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Proc. n.º 47/01
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, no Tribunal Constitucional:
I
1. Inconformado com a decisão sumária de fls. 100 e seguintes, em que se concluiu não estarem verificados os pressupostos processuais exigidos no artigo
70º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional relativamente ao tipo de recurso por si interposto e em que, consequentemente, se decidiu não tomar conhecimento desse recurso, JV veio reclamar para a conferência (fls. 110 a
111), nos termos e pelos fundamentos seguintes:
'1 - Como da decisão reclamada decorre, o objecto do recurso interposto para o Tribunal Constitucional, tal como definido no respectivo requerimento de interposição, prende-se com a invocada inconstitucionalidade dos arts. 364º, nº
2, 379º, nº 1, al. a) e 97º, nº 4, do Cód. Proc. Penal.
2 - Quanto às duas primeiras normas, afirma-se na decisão em apreço que as mesmas não foram aplicadas pela decisão recorrida.
3 - Ora, acontece que tal aplicação foi preterida pela aplicação do disposto no art. 97º, nº 4 do mesmo Cód. Proc. Penal, que, em face, igualmente, da decisão reclamada, não pode sustentar a interposição de recurso por a sua inconstitucionalidade não ter sido suscitada no decurso e pendência do processo.
4 - Contudo, salvo o devido respeito, estamos perante dois pesos e medidas diferentes de análise, sendo que a afirmação de uma exclui, necessariamente, a obstaculização da outra.
5 - Com efeito, se suscitada a inconstitucionalidade de uma norma a mesma não é aplicada (ou a inconstitucionalidade aferida ou apreciada), apelando-se a uma outra disposição legal para assumir o papel da mesma, estamos perante, das duas uma: a) ou a recusa, ilegal, desde logo em face do art. 204º da Constituição da República Portuguesa, de apreciação, em qualquer instância, da constitucionalidade de uma norma; b) ou o suscitar, em termos de efeito surpresa, de uma nova norma, até então não aplicada, fazendo surgir a sua caracterização de inconstitucionalidade, não fazendo sentido invocar a mesma se antes a norma não tiver sido aplicada.
6 - Tal é o caso subjacente aos presentes autos, com referência directa ao disposto no art. 97º, nº 4, do Cód. Proc. Penal.
7 - Inovadoramente invocada, cabe da mesma recurso para o Tribunal Constitucional a partir do preciso momento em que tal invocação é feita.
8 - E a tal não obsta que o Tribunal da Relação de Lisboa, depois de afirmar, genericamente, como necessária a análise efectiva dos meios probatórios para a questão discutida nos autos o tenha feito, ou o tenha feito em termos suficientes.
9 - Afirmar algo e assumir um comportamento contrário, claramente insuficiente para dar como preenchida o enuncio previamente realizado, não afasta a forma como foi efectivamente interpretada e aplicada a norma cuja inconstitucionalidade foi suscitada.
10 - Inconstitucionalidade essa que, na vertente indicada, e incidindo sobre o disposto no art. 97º, nº 4 do Cód. Proc. Penal, se mantém.'
2. Notificado da reclamação deduzida, o representante do Ministério Público junto deste Tribunal respondeu (fls. 113 a 114):
'1º - Num recurso de fiscalização da constitucionalidade de «normas», apenas cabe sindicar do critério normativo acolhido pela decisão impugnada – e não obviamente determinar, face a cada específica e concreta situação processual, se a fundamentação nela adoptada se configura como «clara, precisa, bastante e coerente».
2º - No caso dos autos, não curou o recorrente de especificar, com a clareza exigível, qual a interpretação normativa alegadamente inconstitucional, que teria sido feita no acórdão impugnado – limitando-se a remeter para o invocado nas alegações de recurso.
3º - E sendo patente que o ali alegado não integra uma verdadeira questão de inconstitucionalidade normativa, ao pretender apenas sindicar da concludência e suficiência da fundamentação constante da decisão recorrida.
4º - O que determina a rejeição da presente reclamação.'
Cumpre apreciar a reclamação.
II
3. Na decisão sumária reclamada entendeu-se não poder conhecer-se do recurso interposto pelo ora reclamante, pelos seguintes fundamentos, aí exaustivamente explanados: a) Não aplicação, pela decisão recorrida, das normas dos artigos 374º, n.º 2, e
379º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, cuja conformidade constitucional o recorrente pretendia que este Tribunal sindicasse; b) Não invocação durante o processo, pelo recorrente, da inconstitucionalidade da norma contida no artigo 97º, n.º 4, do Código de Processo Penal, cuja apreciação por este Tribunal também era pretendida; c) Não aplicação, pela decisão recorrida, da norma constante do artigo 97º, n.º
4, do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de 'não implicar a análise efectiva dos meios probatórios, ainda que em termos indiciários', sentido esse considerado inconstitucional pelo recorrente nas alegações de recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa (embora reportado a outras normas,
às normas dos artigos 374º, nº 2, e 379º, nº 1, alínea a), do mesmo Código).
4. Decorre da reclamação deduzida que o reclamante apenas questiona a decisão de não conhecimento do objecto do recurso no que se refere à norma do artigo 97º, n.º 4, do Código de Processo Penal. Relativamente às normas constantes dos artigos 374º, n.º 2 (certamente por lapso, na reclamação aparece referenciado o artigo 364º, n.º 2), e 379º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, o reclamante admite expressamente que a sua aplicação foi preterida pela aplicação do disposto no artigo 97º, n.º 4, do mesmo Código (cfr. n.º 3 dessa reclamação), pedindo consequentemente a revogação da decisão sumária apenas na parte em que se reporta à invocada inconstitucionalidade deste artigo 97º, n.º 4. Como tal, cumpre apenas analisar se o reclamante tem razão quando sustenta a admissibilidade do recurso, no que se refere à apreciação da conformidade constitucional da norma do artigo 97º, n.º 4, do Código de Processo Penal: quanto às outras normas do mesmo Código que aparecem referenciadas no requerimento de interposição do recurso, a inadmissibilidade da apreciação da sua conformidade constitucional resulta da decisão sumária, nessa parte não impugnada e, como tal, transitada.
5. Sustenta o reclamante, em síntese, que: a. Não suscitou durante o processo a inconstitucionalidade da norma do artigo 97º, n.º 4, do Código de Processo Penal, dado que antes de a decisão recorrida ter sido proferida tal norma não havia nele sido aplicada e, como tal, não fazia sentido suscitar a sua inconstitucionalidade; b. Não obsta ao recurso para o Tribunal Constitucional a circunstância de o tribunal recorrido ter afirmado como necessária a análise efectiva dos meios de prova, uma vez que assumiu um comportamento contrário, claramente insuficiente para se concluir que considerou necessária essa análise.
Reafirma-se que o ora reclamante não suscitou, durante o processo, no sentido funcional que a jurisprudência constitucional atribui a esta exigência, a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 97º, n.º 4, do Código de Processo Penal.
Nas alegações de recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, o ora reclamante referiu-se apenas à inconstitucionalidade das normas contidas nos artigos 374º, n.º 2, e 379º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal.
Ora, tais preceitos estabelecem os requisitos das sentenças e fixam as consequências da inobservância de tais requisitos. Por isso mesmo, como se explicitou na decisão sumária sob reclamação, não foram aplicados no acórdão recorrido.
Os actos decisórios dos juízes que não sejam sentenças, concretamente os despachos judiciais – como era, no caso dos autos, o despacho que determinou a prisão preventiva do ora reclamante e cuja regularidade ele impugnava –, estão sujeitos à regra constante do artigo 97º do mesmo Código, maxime, para o que aqui releva, à regra sobre fundamentação contida no respectivo n.º 4.
Não pode portanto sustentar-se – como sustenta o reclamante na reclamação agora em apreciação – que o artigo 97º, n.º 4, do Código de Processo Penal tenha sido pela primeira vez aplicado no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, sendo certo que só a regra sobre fundamentação constante de tal preceito era susceptível de ser tida em conta (e foi efectivamente tida em conta) pelas instâncias, no presente processo.
Assim sendo, não configura o caso dos autos um daqueles em que o recorrente pudesse considerar-se dispensado de suscitar, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida (o Tribunal da Relação de Lisboa), a inconstitucionalidade da norma que pretende submeter ao julgamento do Tribunal Constitucional
Faltando este pressuposto processual típico do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade interposto, não pode o Tribunal Constitucional conhecer do respectivo objecto. III
6. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, indefere-se a reclamação, confirmando-se a decisão sumária de não conhecimento do recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta.
Lisboa, 8 de Março de 2001 Maria Helena Brito Vítor Nunes de Almeida Luís Nunes de Almeida