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Processo n.º 4/04
2.ª Secção Relator: Cons. Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
O banco A., SA impugnou judicialmente a decisão de 12 de Julho de 2002 da Delegação de Leiria do Instituto de Desenvolvimento e Inspecção das Condições de Trabalho (IDICT), que lhe aplicou coima no montante de € 7481,97 por contra-ordenação consistente na falta de registo da prestação de trabalho suplementar por parte de uma sua trabalhadora, mas por sentença de
10 de Dezembro de 2002 do Tribunal do Trabalho de Coimbra foi mantida a coima aplicada.
Contra esta sentença interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra o banco A., SA, suscitando desde logo a sua própria ilegitimidade, por entender que, tendo-se operado, por escritura pública lavrada em 19 de Dezembro de 2002, a fusão por incorporação do banco A., SA no banco A., SGPS, sociedade que simultaneamente alterou a sua denominação para banco AA., SA, ocorrera a extinção do sancionado banco A., SA, não se tendo transmitido a sua responsabilidade contra-ordenacional para o recorrente banco AA., SA, por a tal se opor o disposto nos artigos 127.º e 128.º do Código Penal (extinção da responsabilidade criminal pela morte do agente), aplicável no âmbito do direito contra-ordenacional por força do artigo 32.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro. Nas alegações de recurso, o recorrente suscitou diversas questões de inconstitucionalidade, entre elas a inconstitucionalidade material – por violação do artigo 30.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa (CRP) – da norma constante do artigo 112.º, alínea a), do Código das Sociedades Comerciais (CSC), interpretada no sentido da transmissibilidade para a sociedade incorporante da responsabilidade contra-ordenacional por infracção praticada pela sociedade incorporada, pois tal implicaria a possibilidade de subrogação no cumprimento das penas.
Por acórdão de 6 de Novembro de 2003 do Tribunal da Relação de Coimbra foi negado provimento ao recurso, com desatendimento da mencionada questão de inconstitucionalidade, a propósito da qual se expendeu o seguinte:
2.1 – Como questão prévia, pretexta a recorrente, agora « banco AA., SA », sociedade que incorporou por fusão o banco A., SA, a sua ilegitimidade superveniente, dizendo concretamente, no respectivo proémio, que «... interpõe o presente recurso apesar de reconhecer que não tem legitimidade para estar nos autos» (!...). Com efeito, como se alega, por escritura pública lavrada no Cartório Notarial do Porto no dia 19 de Dezembro de 2002, operou-se a fusão, por incorporação, do banco A., SA, no banco A., SGPS, com a consequente transmissão do património da sociedade incorporada em favor da sociedade incorporante, tendo ocorrido simultaneamente a alteração do objecto e denominação da sociedade incorporante, passando esta a exercer a actividade típica de uma instituição de crédito e adoptando a denominação de « banco AA., SA ». Pretende-se assim significar que, com a inscrição da referida fusão no registo comercial, se extinguiu o arguido « banco A., SA » à data da respectiva apresentação, ou seja, 20 de Dezembro de 2002.
Destarte – remata-se – o princípio da não transmissibilidade da responsabilidade criminal ou contravencional, consagrado nas disposições legais que cita, e no artigo 30.°, n.º 3, da CRP, aplicável no âmbito do direito contra-ordenacional, tem como consequência a extinção da responsabilidade e do procedimento contra-ordenacionais.
Não é este o entendimento reinante nesta Secção, como se sabe, podendo ver-se, por todos, os Acórdãos dados à publicidade geral na Colectânea de Jurisprudência, ano XXVI, tomo II, pág. 55, e ano XXVII, tomo I, pág. 62, de cuja bondade não vemos razão para nos afastarmos.
Como compreensivelmente se aceitará, remetemos para a respectiva fundamentação, reeditando, em síntese, que:
É fora de dúvida que, pela falada escritura, de que consta documento nos autos, se operou a fusão, por incorporação, do Banco arguido na sociedade bancária incorporante.
Certo é também que o artigo 30.°, n.º 3, da CRP consagra o princípio da intransmissibilidade das penas, sendo igualmente pacífico que se aplica, subsidiariamente, às contra-ordenações laborais o RGCO e a este, na parte substantiva, o regime do Código Penal.
Nos termos deste – artigos 127.° e 128.° – a morte do agente é causa de extinção do procedimento criminal e da pena.
Todavia, nem aquele comando constitucional nem este princípio do Direito Criminal poderiam, in casu, conduzir à conclusão pretendida pela recorrente, ressalvado sempre o respeito devido por opinião contrária, que se conhece...
Por um lado, aquele preceito constitucional refere-se exclusivamente
às penas («A responsabilidade penal é insusceptível de transmissão»), como tal se entendendo as sanções aplicadas em processo criminal (a epígrafe do artigo alude aos limites das penas e das medidas de segurança...).
Por outro lado, enquadra-se, sistematicamente, no Título II, que dispõe sobre «Direitos, Liberdades e Garantias Pessoais».
A razão deste consagrado princípio da intransmissibilidade das penas no domínio do Direito Criminal afigura-se-nos intuitiva: toda a censura penal tem por suporte axiológico-normativo referencial a culpa concreta do agente, reportando-se necessariamente ao homem, à pessoa física, enquanto ser dotado de razão e liberdade.
(Aplicável, sem excepção, às pessoas singulares, o mesmo cede claramente no que concerne ao regime sancionatório das contra-ordenações, do que pode encontrar-se exemplo acabado no domínio das contra-ordenações tributárias, cujos processos de execução por não pagamento de coimas prosseguem não apenas contra o devedor originário, mas também contra os seus sucessores – cfr. artigos
148.°, n.º 1, alínea b), 153.°, n.º 1, e 155.°, n.º 1, do Código de Processo Tributário). Daí que, como dimana do artigo 11.° do Código Penal, apenas as pessoas singulares sejam, por princípio, passíveis de responsabilidade criminal.
Às excepcionadas circunstâncias em que o legislador prevê a punição criminal de pessoas colectivas correspondem naturalmente penas pecuniárias e, em casos contados, medidas de segurança...
...E ainda assim, como suporte etiológico/teleológico para tal necessidade político-criminal de sancionamento, lançando mão de uma «ficção de culpa», ou, como ensina o Prof. Figueiredo Dias, de um pensamento filosófico analógico, que considere as pessoas colectivas capazes de acção e de culpa jurídico-criminais
– apud Maia Gonçalves, Código Penal Anotado, 1990, pág. 89. Em síntese deste ponto e respectiva fundamentação, diremos que as previstas excepções ao princípio da personalização/individualização da responsabilidade criminal encontrarão razão de ser em ponderosos motivos de índole político-criminal, de natureza pragmática, com o aceitável objectivo de perseguir um certo tipo de infracção/delinquência que, de outro modo, se frustraria ou passaria incontornavelmente impune... A morte, como causa extintiva da responsabilidade criminal, não pode ser outra coisa, pois, que não a morte biológica, o fim do ciclo da vida dos seres humanos. E porque o fundamento para a punição das pessoas colectivas é diverso, como acima explicitado, a mesma lógica justificará a extinção da sua responsabilidade! Ela terá de decorrer expressamente de determinação normativa. A solução que demandamos para o caso consta aliás da Lei, concretamente do Código das Sociedades Comerciais – artigos 97.°, n.ºs 1 e 4, 112.°, alínea a),
141.° e 146.°. Duas ou mais sociedades podem fundir-se mediante a sua reunião numa só, realizando-se a fusão mediante a transferência global do património de uma ou mais sociedades para a outra e a atribuição aos sócios daquelas de partes, acções ou quotas desta, ou através da constituição de uma nova sociedade, para a qual se transferem globalmente os patrimónios das sociedades fundidas. Com a inscrição da fusão no Registo Comercial, extinguem-se as sociedades incorporadas... transmitindo-se os seus direitos e obrigações para a sociedade incorporante. Só a dissolução e a acabada liquidação (...a sociedade em liquidação mantém a personalidade jurídica – n.º 2 do artigo 146.°) acarretará a «morte» da sociedade. A verdade é que, ao determinar-se a extinção da/s sociedade/s fundida/s, não deixa a lei de prevenir que se transmitem, como se disse, para a sociedade incorporante (ou para a nova sociedade resultante da fusão), todos os direitos e obrigações das sociedades extintas – artigo 112.°, alínea a), do CSC – que não apenas civis, como se infere do já exposto acima. Cremos, pois – sempre com ressalva do respeito devido por melhor saber ou entendimento –, ser irrefutável que, praticada uma infracção pela sociedade incorporada, a responsabilidade passa a ser da sociedade incorporante, como se por si tivesse sido cometida, transmitindo-se-lhe, por força da lei, como uma obrigação daquela. Com a prevista possibilidade de fusão de sociedades o legislador não quis seguramente – como aconteceria no caso, se fosse outro o entendimento –
viabilizar a impunidade e permitir actuações mais ou menos desviantes relativamente às injunções normativas! Sendo este raciocínio válido para as sanções criminais, sê-lo-á, por maioria de razão, para as de natureza contra-ordenacional, pelas consabidas diferenças dogmáticas entre ambas, nomeadamente no campo da culpa, que, neste âmbito, se basta com uma «imputação do facto à responsabilidade social do seu autor». Não podem, pois, acolher-se as correspondentes conclusões da recorrente.”
A recorrente interpôs recurso deste acórdão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), pretendendo ver apreciada a constitucionalidade da norma do artigo 112.º, alínea a), do CSC, interpretada no sentido de que, “ao determinar a extinção da sociedade fundida, não deixa de transmitir para a sociedade incorporante todos os direitos e obrigações da sociedade extinta, incluindo a responsabilidade por infracções contra-ordenacionais cometidas por esta”, interpretação que reputa inconstitucional, por violação do artigo 30.º, n.º 3, da CRP, “na medida em que implica uma subrogação da responsabilidade contra-ordenacional, incluída na referida norma constitucional”.
A recorrente apresentou alegações, que finalizam com a formulação das seguintes conclusões:
“1. A fusão, por incorporação, de uma sociedade comercial noutra, com a consequente transmissão do património da sociedade incorporada em favor da sociedade incorporante, após o registo da referida fusão na inscrição feita na competente Conservatória do Registo Comercial, conduz à extinção da sociedade incorporada ex vi do disposto no artigo 112.°, alínea a), do Código das Sociedades Comerciais.
2. Com a extinção da sociedade incorporada, extingue-se também a responsabilidade contra-ordenacional.
3. Nos termos do disposto no artigo 2.º do Regime Geral das Contra-Ordenações Laborais, aprovado pela Lei n.º 116/99, de 4 de Agosto, a estas contra-ordenações aplica-se subsidiariamente o Regime Geral das Contra-Ordenações que consta do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 356/89, de 17 de Outubro, e pelo Decreto Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro.
4. De harmonia com o preceituado no artigo 32.° do citado Decreto-Lei n.º 433/82, as normas do Código Penal aplicam-se no que respeita à fixação do regime substantivo das contra-ordenações.
5. Nos termos do artigo 127.° do Código Penal a responsabilidade criminal extingue-se pela morte.
6. E nos termos do artigo 128.° do mesmo Código a morte do agente extingue, tanto o procedimento criminal, como a pena ou a medida de segurança.
7. O princípio da não transmissibilidade da responsabilidade criminal ou contravencional, consagrado nas citadas disposições do Código Penal, e no artigo 30.°, n.º 3, da Constituição da República, aplica-se também no
âmbito do direito contra-ordenacional ex vi do disposto nos supra referidos artigos 2.° do Regime aprovado pela Lei n.º 116/99 e 32.° do Decreto Lei n.º
433/82.
8. O que quer dizer que, também nas contra-ordenações, a morte do agente (se se tratar de uma pessoa singular) ou a sua extinção (se se tratar de uma pessoa colectiva) têm como consequência a extinção da responsabilidade e do procedimento contra-ordenacionais.
9. O que bem se compreende por não haver contra-ordenação sem negligência e a negligência, como elemento subjectivo da infracção, não poder separar-se da pessoa do agente.
10. Tendo-se extinguido o agente da infracção noticiada, nos termos supra mencionados, extinguiu-se também, e simultaneamente, a responsabilidade pela contra-ordenação a que o Auto de Notícia alude, bem como o respectivo procedimento contra-ordenacional (citados artigos 30.°, n.º 3, da Constituição da República e 127.° e 128.° do Código Penal, aplicáveis por força do disposto nos artigos 2.° do Regime aprovado pela Lei n.º 116/99 e 32.° do Decreto-Lei n.º 433/82, supra referidos).
11. A condenação da sociedade incorporante conduziria sempre a uma situação em que a entidade jurídica condenada nem sequer havia sido acusada no processo, e nele não se pôde defender, o que não deixa de ser contrário a princípios basilares do direito constitucional e criminal.
12. O artigo 112.º, alínea a), parte final, do Código das Sociedades Comerciais, quando estatui a transmissão de todos os «direitos e obrigações para a sociedade incorporante ou para a nova sociedade», reporta-se apenas aos direitos e obrigações de natureza cível, e não penal ou contra-ordenacional.
13. O artigo 112.º, alínea a), do Código das Sociedades Comerciais, quando interpretado no sentido defendido no Acórdão sob recurso, isto é, de que a responsabilidade por contra-ordenações imputadas à sociedade incorporada se transmite para a sociedade incorporante é materialmente inconstitucional, por violação do artigo 30.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa.”
O representante do Ministério Público no Tribunal Constitucional contra-alegou, concluindo:
“1 – Sendo diferente a natureza do direito penal e do direito de mera ordenação social, os princípios fundamentais inerentes ao primeiro têm aplicação no segundo.
2 – As normas e os princípios constitucionais com relevo em matéria penal valem, no essencial, no campo contra-ordenacional.
3 – A não transmissão da responsabilidade penal consagrada no artigo 30.°, n.°
3, da Constituição abarca a matéria referente às sanções aplicadas pela prática de contra-ordenações.
4 – Sendo realidades diferentes, não são automaticamente aplicáveis às pessoas colectivas todas as normas e regras de que são fundamentalmente destinatárias as pessoas singulares, tendo-se que atender à específica natureza e características daquelas.
5 – A fusão por incorporação de uma sociedade noutra, sendo algo substancialmente diferente da sua dissolução com liquidação, não é equiparável à morte de pessoa singular, para efeitos de extinção de responsabilidade penal ou contra-ordenacional.
6 – Não viola, por isso, a norma constitucional da insusceptibilidade da transmissão da responsabilidade aceitar que a recorrente tem que responder pela prática da contra-ordenação cometida pela sociedade que incorporou.
7 – Termos em que deverá improceder o presente recurso.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
O artigo 112.º, alínea a), do Código das Sociedades Comerciais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 262/86, de 2 de Setembro, dispõe que:
“Com a inscrição da fusão [de sociedades] no registo comercial: a) Extinguem-se as sociedades incorporadas ou, no caso de constituição de nova sociedade, todas as sociedades fundidas, transmitindo-se os seus direitos e obrigações para a sociedade incorporante ou para a nova sociedade; (...)”.
Determina este preceito que com a inscrição no registo comercial da fusão de sociedades (isto é, a reunião de duas ou mais sociedades numa só) opera a extinção das sociedades incorporadas (no caso de fusão-incorporação, que ocorre mediante a transferência global do património de uma sociedade para outra e a atribuição aos sócios da primeira de partes, quotas ou acções da última) ou de todas as sociedades fundidas (no caso de fusão-constituição, que ocorre mediante a transferência dos patrimónios das sociedades existentes para uma nova sociedade, atribuindo-se aos sócios partes, quotas ou acções da nova sociedade), com transmissão de todos os seus direitos e obrigações para a sociedade incorporante ou para a nova sociedade (cf. Abílio Neto, Código das Sociedades Comerciais, 2.ª edição, Lisboa, 2003, págs.
343-344).
No presente caso, estamos perante uma fusão-incorporação, tendo o tribunal recorrido entendido que a mesma não determinava a extinção da responsabilidade contra-ordenacional de uma das sociedades incorporadas, responsabilidade que se transmitiu para a sociedade incorporante.
Não compete ao Tribunal Constitucional ajuizar da correcção deste entendimento, ao nível da interpretação e aplicação do direito ordinário, mas tão-só apreciar a sua conformidade constitucional, tendo em conta especialmente o disposto no artigo 30.º, n.º 3, da CRP, segundo o qual “A responsabilidade penal é insusceptível de transmissão” (versão da revisão constitucional de 1997; anteriormente dispunha: “As penas são insusceptíveis de transmissão”).
A intransmissibilidade da responsabilidade penal, ligada aos princípios da pessoalidade e da culpa, implica a extinção da pena e do procedimento criminal com a morte do agente, a proibição da transmissão da pena para familiares, parentes ou terceiros e a impossibilidade de subrogação no cumprimento das penas, mas já não obsta à transmissibilidade de certos efeitos patrimoniais conexos das penas, como, por exemplo, a indemnização de perdas e danos emergentes de um crime, nos termos da lei civil (neste sentido, cf. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada,
3.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1993, págs. 197-198). Por seu turno, a alteração de redacção introduzida na revisão constitucional de 1997 fundou-se na constatação de que a responsabilidade penal se não esgota nas penas já aplicadas, não sendo vislumbrável nessa alteração qualquer propósito de transcender o domínio penal.
Para a decisão do caso ora em apreço, não carece o Tribunal Constitucional de se comprometer na questão de saber se a regra do artigo 30.º, n.º 3, da CRP é extensível quer à responsabilidade criminal das pessoas colectivas, quer à responsabilidade contra-ordenacional em geral. Quanto a este último aspecto, sempre se dirá, no entanto, que o n.º 10 do artigo
32.º da CRP, incidindo sobre o direito adjectivo, se limita a assegurar no processo contra-ordenacional os direitos de audiência e defesa, e que a eventual extensão ao regime das contra-ordenações de aspectos substantivos do regime dos crimes não pode esquecer a diferença dos princípios jurídico-constitucionais que regem esses dois géneros de ilícito, pelo que a intransmissibilidade de um juízo (definitivo ou hipotético) de censura ética, consubstanciado numa condenação (ou acusação) penal não surge, à partida, como implicando imperativamente similar intransmissibilidade de acusação ou condenação por desrespeito de normas sem ressonância ética, de ordenação administrativa.
E entendemos não ser necessário assumir posição aberta nessas questões desde logo porque, no caso, a situação da perda de personalidade jurídica das sociedades incorporadas não é assimilável à situação de “morte do agente”, contemplada nos artigos 127.º e 128.º do Código Penal como causa de extinção da responsabilidade criminal, do procedimento criminal, das penas e das medidas de segurança, e que, assim, se tornaria intransmissível para terceiros, por força do artigo 30.º, n.º 3, da CRP.
Na verdade, quer se entenda, como sustenta Luís Manuel Teles de Menezes Leitão (“Fusão, cisão de sociedades e figuras afins”, Fisco, n.º 57, 1993, págs. 18 e seguintes, em especial pág. 21), que para as sociedades incorporadas a fusão implica uma dissolução sem liquidação, quer se entenda, como sustentam Raúl Ventura (Comentário ao Código das Sociedades Comerciais: Fusão, Cisão, Transformação de Sociedades, Coimbra, 1990, págs. 224-228) e Miguel J. A. Pupo Correia (Direito Comercial, 8.ª edição, Lisboa, 2003, pág.
661), que na fusão o desaparecimento da personalidade jurídica das sociedades incorporadas ocorre sem dissolução nem liquidação (o CSC não inclui a fusão entre as causas de dissolução das sociedades e a dissolução pressupõe a liquidação, que manifestamente não ocorre com a fusão), sempre se impõe a conclusão de que as sociedades incorporadas continuam a sua existência em condições diversas, designadamente no âmbito da sociedade incorporante.
Assim sendo, no caso de fusão por incorporação, a transmissão da responsabilidade contra-ordenacional à sociedade incorporante só formalmente é uma transmissão. Como sustenta o Ministério Público, nas suas contra-alegações, “a fusão por incorporação de uma pessoa colectiva noutra não conduz a uma verdadeira extinção da sociedade equiparável à morte de pessoa singular, já que subsiste a realidade sociológica que justifica a responsabilização pela prática de contra-ordenação”. Apurado que, nos casos de fusão por incorporação, não existe liquidação (nem dissolução, entendida como abertura do processo de liquidação) da sociedade incorporada, antes se registando o aproveitamento, no seio da sociedade incorporante, dos elementos pessoais, patrimoniais e imateriais da sociedade extinta, impõe-se a conclusão de que a esta situação é inaplicável a proibição constante do artigo 30.º, n.º
3, da CRP, mesmo que se admita – questão que, repete-se, se deixa em aberto – que este comando constitucional abrange a responsabilidade contra-ordenacional e das pessoas colectivas.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 112.º, alínea a), do Código das Sociedades Comerciais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º
262/86, de 2 de Setembro, interpretada no sentido de que a responsabilidade contra-ordenacional da sociedade incorporada, extinta por força da inscrição da fusão no registo comercial, se transmite para a sociedade incorporante; e, consequentemente,
b) Negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida, na parte impugnada.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em
20 (vinte) unidades de conta. Lisboa, 17 de Março de 2004.
Mário José de Araújo Torres Paulo Mota Pinto Benjamim Silva Rodrigues Maria Fernanda Palma Rui Manuel Moura Ramos