07/07/1999, supra citado, e que, por com ele concordarmos, aqui seguimos de perto, estas relações de direito comum serão reguladas, como o impõe a manifesta analogia das situações, pelo regime jurídico da fiança.
É de aplicar, pois, havendo pagamento por um ou alguns dos co-avalistas, o disposto no artº 650° do Código Civil. O n° 1 deste artigo estipula que, havendo vários fiadores, o que tiver pago fica sub-rogado nos direitos do credor contra os outros fiadores, de harmonia com as regras das obrigações solidárias. Destas é de destacar o direito de regresso contra cada um deles na parte que lhes competir, sendo de presumir que todos comparticipam em partes iguais na dívida comum, de acordo com o artº 516° do Código Civil. Importa referir, também, o n° 3 do citado artº 650°, segundo o qual, se o fiador cumprir voluntariamente a obrigação, o seu regresso contra os outros fiadores só
é admitido depois de excutidos todos os bens do devedor. No presente caso, os autores, na qualidade de co-avalistas, pagaram a dívida titulada pela livrança, bem como os juros legais, despesas com o protesto, aponte, portes e impostos. Por isso, ficaram sub-rogados nos direitos do credor (banco D.). Posteriormente, intentaram uma execução contra a subscritora da livrança (C.), mas não foi possível penhorar quaisquer bens, dado que já se havia excutido todo o seu património. Assim, ficaram eles, autores, com o direito de reclamar dos outros co-avalistas, em via de regresso, as quotas destes, no que aqueles pagaram a mais. Não merece, por isso, censura a decisão recorrida, que é de manter, improcedendo, consequentemente, o recurso.
[...].”
6. De novo inconformados, B. e outros recorreram de revista deste acórdão para o Supremo Tribunal de Justiça (fls. 333), tendo nas alegações respectivas (fls. 338 e seguintes) formulado as seguintes conclusões:
“1ª- Uma vez paga a livrança pelo avalista do subscritor, os direitos que ele adquire com base na relação cambiária são apenas os que resultam do disposto no terceiro parágrafo do mencionado art. 32° da LULL.
2ª- Nenhum vínculo cambiário se estabelece entre os avalistas de um mesmo subscritor de uma livrança.
3. - Daí que a única entidade cambiariamente obrigada perante os Recorridos seja a C., e que só desta última possam aqueles obter, por via de regresso, o reembolso daquilo que pagaram ao banco D..
4ª- Podendo embora existir relações de direito comum entre dois co-avalistas, é também possível que essas relações faltem de todo em todo, como sucederá quando não haja por detrás de um dos avales (ou de ambos) uma qualquer «relação subjacente ou fundamental» (designadamente um negócio extra-cambiário de fiança).
5ª- A existência de relações não cambiárias (de direito comum) entre os avalistas de um mesmo subscritor de uma livrança não se presume, mas antes tem de resultar da matéria de facto alegada e provada nos autos.
6ª- A prova, feita nos autos, de que foi prestado aval a favor da C., quer pelos Recorrentes quer pelos Recorridos, numa livrança por esta subscrita em que tomador era o banco D., é manifestamente insuficiente para que se possa concluir pela existência de quaisquer outras relações entre as partes, às quais devesse aplicar-se o regime jurídico da fiança.
7ª- A pura e simples subscrição da livrança como avalista não é elemento de prova suficiente que permita sustentar a convolação da obrigação assumida pelo avalista numa fiança.
8ª- A fiança e o aval são figuras jurídicas distintas e sujeitas a regimes jurídicos diversos, os quais são inspirados por interesses que não lhes são comuns e visam a satisfação de necessidades específicas, pelo que entre os institutos em causa não existe a analogia afirmada no douto acórdão recorrido.
9ª- Ainda que tal similitude existisse, nem por isso se poderia dar como verificada no regime jurídico do aval uma lacuna que justificasse a aplicação à situação dos autos da norma do art. 650°, nº 1, do Código Civil.
10ª- Mesmo que subjacente à prestação de um aval pudesse estar a assunção de uma obrigação como fiador, certo é que isso nunca se poderia dar como verificado na situação dos autos, porquanto o art. 628°, nº 1, do Código Civil, exige que a vontade de prestar fiança seja declarada de modo expresso e pela forma exigida para a obrigação principal.
11ª- O douto Acórdão recorrido violou, pois, por errada interpretação e aplicação, a norma do art. 650°, nº 1, do Código Civil, e devia ter feito aplicação da norma do art. 32°, 3° parágrafo, da LULL.
12ª- Ao julgar-se aplicável a norma do art. 650°, nº 1, do Código Civil, às relações entre co-avalistas, independentemente de estas terem por detrás um negócio extra-cambiário, seja de fiança seja de qualquer outra natureza, a referida norma foi aplicada com um sentido inconstitucional porque ofensivo dos princípios (e dos direitos) fundamentais da autonomia privada e da liberdade contratual consagrados na lei civil (expressos, designadamente, no art. 405° do Cód. Civil) e acolhidos na Constituição por força da norma do art. 16°, nº 1, deste diploma.”
Os recorridos contra-alegaram (fls. 346 e seguintes), sustentando que devia negar-se provimento ao recurso.
7. Por acórdão de 24 de Junho de 2003 (fls. 368 e seguintes), o Supremo Tribunal de Justiça negou a revista, pelos seguintes fundamentos:
“[...] II - 1. Depreende-se das alegações e respectivas conclusões dos recorrentes que restringem o seu recurso à parte do acórdão que confirmou a decisão proferida no despacho saneador, isto é, à decisão que julgou procedente a acção. Mais daí resulta que, salvo uma alegada inconstitucionalidade, os recorrentes repetem todos os argumentos já aduzidos aquando do seu recurso de apelação. Ora, todas essas questões aí suscitadas foram devidamente apreciadas no acórdão ora impugnado, onde se demonstrou a manifesta falta de razão dos recorrentes. Sufragando-se inteiramente tal posição, diremos que a proficiente fundamentação do acórdão justifica cabalmente a legalidade da solução encontrada para a questão em apreço, fundamentação para que se remete, ao abrigo do disposto no n°
5 do artigo 713°, aplicável por força do artigo 726°, ambos do Código de Processo Civil. Aliás, no acórdão deste Tribunal de 07.07.1999 [...] – a que os recorrentes aludem para afirmar que nenhum vínculo cambiário se estabelece entre vários avalistas do mesmo subscritor –, decidiu-se precisamente que, havendo pagamento da livrança por um dos co-avalistas, fica este sub-rogado nos direitos do credor contra os restantes, em termos analógicos aos estabelecidos para o regime da fiança, acrescentando-se que resulta do n° 1 do artigo 650° do Código Civil que o fiador que pagou fica sub-rogado nos direitos do credor contra os outros fiadores, de harmonia com as regras das obrigações solidárias, das quais é de destacar o direito de regresso contra cada um deles na parte que lhes competir, sendo de presumir que todos comparticipavam em partes iguais na dívida comum – cfr. artigos 516° e 523° do citado Código. Daqui decorre inequivocamente uma solução contrária à defendida pelos ora recorrentes.
2. Alegam os recorrentes que, a julgar-se aplicável a norma do n° 1 do artigo
650° do Código Civil às relações entre co-avalistas, independentemente de estas terem por detrás um negócio extra-cambiário, seja de fiança, seja de qualquer outra natureza, então o acórdão recorrido aplicou a referida norma com um sentido desconforme com os princípios (e os direitos) fundamentais da autonomia privada e da liberdade contratual consagrados na lei civil (expressos, designadamente, no artigo 405° do Código Civil) e acolhidos na Constituição por força da norma do artigo 16°, n° 1, deste diploma. Segundo o citado n° 1 do artigo 16° da CRP, «Os direitos fundamentais consagrados na Constituição não excluem quaisquer outros constantes das leis e das regras aplicáveis de direito internacional». Não vislumbramos como pode este normativo constitucional ter algo a ver com a aplicação ao caso vertente do artigo 650°, n° 1, do Código Civil. Daí que não se possa descortinar aqui qualquer inconstitucionalidade. Dir-se-á ainda, porém, que os Réus, na sua contestação, nada alegaram no tocante
às relações entre os diversos co-avalistas, de forma a poderem afastar a sua responsabilidade perante os avalistas que pagaram o montante da livrança, ou seja, perante os aqui Autores. Por isso é que há que recorrer à presunção de que todos os avalistas comparticipam em partes iguais na dívida comum (cfr. citado artigo 516°), como se decidiu no acórdão deste Tribunal acima aludido, referenciado precisamente pelos recorrentes.
[...].”
8. B. e outros interpuseram então recurso deste acórdão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, nos seguintes termos (fls. 377):
“[...] A norma cuja inconstitucionalidade se pretende que o Tribunal aprecie é a do art. 650º do Código Civil, interpretado com um sentido que permita impor a um avalista a obrigação de pagar a outro avalista parte da quantia que este haja desembolsado a favor do credor da obrigação cambiária, sem que exista um negócio jurídico extra-cambiário entre eles, seja de fiança seja de qualquer outra natureza, no qual se funde tal imposição. Ao aplicar-se a norma do art. 650º do Código Civil com o sentido acima referido, consideram-se violados os princípios (e os direitos) fundamentais da autonomia privada e da liberdade contratual consagrados na lei civil (expressos, designadamente, no art. 405º do Código Civil) e acolhidos na Constituição por força da norma do art. 16º, nº 1, deste diploma. A questão da constitucionalidade foi suscitada pela Recorrente nas alegações do recurso de revista interposto do douto acórdão da Relação do Porto (cfr. também a conclusão 12ª dessas alegações).
[...].”
O recurso foi admitido, por despacho de fls. 380.
9. Nas alegações que produziram no Tribunal Constitucional (fls. 383 e seguintes), concluíram assim os recorrentes:
“a. A interpretação dada, in casu, ao n.º 1 do art.º 650º CC no sentido de este se aplicar a avalistas de uma mesma livrança é metodologicamente inadmissível porquanto, além de se não verificar preenchido o Tätbestand da fiança, não existe nem lacuna, nem igualdade jurídica entre a subrogação na fiança e na livrança que possibilitassem aplicação por integração. b. Além de metodologicamente inadmissível, tal interpretação viola directamente regras e princípios constitucionalmente garantidos, pelo que deve ser declarada a sua inconstitucionalidade. c. A referida interpretação viola o princípio da autonomia privada. Viola ainda o direito à liberdade contratual, o qual apesar de encontrar a sua mais fiel previsão no art.º 405º do CC é substancial e estruturalmente um verdadeiro Direito Fundamental. d. De facto, como corolário da liberdade contratual encontra-se a liberdade de celebração. Ora a aplicação de uma norma de regime jurídico distinto daquele a que o sujeito decidiu submeter-se viola essa liberdade, sendo, pois, manifestamente inconstitucional. e. A norma referida, pelo menos com a interpretação que lhe é dada, viola o princípio da Segurança e Certeza Jurídica, corolário do Princípio do Estado de Direito. f. Em boa verdade, a aplicação de uma regra de um instituto jurídico diferente daquele a que o sujeito se vinculou viola a confiança jurídica que o particular tem nas normas e nos órgãos encarregues da sua aplicação. g. A norma mencionada viola ainda o Princípio da Hierarquia e da Prevalência das normas de Direito Internacional Convencional sobre Direito Interno Infra-constitucional. h. Tendo sido vontade do Estado Português estabelecer um regime uniforme no que
às Livranças respeita, e fazendo-o por Convenção Internacional, não poderá vir, posteriormente a derrogar tal regime por simples acto interno o compromisso assim assumido. i. É assim inconstitucional a interpretação de norma de direito interno que altere, derrogue ou por qualquer forma modifique os compromissos internacionalmente assumidos.”
Não houve contra-alegações.
Cumpre apreciar.
II
10. No requerimento de interposição do presente recurso, pediram os recorrentes que o Tribunal Constitucional apreciasse a norma do artigo 650º do Código Civil, numa determinada interpretação (supra, 8.). Nas alegações, todavia, restringiram o objecto do recurso à norma do n.º 1 do mesmo preceito, também numa certa interpretação (supra, 9.).
Dispõe o artigo 650º, n.º 1, do Código Civil:
“Artigo 650º
(Relações entre fiadores e subfiadores)
1. Havendo vários fiadores, e respondendo cada um deles pela totalidade da prestação, o que tiver cumprido fica sub-rogado nos direitos do credor contra o devedor e, de harmonia com as regras das obrigações solidárias, contra os outros fiadores.
[...].”
Analisar-se-á, pois, apenas a conformidade constitucional da norma do n.º 1 do artigo 650º do Código Civil, interpretada no sentido de permitir impor a um avalista a obrigação de pagar a outro avalista parte da quantia que este tenha desembolsado a favor do credor da obrigação cambiária, sem que exista um negócio jurídico entre eles no qual se funde essa imposição.
Nas alegações, concluem os recorrentes que tal interpretação normativa violaria o princípio da autonomia privada, o direito à liberdade contratual, o princípio da segurança e certeza jurídicas e, ainda, o princípio da hierarquia e da prevalência das normas de direito internacional convencional sobre as de direito interno infra-constitucional.
Vejamos se assim é.
11. Ao Tribunal Constitucional não compete verificar, como é evidente, se a norma do artigo 650º, n.º 1, do Código Civil se aplica apenas à fiança, ou também ao aval. Trata-se de um problema de interpretação e aplicação do direito ordinário, estranho à competência do Tribunal Constitucional definida nas várias alíneas do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
Por isso mesmo, a primeira conclusão das alegações dos recorrentes
(supra, 9.) nada releva para a resolução do problema colocado no recurso, que é apenas um problema de aferição da conformidade constitucional da norma do n.º 1 do artigo 650º do Código Civil, na interpretação delimitada pelos recorrentes.
Em segundo lugar, não cumpre também aferir, no presente recurso, a conformidade dessa interpretação com o princípio da hierarquia e da prevalência das normas de direito internacional convencional sobre as de direito interno infra-constitucional (cfr. conclusões g) a i) das alegações dos recorrentes: supra, 9.).
E isto porque o presente recurso foi apenas interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (cfr. o requerimento de interposição do recurso: supra, 8.), e não também ao abrigo da alínea i) do mesmo preceito legal.
Caso o presente recurso tivesse sido interposto ao abrigo desta alínea i) – e se estivessem preenchidos os respectivos pressupostos processuais –, competiria ao Tribunal Constitucional apreciar as questões de natureza jurídico-constitucional e jurídico-internacional implicadas na decisão recorrida (cfr., ainda, o artigo
71º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional). Mas tal não sucedeu, pelo que não pode ser aqui tratado o problema da eventual contrariedade entre a interpretação perfilhada pelo tribunal recorrido e o disposto na Lei Uniforme sobre Letras e Livranças e, por arrastamento, o da eventual violação do artigo
8º, n.º 2, da Constituição.
Este entendimento não é afastado pelo disposto no artigo 79º-C, da Lei do Tribunal Constitucional (invocado pelos recorrentes a fls. 393 v.º das suas alegações), dado que os poderes de cognição do Tribunal Constitucional a que se refere este preceito só podem ser exercidos no âmbito do recurso que concretamente foi interposto e quando se verifiquem os respectivos pressupostos processuais.
12. Resta, portanto, apenas averiguar se a interpretação normativa que constitui o objecto do presente recurso ofende o princípio da autonomia privada, o direito à liberdade contratual ou os princípios da segurança e certeza jurídicas.
12.1. Relativamente à segurança e à certeza jurídicas (cfr. conclusões e) e f) das alegações: supra, 9.), verifica-se que os recorrentes fundam a violação de tais princípios na circunstância de que “a aplicação de uma regra de um instituto jurídico diferente daquele a que o sujeito se vinculou viola a confiança jurídica que o particular tem nas normas e nos órgãos encarregues da sua aplicação”.
Ou seja, os recorrentes fundam a violação de tais princípios no carácter surpreendente ou inovador da aplicação do direito realizada pelas instâncias: tendo confiado na aplicação de um determinado regime jurídico, viram-se subitamente confrontados com a aplicação de um outro regime jurídico.
Tal argumentação é, porém, improcedente. Na verdade, ela resume-se à censura do direito aplicado pelas instâncias, aspecto que, como já se salientou, o Tribunal Constitucional não pode controlar (supra, 11.): seria, sem dúvida, contraditório rejeitar a possibilidade de o Tribunal Constitucional determinar se foi boa ou má a aplicação do direito ordinário e, simultaneamente, admitir que a interpretação perfilhada pelo tribunal recorrido foi surpreendente, porque contrária ao direito legislado.
Não se vê, portanto, como pode ser defensável, à luz do que ficou dito, a afirmação da violação dos princípios da segurança e certeza jurídicas pela interpretação ora em apreço.
12.2. Relativamente ao princípio da autonomia privada e ao direito à liberdade contratual – e a admitir-se a relevância constitucional de tais princípios –, não se considera também procedente a argumentação dos recorrentes, tendente à afirmação da respectiva ofensa (cfr. conclusões c) e d) das alegações: supra, 9.).
Desde logo, porque a tal argumentação subjaz o entendimento de que a fonte da obrigação do co-avalista em relação ao outro co-avalista só poderia ser um contrato e, como tal, a interpretação normativa em causa, ao aceitar a existência de tal obrigação, teria ficcionado a existência de um contrato, assim violando a autonomia privada e o direito à liberdade contratual.
Ora, nada na Constituição impõe que a fonte da obrigação de um co-avalista em relação a outro co-avalista só possa ser um contrato entre ambos celebrado. Dito de outro modo, o princípio da autonomia privada e o direito à liberdade contratual não significam, como é óbvio e sem necessidade de mais desenvolvimentos, que as obrigações (nomeadamente, as dos co-avalistas) só possam ter como fonte um contrato, com a consequência de que seriam inconstitucionais as normas que estabelecessem obrigações cuja fonte não fosse contratual.
Em segundo lugar, e ainda que se considerasse que, ao perfilhar a interpretação normativa que constitui o objecto do presente recurso, o tribunal recorrido ficcionou a existência de um contrato entre co-avalistas – assim limitando o princípio da autonomia privada ou o direito à liberdade contratual –, a verdade
é que tal limitação não seria injustificada nem desrazoável. Com efeito, sendo vários os co-avalistas, todos eles garantindo o pagamento da dívida, não se explicaria que, a final, só um ou alguns deles viessem a ter de suportar a totalidade da dívida e que aos outros co-avalistas nenhum pagamento pudesse ser exigido. Razões de justiça relativa sempre militariam no sentido da distribuição do encargo entre todos os co-avalistas.
Registe-se, aliás, que o Tribunal Constitucional já admitiu a existência de limitações à liberdade contratual, desde que necessárias, adequadas e proporcionais à protecção de outros valores constitucionalmente protegidos (cfr. o Acórdão n.º 47/98, de 3 de Fevereiro, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt).
A interpretação normativa em causa não viola, assim, o princípio da autonomia privada e o direito à liberdade contratual.
III
12. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao recurso. Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta por cada um, sem prejuízo do apoio judiciário concedido.
Lisboa, 24 de Março de 2004
Maria Helena Brito Artur Maurício Rui Manuel Moura Ramos Carlos Pamplona de Oliveira
Luís Nunes de Almeida