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Proc. n.º 218/00
3ª Secção Relator: Cons. Gil Galvão
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório.
1. Por decisão do 1º Juízo do Tribunal de Círculo de Braga, de 23 de Junho de
1998, confirmada por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13 de Janeiro de
1999, transitada em julgado, foi o ora recorrente, A, condenado:
a) pela prática de um crime de homicídio por negligência, previsto no artigo
137º, n.º 2 do Código Penal, na pena de um ano de prisão;
b) pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto no artigo 292º do Código Penal, na pena de seis meses de prisão.
Efectuado o cúmulo jurídico destas penas foi o arguido condenado na pena única de 15 meses de prisão. Foi, ainda, condenado na sanção acessória de inibição de conduzir veículos automóveis pelo período de 9 meses e na coima de 20.000$00.
2. Posteriormente, em 21 de Maio de 1999,após a publicação da Lei n.º 29/99, de
12 de Maio, que amnistiou diversas infracções e perdoou algumas penas, foi proferido, no Tribunal de Círculo de Braga, o seguinte despacho:
'O perdão de pena previsto na Lei n.o 29/99, de 12 de Maio, exclui os infractores ao Código da Estrada, seu regulamento, legislação complementar e demais legislação rodoviária, quando tenham praticado a infracção sob influência do álcool (...) ou com abandono de sinistrado (art.º 2°, n.º 1, al.ª c). Estabelecendo jurisprudência obrigatória no âmbito da Lei da amnistia n.º 15/94, de 11/05, para norma análoga, o Ac. S.T.J. n.º 4/97, de 19/12/96, in D.R., I série, de18/03/97, estabeleceu não beneficiarem de amnistia ou do perdão os crimes cometidos sob influência do álcool ou com abandono de sinistrado.
'Mutatis mutandis', tal doutrina é de manter, em face de norma análoga. Pelo que desde já se declara não beneficiar o arguido de qualquer perdão de pena
(para qualquer dos crimes por que foi condenado, com trânsito em julgado).'
3. Inconformado com esta decisão o arguido recorreu para o Tribunal da Relação do Porto, tendo alegado, no essencial, no que à inconstitucionalidade respeita, que: “o despacho recorrido, aplicou analogicamente a norma contida na al. c) do n.º 1 do art.º 2° da Lei n.º 29/99, ao caso dos autos, que nela se não contém, nem está previsto”, pelo que “a interpretação da referida al. c) adoptada pelo douto despacho em crise ofende, assim, o n.º 3 do art.º 1° do Código Penal e está ferida de inconstitucionalidade, por ofensa do n.º 3 do art.º 29° da CRP”. Além disso, alegou ainda que “a interpretação, adoptada pelo douto despacho recorrido, que exclui do âmbito dessa norma [artigo 3º da Lei 29/99] as infracções ao Código da Estrada, seu Regulamento, legislação complementar e demais legislação rodoviária cometidas em estado de embriaguez, independentemente de estarem ou não previstas no Código Penal, é inconstitucional e ofende o citado n.º 3 do art. 29º da CRP.”
4. O Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 12 de Janeiro de 2000, negou provimento ao recurso e, em consequência, confirmou o despacho recorrido. Escudou-se para tanto, designadamente, na seguinte fundamentação:
“[...] Desde que cometidos até 25/03/99, a Lei n.º 29/99, de 12/5, amnistiou, entre outros, 'Os crimes cuja pena aplicável não seja superior a um ano de prisão ou multa (...)'- al.ª d) do art.º 7º Excluiu, porém, de tal benefício, bem como do perdão concedido no seu art.º 1°, além do mais, 'Os infractores ao Código da Estrada, seu Regulamento, legislação complementar e demais legislação rodoviária, quando tenham praticado a infracção sob a influência do álcool
(...)' - al.ª c) do n.º 1 do art.º 2º. O crime tipificado no art.º 292° do C. Penal cai dentro da previsão da transcrita al.ª d) do cit. art.º 7°. Põe-se agora a questão de saber se pode considerar-se aquela norma do C. Penal como fazendo parte da «demais legislação rodoviária», que foi esta a expressão utilizada , pelo legislador na transcrita al.ª c) do n.º 1 do art.º 2°. Sabido que, em virtude do seu carácter excepcional, as leis de amnistia têm de ser interpretadas «nos seus precisos termos» (interpretação declarativa estrita), na resolução daquela enunciada questão não é admissível o recurso à interpretação extensiva, restritiva, ou à analogia v., por todos, o Ac. Rel. Lx., de 2/11/94, in CJ, 1994, T.5, 142, e jurisprudência e doutrina ali citadas. Fica, assim, o intérprete praticamente limitado ao sentido literal do texto, isto sem prejuízo, obviamente, da possibilidade de eleger, entre os vários sentidos que uma palavra ou uma expressão eventualmente contenham, aquele que, de acordo com o disposto no art.º 9°, n.º 3, do C. Civil, permita a consagração da solução mais acertada.
[...] Um desses critérios legais [de interpretação e aplicação das leis] é o de que só não pode ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei « um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso» ( v. art.º 9°, n.º 2, do C. Civil ). Qualquer dicionário dirá que o adjectivo 'rodoviário' significa 'que pertence ou se refere a rodovia', e que o substantivo feminino 'rodovia' significa
'estrada'. E toda a gente sabe que 'as estradas são vias de comunicação terrestre afectas ao trânsito, que podem ser públicas ou privadas. É igualmente sabido que a circulação em tais vias, desde que abertas ao trânsito público, mormente de veículos automóveis, se reveste de acentuada perigosidade. Dai a imposição de regras próprias para a sua utilização, fixadas, claro está, na
«legislação rodoviária», isto é, no conjunto de normas jurídicas que, mediante a imposição ou a proibição de determinadas condutas a todos os que circulam nas vias públicas, e a imposição de sanções a quem as não acatar, regulam e condicionam tal utilização, quer essas normas constem do C. Estrada, do C. Penal ou de qualquer outro diploma legal, as quais, no seu conjunto, constituem o
«Direito Rodoviário». Forçoso é concluir, portanto, que o art.º 292° do C. Penal, ao proibir a condução de veículo na via pública com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g./l, não pode deixar de considerar-se 'legislação rodoviária', nomeadamente para efeitos do disposto na al.ª c) do n.º 1 do art.º 2° da Lei n.º
29/99, de 12/05, o mesmo acontecendo, aliás, com as normas dos art.ºs 290°
(atentado à segurança de transporte rodoviário) e 291º (condução perigosa de veículo rodoviário) do mesmo Capítulo (Capítulo IV) daquele Código, com a epígrafe «Dos crimes contra a segurança das comunicações». Relativamente ao crime de homicídio por negligência cometido por condutor embriagado, deverá também entender-se que o agente não beneficia do perdão da lei n.º 29/99, de 12/05, face ao disposto na al.ª c) do n.º 1 do seu art.º 2°. Isto porque este crime terá, igualmente, que considerar-se sob a alçada do
«direito rodoviário». [...]. De concluir, portanto, ser um infractor da “legislação rodoviária” o indivíduo que conduzindo um veículo em estado de embriaguez, der causa a um acidente de viação do qual resultar a morte de um terceiro, pelo que as respectivas infracções – os crimes de condução de veículo em estado de embriagues e de homicídio por negligência -, porque cometidos sob a influência do álcool, não beneficiam de perdão e da amnistia concedidos pela Lei n.º 29/99, de 12/05. Esta solução, que tem, como se viu, mais que suficiente correspondência verbal na letra da lei, é, além do mais, a que corresponde à presunção de que o legislador consagra as soluções mais acertada (v. n.º 3 do art. 9º do C. Civil), já que, a não se entender assim, cair-se-ia no absurdo de, como se diz no Ac. Rel. Coimbra, de 09/11/94 (C.J., 1994, T.5, 60), considerar que “...apenas as infracções menores (transgressões) não beneficiam da amnistia nem do perdão; as infracções objectivamente mais graves e as que tinham tal dignidade e interesse no campo da repressão penal que eram a causa do afastamento daqueles benefícios, eram alvo de clemência.” De notar, aliás, que o STJ, a propósito da Lei da Amnistia n.º 15/94, de 11/5, relativamente a um caso precisamente igual ao presente, fixou jurisprudência obrigatória no sentido da solução que ora se adoptou (Acórdão com força obrigatória n.º 4/97, de 19/12/96, publicado no D.R. I Série A, de 18/03/97). Não restam, assim, dúvidas de que os crimes por que foi condenado o recorrente não beneficiam da amnistia e do perdão concedidos pela Lei n.º 29/99, de 12/05.
[...] Uma última questão suscitou o recorrente, que é a da inconstitucionalidade da al.ª c) do n.º 1 do art.º 2º da Lei n.º 29/99, na interpretação que lhe foi dada no despacho recorrido, por violação do disposto no art.º 29º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa. Mais uma vez não lhe assiste, porém, razão. Diz o cit. n.º 3: “Não podem ser aplicadas penas ou medidas de segurança que não estejam expressamente cominadas em lei anterior”. Ora, como resulta nitidamente do texto daquele despacho, nele não foi aplicada ao recorrente qualquer pena ou medida de segurança, pelo que nenhuma inconstitucionalidade se vislumbra. Improcede, pois, na sua totalidade, o recurso.”
5. É desta decisão que vem interposto, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do art.
70º da LTC, o presente recurso de constitucionalidade, através de um requerimento que tem o seguinte teor:
“[...] porque se não conforma com o, aliás douto, acórdão proferido nos autos de recurso penal identificados em epígrafe, dele interpõe recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na al. b) do n° 1 do artº 70° da LOTC, para apreciação da inconstitucionalidade:
- da norma da al. c) do n° 1 do art.º 2° da Lei 29/99 de 12 de Maio, na interpretação que dela adoptou o Tribunal a quo de considerá-la aplicável aos crimes de homicídio por negligência e de condução de veículo em estado de embriaguês (sic),
- e da norma contida no art.º 3º da mesma Lei, na interpretação adoptada pelo mesmo Tribunal a quo, que a considera inaplicável aos crimes excepcionados no art.º 2° do mesmo diploma, num e noutro casos, por violação do art.º 29º, n.º 3, da CRP, sendo que as questões de inconstitucionalidade cuja apreciação se pretende foram suscitadas já na motivação do recurso para o Tribunal da Relação.”
6. Já neste Tribunal foi o recorrente notificado para alegar, o que fez, tendo concluído nos seguintes termos:
“1. O douto acórdão recorrido aplicou analogicamente a norma contida na al. c) do n.º 1 do art.º2º da Lei 29/99, [ao] que nela se não contém, nem está previsto.
2. Só as infracções ao Código da Estrada, seu Regulamento, legislação complementar e demais legislação rodoviária estão incluídas na previsão dessa norma e não quaisquer infracções previstas no Código Penal.
3. O 'sentido possível das palavras' utilizadas pelo legislador na redacção desse preceito não comporta nem suporta a sua aplicação a crimes do Código Penal, pelo que nem sequer é legítima a interpretação extensiva da norma.
4. A interpretação da referida al. c) adoptada pelo douto acórdão em crise ofende, assim, o n° 3 do art., 1° do Código Penal e está ferida de inconstitucionalidade material, por ofensa do n° 3 do art. 29º da CRP. TERMOS EM QUE Dando provimento ao presente recurso e declarando-se a inconstitucionalidade da interpretação feita pelo douto acórdão recorrido da norma da al. c) do n.º 1 do art. 2º da Lei n.º 29/99 de 12 de Maio, farão Vossas Excelências a habitual JUSTIÇA”. ”.
7. Notificado para responder, querendo, à alegação do recorrente, disse o Ministério Público, a concluir:
“1º Conforme resulta da jurisprudência firmada maioritariamente no Acórdão n.º
674/99, não integra objecto idóneo de um recurso de fiscalização da constitucionalidade normativa a imputação às decisões das instâncias da realização de “aplicação analógica” de certo conceito de direito infraconstitucional – em que se estribou o efeito excludente da aplicação do perdão ao arguido – condenado por crimes que, embora tipificados no Código Penal, têm evidente ligação material à circulação rodoviária.
2° Na verdade, a fixação do exacto sentido de um conceito de direito infraconstitucional – o de “direito” ou “legislação rodoviária” – situa-se no
âmbito dos poderes cognitivos dos Tribunais Judiciais os únicos dotados de competência para ajuizar se, ao preencher tal conceito, deverá ou não o intérprete conferir prevalência absoluta a um critério de índole sistemático-formal.
3° - E sendo certo que tal preenchimento conceitual - em si mesmo considerado - não decorre de quaisquer preceitos ou princípios constitucionais
4° - Termos em que não deverá conhecer-se do recurso, por a questão suscitada se situar para além dos parâmetros do conceito de 'inconstitucionalidade normativa'
- e, portanto, fora dos poderes cognitivos deste Tribunal Constitucional.)
8. Notificado para responder, querendo, à questão prévia suscitada pelo Ministério Público, o recorrente veio aos autos sustentar a sua improcedência, da seguinte forma:
“[...] Entende o Recorrente que deve ser indeferida a suscitada questão prévia. Ao adoptar, como indiscutivelmente adoptou, uma interpretação analógica dos preceitos sub judice, o Tribunal recorrido não se limitou a violar frontalmente os normativos da Lei Fundamental invocados no requerimento de recurso como, sobretudo, preencheu essas normas com um conteúdo inconstitucional, por violação, entre outros, do princípio da legalidade penal. Aceitar-se que tal procedimento e resultado não é sindicável pelo Tribunal Constitucional abre, por um lado, a porta à criação de normas através dum processo claramente inaceitável e, por outro lado, permite, a aplicação dessas normas sem qualquer possibilidade de vir a ser declarada a sua inconstitucionalidade. Dito de outro modo: permitir-se-ia que passassem a integrar o sistema jurídico positivo normas ostensivamente inconstitucionais e, portanto, que tais normas fossem aplicadas sem possibilidade de controlo. As normas que nascem por tal sistema viciado, estão elas próprias inquinadas de inconstitucionalidade – por violação do princípio da legalidade penal – que deve, por isso, ser apreciada e declarada.[...]”
Dispensados os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação.
Delimitação do objecto do recurso
9. O recorrente, no requerimento de interposição do recurso, afirmou pretender ver também apreciada a inconstitucionalidade “da norma contida no art.º 3º da mesma Lei [n.º 29/99, de 12 de Maio], na interpretação adoptada pelo mesmo Tribunal a quo, que a considera inaplicável aos crimes excepcionados no art.º 2° do mesmo diploma”, igualmente por violação do disposto no artigo 29º, n.º 3, da Constituição.
Sucede, porém, que, nas conclusões da sua alegação para este Tribunal, como se pode verificar pela transcrição integral acima efectuada, o recorrente abandonou esta questão, pelo que dela se não conhecerá.
Dessa forma, o objecto do presente recurso deve ter-se por circunscrito à outra questão de inconstitucionalidade também suscitada pelo recorrente no requerimento de interposição do recurso; a saber da norma da al. c) do n° 1 do art.º 2° da Lei 29/99 de 12 de Maio, na interpretação que dela adoptou o Tribunal a quo de considerá-la aplicável aos crimes de homicídio por negligência e de condução de veículo em estado de embriaguez.
Questão prévia: Conhecimento do objecto do recurso.
10. Cumpre, antes de mais, decidir se pode conhecer-se do objecto do recurso, uma vez que a decisão que o admitiu não vincula o Tribunal Constitucional (cfr. artigo 76º, n.º 3, da LTC).
É o seguinte o teor do preceito da Lei nº 29/99, de 12 de Maio, questionado pelo recorrente:
“Artigo 2º
1 – Não beneficiam do perdão e da amnistia previstos na presente lei: a) (...) b) (...) c) Os infractores ao Código da Estrada, seu Regulamento, legislação complementar e demais legislação rodoviária, quando tenham praticado a infracção sob a influência de álcool ou de estupefacientes ou com abandono de sinistrado, independentemente da pena.
2 – (...)
3 – (...).”
Sustenta o recorrente, a concluir a sua alegação, que o acórdão recorrido
“aplicou analogicamente a norma contida na al. c) do n.º 1 do art. 2º da Lei n.º
29/99, [ao] que nela se não contém, nem está previsto” (conclusão 1ª), porquanto, no seu entender, “só as infracções ao Código da Estrada, seu Regulamento, legislação complementar e demais legislação rodoviária estão incluídas na previsão desta norma e não quaisquer infracções previstas no Código Penal (conclusão 2ª). Acrescenta ainda que “o sentido possível das palavras utilizadas pelo legislador na redacção desse preceito não comporta nem suporta a sua aplicação a crimes do Código Penal, pelo que nem sequer é legítima a interpretação extensiva da norma (conclusão 3ª), pelo que “a interpretação da referida alínea c) adoptada pelo douto acórdão em crise ofende, assim, o n.º 3 do art. 1º do Código Penal e está ferida de inconstitucionalidade material, por ofensa do n.º 3 do art. 29º da CRP” (conclusão 4ª).
Da transcrição supra feita resulta que o que o recorrente verdadeiramente questiona é o processo interpretativo que permitiu ao tribunal recorrido incluir no conceito de “demais legislação rodoviária”, utilizado por aquela alínea c), os artigos 137º, verificadas determinadas circunstâncias, e 292º do Código Penal. Tal processo interpretativo efectuado pelo tribunal a quo, por não ter alegadamente respeitado os limites de interpretação da lei penal decorrentes do princípio da legalidade, designadamente a proibição da analogia e da interpretação extensiva, consequenciaria, de acordo com o recorrente, a inconstitucionalidade da própria norma penal, quando objecto de uma tal interpretação, por violação do referido princípio, consignado no artigo 29º, n.º
3 da Constituição.
A verdade é que essa questão não se traduz numa verdadeira questão de constitucionalidade normativa, susceptível de integrar o recurso de fiscalização concreta que o recorrente pretendeu interpor.
Como se ponderou no acórdão n.º 674/99 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 45º Volume, pgs. 559 e sgs.), bem como em jurisprudência entretanto já por várias vezes reiterada, ao proceder nestes termos:
“[...] o recorrente não questiona que o conteúdo da norma, com a interpretação adoptada, seja compatível com o texto constitucional [...]. O que vem questionado pelo recorrente nos presentes autos é tão-só que o julgador possa alcançar esse mesmo conteúdo normativo através de um processo interpretativo, já que, ao fazê-lo através de uma forma desrespeitadora dos limites fixados à interpretação da lei criminal, viola necessariamente o princípio da legalidade penal. Ou seja, não se questiona que o comportamento do recorrente possa ser objecto de uma incriminação, apenas se questiona se ele preenche efectivamente o tipo legal do crime de burla. Conclui-se, assim, inequivocamente, que o que vem impugnado pelo recorrente não
é a norma, em si mesma considerada, mas antes, a decisão judicial que a aplicou, por via de um processo interpretativo constitucionalmente proibido. Ora, tal questão - por não respeitar a uma inconstitucionalidade normativa, mas antes a uma inconstitucionalidade da própria decisão judicial - excede os poderes de cognição do Tribunal Constitucional, uma vez que, entre nós, não se encontra consagrado o denominado recurso de amparo, designadamente na modalidade do amparo contra decisões jurisdicionais directamente violadoras da Constituição. De todo o modo, mesmo que se entendesse que este Tribunal ainda era competente para conhecer das questões de inconstitucionalidade resultantes do facto de se ter procedido a uma constitucionalmente vedada integração analógica ou a uma
«operação equivalente», designadamente a uma interpretação «baseada em raciocínios analógicos» (cfr. declaração de voto do Consº Sousa e Brito ao citado Acórdão n.º 634/94, bem como o já mencionado Acórdão n.º 205/99), o que sempre se terá por excluído é que o Tribunal Constitucional possa sindicar eventuais interpretações tidas por erróneas, efectuadas pelos tribunais comuns, com fundamento em violação do princípio da legalidade. Aliás, se assim não fosse, o Tribunal Constitucional passaria a controlar, em todos os casos, a interpretação judicial das normas penais (ou fiscais), já que a todas as interpretações consideradas erróneas pelos recorrentes poderia ser assacada a violação do princípio da legalidade em matéria penal (ou fiscal). E, em boa verdade, por identidade lógica de raciocínio, o Tribunal Constitucional, por um ínvio caminho, teria que se confrontar com a necessidade de sindicar toda a actividade interpretativa das leis a que necessariamente se dedicam os tribunais – designadamente os tribunais supremos de cada uma das respectivas ordens -, uma vez que seria sempre possível atacar uma norma legislativa, quando interpretada de forma a exceder o seu «sentido natural» (e qual é ele, em cada caso concreto?), com base em violação do princípio da separação de poderes, porque mero produto de criação judicial, em contradição com a vontade real do legislador; e, outrossim, sempre que uma tal interpretação atingisse norma sobre matéria da competência legislativa reservada da Assembleia da República, ainda se poderia detectar cumulativamente, nessa mesma ordem de ideias, a existência de uma inconstitucionalidade orgânica. Ora, um tal entendimento - alargando de tal forma o âmbito de competência do Tribunal Constitucional - deve ser repudiado, porque conflituaria com o sistema de fiscalização da constitucionalidade, tal como se encontra desenhado na Lei Fundamental, dado que esvaziaria praticamente de conteúdo a restrição dos recursos de constitucionalidade ao conhecimento das questões de inconstitucionalidade normativa [...]”.
Esta jurisprudência - que, por manter inteira validade e ser aplicável ao caso, agora se reitera - conduz efectivamente a que não possa conhecer-se do objecto do recurso, por não ter sido colocada uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa de que o Tribunal deva conhecer.
III - Decisão
Nestes termos, decide-se não conhecer do objecto do recurso. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em oito unidades de conta.
Lisboa, 28 de Março de 2003 Gil Galvão Alberto Tavares da Costa
Bravo Serra Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (vencida, nos termos da declaração de voto junta)
Luís Nunes de Almeida
Declaração de voto
Votei vencida quanto à decisão de não conhecimento do objecto do recurso pelas razões constantes da declaração de voto que juntei ao acórdão n.º 383/2000, para as quais remeto. Ter-me-ia antes pronunciado no sentido da improcedência do recurso, por entender que a interpretação adoptada pelo acórdão recorrido para a al. c) do n.º 1 do artigo 2º da Lei n.º 29/99, de 12 de Maio, não excedeu o sentido possível das palavras da lei, não sendo assim de concluir pela violação do princípio da legalidade penal, na sua vertente da tipicidade (n.º 1 do artigo 29º da Constituição).
Com efeito, não creio que se encontre tal excesso numa interpretação de um preceito que se refere a “demais legislação rodoviária” como incluindo, quer o crime tipificado no artigo 292º do Código Penal (“Quem, pelo menos por negligência, conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue (...)”), quer o homicídio negligente (artigo
137º do mesmo Código Penal), quando cometido por condutor embriagado, como se julgou no acórdão recorrido.
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza